terça-feira, 5 de dezembro de 2017
A RAZÃO E O SENTIMENTO
Foi agora publicado em tradução portuguesa, com o título A Estranha Ordem das Coisas - A vida, os sentimentos e as culturas humanas, o livro de António Damásio a editar em língua inglesa com a denominação The Strange Order of Things - Life, Feeling and the Making of Cultures.
O autor, famoso neurocientista português, dera já à estampa outras obras em que tem descrita a sua investigação relativamente à interacção entre a razão e a emoção nos comportamentos humanos. Assim, O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Humano (1995), O Sentimento de Si: o Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência (2000), Ao Encontro de Espinosa: as Emoções Sociais e a Neurologia de Sentir (2003) e O Livro da Consciência: a Construção do Cérebro Consciente (2010), traduzidos em mais de trinta línguas.
O presente livro exige do leitor conhecimentos especiais de fisiologia e de neurologia para se compreender o pensamento do autor. De organização aparentemente fácil, a maneira como Damásio recorre aos conceitos e às ideias sucessivamente expressas obriga a um exercício difícil de permanente recapitulação dos capítulos anteriores. Diria que não é acessível ao leitor comum, ainda que possuidor de razoável cultura geral. Carece de um leitor cientificamente bem informado quanto às matérias expostas.
O livro divide-se em três partes: I) A vida e a sua regulação (homeostasia); II) A montagem da mente cultural; III) A mente cultural em acção. Cada parte subdividida em vários capítulos. «O termo "homeostasia" foi cunhado pelo fisiólogo americano Walter Cannon, várias décadas depois de Claude Bernard. Cannon também se referia aos sistemas vivos, e, ao inventar o nome "homeostasia" para o processo, escolheu a raiz grega homeo- (semelhante) e não homo- (mesmo) porque estava a pensar em sistemas criados pela natureza, cujas variáveis exibem amiúde variações possíveis - hidratação, glucose no sangue, sódio no sangue, temperatura, etc.» (p. 78)
A parte III é talvez a mais interessante para um leigo na matéria. «Quanto à inteligência criadora, responsável pelas práticas e pelos artefactos das culturas, não pode funcionar sem afetos e sem consciência. Curiosamente, afetos e consciência são também as faculdades que se perderam de vista, escondidas pelas revoluções racionalista e cognitiva.» (p. 229)
«No final do século XIX, Charles Darwin, William James, Sigmund Freud e Émile Durkheim, entre outros, reconheceram o papel da biologia no estruturar dos acontecimentos culturais. Pela mesma altura, e chegando às primeiras décadas do novo século, vários teóricos (entre eles Herbert Spencer e Thomas Malthus) invocaram factos biológicos para defender a aplicação do pensamento darwiniano à sociedade. Esses esforços, geralmente conhecidos como "darwinismo social", resultaram em recomendações eugénicas na Europa e nos Estados Unidos. Mais tarde, durante o Terceiro Reich, os factos biológicos foram adulterados e aplicados às sociedades humanas com o objectivo de produzir uma transformação sociocultural radical. O resultado foi o extermínio horrendo e massivo de certos grupos humanos, justificado por antecedentes étnicos ou por identidade política ou comportamental. Embora injusta mas compreensivelmente, a biologia foi acusada desta perversão desumana. Foi preciso que passassem décadas para que a relação entre biologia e cultura se tornasse de novo um tema aceitável no mundo académico.» (pp 229-30)
«No seu começo a medicina não estava preparada para lidar com os traumas da alma humana. No entanto, podemos bem dizer que as crenças religiosas, os sistemas morais e a justiça, e a governação política visavam, em grande medida, esses mesmos traumas e tinham como objectivo a sua recuperação. Concebo o desenvolvimento das crenças religiosas como estreitamente relacionado com a mágoa provocada por toda a espécie de perdas pessoais, perdas que obrigavam os seres humanos ao confronto com a inevitabilidade da morte e com o sem-fim de maneiras em que ela pode surgir: acidentes, doenças, violência perpetrada por outros, catástrofes naturais, tudo menos a velhice, uma condição bem rara na Pré-História. Mas note-se que grande parte dos traumas da alma humana eram infligidos por acontecimentos públicos no espaço social. As crenças religiosas constituíram respostas apropriadas a esses traumas em diversos aspetos.» (p 241)
«O desenvolvimento de códigos morais, de sistemas de justiça e de modos de governação política, começando com as disposições igualitárias das primeiras tribos humanas e prosseguindo com as complicadas fórmulas administrativas dos reinos da Idade do Bronze ou dos Impérios Romano ou Grego, como está estreitamente associado ao desenvolvimento de crenças religiosas ligadas aos sentimentos e, através dos sentimentos, à homeostasia. Os deuses, e, a seu tempo, um só Deus, são uma maneira de transcender os interesses erráticos dos seres humanos e de procurar uma autoridade desinteressada que possa ser imparcial, e em que se possa ter confiança e respeito. Note-se que ao longo das últimas duas décadas, a investigação dos fenómenos neurais e cognitivos relacionados com a moralidade e a religião entrou em contacto com os sentimentos e as emoções, tal como podemos ver nos trabalhos do nosso grupo de investigação e nos trabalhos de Jonathan Haidt, Joshua Greene e Lianne Young. Todas estas descobertas são particularmente bem analisadas por Mark Johnson e por Martha Nussbaum, segundo o ponto de vista da filosofia moral.» (p.243)
«Karl Marx terá supostamente descrito a religião como "o ópio das massas" (embora não tenha dito exatamente isso; o que disse foi que a religião era "o ópio do povo", com as "massas" a serem, provavelmente, uma correção pós-leninista). O que poderia ser mais inspirado na homeostasia do que a ideia de receber opiáceos para tratar a dor e o sofrimento humanos? Antes dessa famosa frase, Marx também escreveu que "A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, e a alma das condições que a não têm". Trata-se de uma interessante mistura de análise social e de poderosa intuição sobre a mente cultural. Combina a sua rejeição da religião com o reconhecimento pragmático de que a religião pode ser o refúgio de um mundo desumanizado e sem alma. Trata-se de uma expressão notável, sobretudo se tivermos em conta que Marx não fazia ideia de como o mundo se tornaria desumanizado e frio, sobretudo o mundo que ele próprio viria a inspirar. Notável também devido à ligação transparente entre estado de vida, sentimentos e respostas culturais. O facto de a história das religiões estar cheia de episódios em que as crenças religiosas levaram, e continuam a levar, ao sofrimento, à violência e às guerras, resultados que não são de todo humanamente desejáveis, não contradiz, de modo algum, o valor homeostático que tais crenças tiveram, e, claramente, ainda têm, para uma grande parte da Humanidade.» (pp 244-5)
«Dizer que os organismos vivos são algoritmos é, pelo menos, enganador, e em termos estritos é falso. Os algoritmos são fórmulas, receitas, enumerações de passos na construção de um resultado particular. Os organismos vivos, incluindo os organismos humanos, constroem-se segundo algoritmos e usam algoritmos para operar a sua maquinaria genética. No entanto, NÃO são eles próprios algoritmos. Os organismos vivos são consequências da interação de algoritmos e exibem propriedades que podem ou não ter sido especificadas pelos algoritmos que lhes orientaram a construção. O mais importante a reter é que os organismos vivo são conjuntos de tecidos, órgãos e sistemas em que cada célula componente é uma entidade viva, vulnerável, composta por proteínas, lípidos e açúcares. Não são linhas de código; são coisas palpáveis.» (p 275)
«A promoção da causa humana não põe qualquer problema para quem acredite que estamos a entrar numa fase "pós-humanista" da História, uma fase em que a maioria dos indivíduos humanos perdeu a sua utilidade para a sociedade. No quadro pintado por Yuval Harari, em que os seres humanos já não são precisos para travar guerras - a guerra cibernética substitui-los-á - e em que os seres humanos perderam os seus empregos graças à automatização, a maioria da Humanidade vai, pura e simplesmente, definhar e desaparecer. A História pertencerá aos que tiverem adquirido a imortalidade - ou, pelo menos, uma enorme longevidade -, e que assim receberão os lucros de uma tal situação. Emprego o termo "lucrar" e não "gozar", pois imagino que o estatuto dos seus sentimentos será ambíguo. O filósofo Nick Bostrom avança outra visão alternativa, em que robôs muito inteligentes e destrutivos dominarão o mundo e acabarão com a miséria humana do modo mais direto possível: acabando com a Humanidade. Seja como for, pressupõe-se que as vidas e as mentes futuras virão a depender, pelo menos em parte, de "algoritmos eletrónicos" que simulem artificialmente aquilo que os "algoritmos bioquímicos" agora fazem. Além disso, segundo a perspetiva de tais pensadores, a descoberta científica de que a vida humana é comparável na sua essência, à vida de todas as outras espécies enfraquece a tradicional plataforma do humanismo: a ideia de que os seres humanos são excecionais e distintos das outras espécies. É esta aparente contradição de Harari, e, se assim é, é uma conclusão seguramente errada. Os seres humanos partilham numerosos aspetos do processo de vida com toda as outras espécies, mas são realmente distintos numa série de características. O âmbito do sofrimento e das alegrias humanas é unicamente humano, mercê da ressonância dos sentimentos nas memórias do passado e nas memórias que os seres humanos construíram em relação ao futuro antecipado. Claro que é possível que Harari só nos queira aterrorizar com a sua fábula do Homo deus e espere que possamos resolver o problema antes que seja demasiado tarde. Nesse caso, concordamos, e eu espero, certamente, que assim seja.» (pp 280-1)
António Damásio preocupa-se ainda com a actual condição humana. E interroga-se como depois das destruições de duas guerras mundiais e com os progressos científicos e tecnológicos, os seres humanos continuam indiferentes aos dramas dos seus semelhantes que vivem na miséria. E escreve: «Embora a literacia científica e tecnica nunca tenha estado tão desenvolvida, o público dedica muito pouco tempo à leitura de romances e de poesia, que continuam a ser a forma mais garantida e recompensadora de penetrar na comédia e no drama da existência, e de ter oportunidade de refletir sobre aquilo que somos ou que podemos vir a ser. Ao que parece, não há tempo a perder com a questão pouco lucrativa de, pura e simplesmente, ser.» (p 290). Também o autor refere que nunca houve tanta informação disponível, ainda que cada vez menos imparcial, mas igualmente que o pú-blico não possui nem o tempo nem o método para converter as quantidades imensas de informação em conclusões razoáveis e de uso prático. E também que a disponibilidade quase instantânea da informação reduz o tempo necessário para a reflexão sobre a mesma. Fala da resistência à mudança, da aceleração do ritmo de vida, que contribui para o declínio da civilidade, e para a natureza viciante dos media electrónicos. Refere ainda as quebras de privacidade que acompanham o uso universal das redes sociais e de todos os tipos de vigilância, não só a necessária, por questões de segurança mas a que é praticada com toda a impunidade pelo sector privado. E alude ainda à possibilidade de conflitos catastróficos que envolvam armas nucleares e biológicas, aos riscos do terrorismo e da guerra cibernética e de infecções resistentes aos antibióticos. E a concluir: «Podemos culpar a modernidade, a globalização, a desigualdade da riqueza, o desemprego, a educação a menos, o entretenimento a mais, a diversidade, e a rapidez e ubiquidade radicalmente paralisantes das comunicações digitais, mas atribuir culpas não reduz os riscos, de imediato, nem resolve o problema das sociedades ingovernáveis, sejam quais foram as causas.» (p 296). António Damásio considera que esta visão desoladora pode ser atenuada pela perspectiva do famoso sociólogo Manuel Castells, que acredita que os media digitais abriram caminho para uma profunda remodelação dos sistenas governativos. Segundo este cientista, as democracias liberais estão a passar por uma crise de legitimidade, um problema que importa ser resolvido o mais rapidamente possível.
O autor refere-se ainda aos conflitos com origem no interior de cada indivíduo e alude a Freud, que entendia que a cultura nunca seria capaz de domar o nefasto desejo de morte que ele acreditava estar presente em cada um de nós. O pai da psicanálise começara a delinear os seus argumentos n'O Mal-Estar na Civilização, publicado em 1930. Damásio evoca também a tragédia grega, em que os problemas que atormentavam os homens não eram causados pelas suas decisões mas por forças exteriores, deificadas, incontroláveis e inevitáveis. Estudioso do teatro, avança até Shakespeare, que, já no século XVI, regressa a esse espírito trágico no tratamento das emoções maléficas (Macbeth, Otelo, Coriolano, Hamlet e Rei Lear), tragédias só ligeiramente resgatadas pelo cómico da personagem de John Falstaff, de Henrique IV e de As Alegres Comadres de Windsor.
E conclui, comentando que o título do livro nada tem a ver com a obra de Michel Foucault, Les Mots et les Choses, que na versão inglesa se intitula The Order of Things (A Ordem das Coisas).
Muito e muito mais haveria a dizer sobre A Estranha Ordem das Coisas, mas o leitor interessado nestes problemas encontrará na leitura do livro matéria bastante para satisfazer sua curiosidade intelectual.
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