Por sugestão de um amigo, li agora (quando a situação no Médio Oriente não cessa de agravar-se), o livro de Christopher Catherwood, A Loucura de Churchill - Como Winston Churchill Moldou o Moderno Iraque e o Médio Oriente (2008), tradução portuguesa do original inglês publicado em 2004, na sequência da invasão do Iraque, Churchill's Folly - How Winston Churchill Created Modern Iraq. No meio da interminável bibliografia sobre o Médio Oriente, publicada nas últimas décadas mas nomedamente depois da invasão de 2003, este título passara-me despercebido.
Trata-se de uma obra curiosa, ainda que não excessivamente rigorosa e por vezes repetitiva. Todavia, o autor consegue dar-nos a imagem do que foi a criação do Estado do Iraque no território da antiga Mesopotâmia e o papel desempenhado por Winston Churchill na solução que (e não se pode abstrair do conjunto da Palestina, Síria, Líbano, Jordânia e Arábia Saudita) viria a revelar-se mais tarde um oceano de problemas e, um século depois, uma verdadeira tragédia.
Insiste Catherwood em focar o papel de Churchill na constituição do Iraque e na colocação no trono do emir Faisal, mas ele mesmo reconhece ser impossível dissociar o plano ocidental, sobretudo anglo-francês, para moldar segundo os interesses das potências vencedoras da Primeira Guerra Mundial, o mapa do Médio Oriente. Recorre principalmente o autor à volumosa biografia oficial de Churchill, por Martin Gilbert e aos arquivos consultados, nomeadamente os Chartwell Papers, guardados nos arquivos do Churchill College, em Cambridge. O livro é abundante de citações, todas devidamente identificadas nas notas finais, e é em grande parte a partir dessas citações que Catherwood elabora a sua narrativa.
Alguns aspectos são especialmente enfatizados, tais como a eterna preocupação de Churchill com as despesas e a vontade de reduzi-las mesmo quando isso fazia perigar os objectivos globais do Governo de Sua Majestade, e o seu pavor perante o perigo bolchevique, o que não o impediu de se aliar à União Soviética na Segunda Guerra Mundial. Aliás, Churchill mudou de opiniões sempre que tal lhe convinha, como igualmente de partido, tendo começado por ser um liberal radical e acabando num conservador convicto, e foi também uma personalidade bastante imprevisível em muitas acções, actuando por vezes precipitadamente, como na sua insistência no ataque aos turcos no fim do Império Otomano, que se saldou no desastre de Gallipoli, que o remeteu a um limbo político, donde só conseguiu sair, e vir depois a triunfar, devido à mão que lhe estendeu Lloyd George. Por isso, preconizou depois, contra George que era ferozmente pró-grego, uma política de desanuviamento e entendimento em relação a Atatürk, e igualmente em outras circunstâncias, tendo também aqui mudado radicalmente de ideias, nos anos 30 do século passado, altura em que, contrariamente à atitude conciliatória de Neville Chamberlain, se opôs frontalmente a Adolf Hitler.
O livro começa com uma sumaríssima introdução à história dos territórios em causa, desde os tempos bíblicos até à Revolta Árabe de 1916, abordando a promessa feita ao emir Hussein do Hijjaz da criação de um grande reino árabe na região sobre os escombros do Império Otomano, cuja não concretização constituiu uma "grande traição" para os árabes, e cujas consequências perduram até aos nossos dias. São referidos os famigerados Acordos Sykes/Picot (1916), que partilharam clandestinamente o Médio Oriente entre britânicos e franceses (e russos, mas a Revolução de 1917 viria a afastá-los dessa pretensão) e a Declaração Balfour (1917), considerando que o Governo britânico via com bons olhos a criação de um Lar Nacional Judaico na Palestina. E não é omitido o papel do célebre T. E. Lawrence, personalidade enigmática, ardente defensor da causa árabe (por motivos talvez mais pessoais do que políticos), autor de uma autobiografia um pouco fantasiosa, Os Sete Pilares da Sabedoria, e que morreria mais tarde, num estranho acidente de mota, em Inglaterra, depois de se ter demitido, despeitado, de todas as funções que exercera no processo do Médio Oriente.
Um dos assuntos escalpelizados é a célebre Conferência do Cairo de 1921, convocada por Churchill, que reuniu todos os especialistas que o ministro das Colónias entendeu convenientes para se decidir que países formar e a quem entregar o governo daquilo que eram os territórios de mandato outorgados pela Sociedade das Nações. A esses convocados chamou Churchill os 40 ladrões, e certamente com perfeito conhecimento de causa.
Além do sharif de Meca, o emir Hussein ibn Ali, havia que contar com os seus filhos, Faisal, Abdullah, Ali e Zaid, e ainda com Abdel Aziz Al Saud (conhecido por Ibn Saud), e com outros dignitários menores.
Apesar de estarem presentes alguns especialistas da região e conhecedores do Islão e das rivalidades religiosas, familiares e tribais, alguns dos quais já com uma experiência de vida naquelas zonas (por exemplo, o general Allenby, que tomou Jerusalém aos turcos e os derrotou em Damasco, embora permitisse que a entrada se fizesse com as tropas de Faisal, mas não esteve presente na Conferência por ser Alto-Comissário no Egipto, dependente do Ministério dos Negócios Estrangeiros), o desconhecimento profundo de Churchill sobre a matéria, a sua ligeireza na apreciação das situações, a sua constante preocupação com o dinheiro que o levava, à semelhança do que se verificava na Índia, a colocar líderes fantoches nos territórios (os marajás) que os deviam administrar mas sempre sujeitos à tutela britânica, determinou a aplicação das soluções que de momento se afiguravam mais conformes aos ineresses da Coroa e aos seus.
Assim, resolveu criar um Estado chamado Iraque (a partir de Uruk, cidade da antiga Suméria), reunindo os três vilayet (províncias) do Império Otomano de Mossul, Baghdad e Basra (Bassorá), tendo em atenção as reservas de petróleo (na altura ainda não se conhecia bem a sua extensão) e ignorando, ou fingindo ignorar, que Mossul era uma zona de curdos, Baghdad, uma zona de sunitas e Bassorá uma zona de xiitas. Mas que viviam mais ou menos harmoniosamente sob a tutela de Constantinopla. E como Faisal fora expulso da Síria pelos franceses, que eram os detentores do mandato, colocou-o no trono do Iraque, atribuindo outro reino, o da Transjordânia (agora Jordânia) a seu irmão Abdullah. Entretanto, o pai, Hussein, abdicou do trono do Hijjaz em seu filho Ali, que acabaria por ser derrubado em 1925 por Ibn Saud, soberano do Nejd, que assim unificaria, para mal de todos nós, a Península Arábica, tornado Reino da Arábia Saudita, à excepção do Yemen, Oman, Emirados, Qatar e Kuwait, que por umas ou outras razões não quis ou não pôde conquistar. Ibn Saud impunha, e tem imposto, através dos seus filhos, até aos nossos dias uma versão fundamentalista do islão, da Escola Hanbalita, o Wahhbismo, a mais puritana e rigorosa interpretação do Corão, que está na origem do jihadismo actual e que os membros da inumerável família real (mais de mil pessoas, presentemente) despreza olimpicamente, fora de portas. Deve notar-se que a Arábia Saudita é o único país que tem no nome a indicação da família reinante.
Escreve o autor: «Por resolver ficou o estatuto da parte árabe não judaica da região situada a ocidente do rio Jordão, que os colonos judeus mais radicais consideram, segundo a sua interpretação da Bíblia, como parte de um Estado hebraico e onde hoje se assiste à intifada. Embora Churchill não pudesse antever o que viria a acontecer, o que para ele não foi mais do que um expediente temporário teve consequências nefastas a longo termo no plano militar, político e religioso. Podemos por isso afirmar que, juntamente com a criação de um Estado iraquiano unificado, a criação de entidades políticas com um estatuto ambíguo no território do mandato para a Palestina resultaram, em grande parte, da "loucura" de Churchill.» (p. 167)
Também Churchill menosprezou a criação de um Estado Curdo, como estivera previsto. Por questões do exclusivo interesse britânico, Churchill acabou por não considerar a sua instalação na parte norte do Iraque (Mossul), uma zona essencialmente curda, entendendo que um Iraque também com curdos seria mais fácil de administrar do que se tivesse apenas sunitas e xiitas. Esta decisão constituiu um erro profundo. Os curdos encontram-se disseminados não só no norte do Iraque, mas no leste da Síria, no noroeste do Irão e no sul e leste da Turquia, onde têm mantido acesa e duradoura luta contra o governo de Ancara. A existência de um Curdistão independente teria poupado muitas confrontações nas últimas décadas.
Um dos aspectos, felizmente documentado, do desprezo de Churchill em relação aos civis consta de uma carta a Sir Hugh Trenchard, o pai da Real Força Aérea (1920): «Penso que deverá seguramente prosseguir com o trabalho experimental sobre bombas de gás, especialmente o gás mostarda, com o qual será possível punir os indígenas recalcitrantes sem lhes causar graves danos.» (p. 89). Mesmo que Churchill não quisesse, talvez por ignorância, gaseá-los até à morte, o que é certo é que morreram muitas centenas de rebeldes iraquianos nos ataques.
Ainda mais grave. Quando o ajudante de Churchill, o coronel Richard Meinertzhagen, lhe sugeriu que a utilização do gás venenoso era desaconselhável, expondo-lhe as razões (1921), Churchill respondeu: «Estou pronto para autorizar a construção imediata desse tipo de bombas; a questão do seu uso será decidida quando a ocasião surgir. Na minha opinião trata-se de uma experiência científica para poupar vidas que não devia ser impedida pelos preconceitos dos que não sabem pensar com clareza. Os detalhes completos das recentes experiências americanas [devem] ser disponibilizados.» (p. 194-5)
Algumas semanas antes escrevera um memorando sobre o uso de gás venenoso contra manifestantes palestinianos: «Não consigo compreender porque se considera legítimo matar pessoas com balas e uma barbaridade fazê-las espirrar.» (p. 195)
A confrangedora ignorância de Churchill (se ignorância era) sobre as consequências do uso do gás e a sua completa ausência de escrúpulos, manifestar-se-iam mais tarde, aquando do bombardeamento aéreo intensivo de cidades civis na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, de que Dresden é um exemplo. Actos que constituem uma indelével mancha moral na sua biografia.
Referimos no início que, não obstante fornecer-nos uma panorâmica pormenorizada da acção de Churchill no período em questão (e apenas sobre esse período verdadeiramente se empenhou o autor), o livro, além de desnecessárias repetições, é muitas vezes impreciso e inexacto, nomeadamente em datas e nomes.
A título de exemplo retivemos os seguintes casos:
- O Império Otomano nunca se estendeu até à costa atlântica de Marrocos; o seu território não foi além do que é hoje a Argélia. (p. 19)
- A morte de Maomé ocorreu em 632 e não em 626. (p. 27)
- O segundo cerco de Viena ocorreu em 1683 e não em 1689. (p. 32)
- O primeiro nome de Lord Rothschild, a quem foi endereçada a Declaração Balfour, era Lionel Walter e não James. (p. 47)
- Os peregrinos muçulmanos que vão (pelo menos uma vez na vida) a Meca (o Hajj), conservam as suas convicções religiosas e não se tornam por isso mais radicais ou antiocidentais pelo facto da Cidade Santa do Islão estar em território wahhbita. (p. 114)
Haveria muitos outros casos a mencionar, mas a lista seria bem longa, e se estes erros são graves para quem lê pela primeira vez algo sobre o assunto, tornam-se de menos importância para quem já está familiarizado com estas matérias.
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Para os admiradores incondicionais de Winston Churchill este livro reveste o maior interesse, pois, ainda que não seja intenção real do autor ostracizar o antigo primeiro-ministro britânico, a sua objectividade de historiador não poderia deixar passar em branco os actos menos felizes e mais irreflectidos daquele que é considerado um dos grandes políticos do século XX. Afinal, um homem bafejado pela sorte, que lhe acudiu nos momentos mais difíceis, e a quem as circunstâncias alcandoraram para o panteão da imortalidade.
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