segunda-feira, 14 de agosto de 2017

QUE FAZER?




Acabou de ser reeditado, em livro de bolso, o livro Que Faire ? Dialogue sur le communisme, le capitalisme et l'avenir de la démocratie, dos jornalistas Martin Duru e Martin Legros, inicialmente publicado em 2014, constituído por um diálogo entre os filósofos Alain Badiou e Marcel Gauchet, nomes maiores do pensamento francês, com percursos inversos: o primeiro,  nascido numa família de tradição socialista, foi discípulo de Sartre, Althusser e Lacan e acabaria por ser definitivamente marcado pelo Maio de 68 e pela Revolução Cultural na China; o segundo, nascido num meio popular, foi influenciado por Cornelius Castoriadis, descobriu a política, desmontou algumas teses de Foucault e tornou-se um pensador da democracia liberal. O primeiro é professor emérito da École Normale Supérieure, o segundo, director de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales.

Transcrevemos do prólogo dos jornalistas, intitulado  "L'avenir d'une alternative":

«Nous ne sommes pas des enfants que l'on peut nourrir avec la bouille de la seule politique "économique"; nous voulons savoir tout ce que savent les autres, nous voulons connaître en détail tous les côtés de la vie politique et participera ctivement à chaque événement politique. Pour cela il faut que les intellectuels nous répètent un peu moins ce que nous savons bien nous mêmes, et qu'ils nous donnent un peu plus de ce que nous ignorons encore. [...] Ces connaissances, vous pouvez les acquérir, vous autres intellectuels, et il est de votre devoir de nous les fournir en quantité cent et mille fois plus grande que vous ne l'avez fait jusqu'ici, non pas de nous les fournir seulement sous forme de raisonnements, brochures et articles (auxquels il arrive souvent d'être - pardonnez-nous notre franchise! - un peu ennuyeux), mais absolument sous forme de révélations vivantes sur ce que notre gouvernement et nos classes dominantes font précisement à l'heure actuelle dans tous les domaines de la vie. Acquittez-vous avec un peu plus de zèlede cette tâche qui est la vôtre [...].» Cet appel à la responsabilitédes intellectuels pour soustraire leurs concitoyensà la domination de la «politique "économique"» et les éclairer, sous forme de «révélations vivantes», sur ce qu'il est possible de changer dans tous les domaines de la vie date de... 1902. Il est signé Vladimir Ilitch Oulianov, dit Lénine, dans un opuscule intitulé Que faire? - un ouvrage qui a marqué durablement l'Histoire...»

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Não é  fácil condensar em algumas linhas o diálogo, e o pensamento, de Badiou e Gauchet, conduzido pelos jornalistas organizadores do encontro.  Por isso, transcrevemos algumas afirmações avulsas, traduzidas para português. Designaremos Alain Badiou por AB e Marcel Gauchet por MG.

AB - ... Marx rompe com qualquer  concepção idealista do comunismo; com ele, filósofo materialista, a ideia desce do céu intelectual para a terra material. É o fim do "socialismo utópico" em benefício do "socialismo científico", para retomar as expressões do seu amigo Engels... Lénine traiu Marx em toda a linha. Isso não quer dizer que o marxismo seja necessariamente verdadeiro! Isso significa que não se poderá imputar a Marx o que retorna a Lénine. (pp. 38/39)

MG - ... Depois da morte de Lénine em 1924, Staline leva essa lógica ao paroxismo. O estalinismo está no prolongamento exacto do leninismo e tira  todas as consequências das suas premissas - enquanto Lénine derruba Marx, assim Staline permanece um fiel leninista. (p. 42)

MG - ... Assim, fascismo, nazismo e comunismo correspondem a religiões seculares..   (p. 53)

AB - ... O ressentimento contra as democracias parlamentares foi um tom maior do que se passou na URSS e na Alemanha. Nestes dois países desenvolveu-se um clima particularmente revanchista, propício às guinadas violentas. Lembro que a Rússia teve de assinar a paz de Brest-Litovsk em 1918 em condições verdadeiramente vergonhosas e que a Alemanha se sentiu como a grande lesada do tratado de Versalhes. (p. 55)

AB - ... O terceiro critério da organização comunista é que ela obedece a uma lógica internacionalista. Marx insistia especialmente neste ponto, razão por que criou a primeira Internacional ... Os comunistas são internacionalistas; mas devem sê-lo no próprio seio dos processos de emancipação locais. (p. 84)

MG - ... No papel, o capitalismo deveria estar de perfeita saúde: nunca teve tanta capacidade de manobra, presentemente, pode desenvolver-se à escala do mundo. Contudo está doente, grave e cronicamente doente. O capitalismo está roído do interior por um dos seus aspectos mais salientes: a globalização económica e financeira. ... A finança é verdadeiramente o Far West em estado puro. (p. 118/9)

MG - A mundialização que se iniciou a partir dos anos 1970 é verdadeiramente uma metamorfose extraordinária. Aqui, mais uma vez, vamos deter-nos nos nos próprios termos que empregamos. Nós temos estas palavra em francês, "mundialização", que me parece resolver o problema - conservemo-la.. Parece-me mais adequada, mais apropriada que a de "globalização", que é a tradução do inglês globalization... (p. 120)

MG - Nas nossas sociedades, não é mais do que uma palavra, mais do que uma noção fantoche que dissimula o poder efectivo exorbitantes, do esquema individualista e do complexo económico-financeiro. (pp. 122/3)

AB - Abordei a situação contemporânea tal como a entendo sob o triplo ponto de vista geoestratégico (com a mundialização), ideológico (com o liberalismo) e económico (com o capitalismo). Medimos agora melhor o abismo que nos separa. (pp. 151/2)

AB - Pour reprendre la main, la démocratie parlementaire, c'est fini. Décidément, on n'arrivera pas à s'accorder... (p. 191)

MG - Porque se esta dimensão constitutiva é esquecida, então, com efeito, não se verá mais na democracia senão uma concha vazia, senão uma forma política replicando o mercado económico: o cidadão é um consumidor, dirige-se às eleições como ao supermercado para escolher o melhor produto, etc. Tal é o triste espectáculo oferecido pela situação contemporânea. (pp. 192/3)

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O leitor interessado encontrará no livro o suporte da argumentação dos dois filósofos, de que traduzimos algumas passagens. Mas é inegável o interesse do confronto de posições que só a leitura integral da obra poderá esclarecer.


1 comentário:

Anónimo disse...

Um livro que certamente deverá ser lido por todos quantos se interessam por estas matérias.