sábado, 11 de março de 2017
O GRANDE ABANDONO
Pela sua relevância, transcrevemos o artigo hoje publicado por Pacheco Pereira no PÚBLICO. Não que os refugiados, na sua maioria por causa das políticas ocidentais, não mereçam o nosso especial acolhimento, mas pelo sentimento de injustiça que os autóctones experimentam ao serem confrontados com alojamentos e outras condições para "estrangeiros" que em toda a sua vida nunca tiveram.
Interrogo-me, muitas vezes, e não é "teoria da conspiração", se toda a política ocidental no mundo árabe não terá sido intencionalmente planeada com o propósito, inconfessável, de provocar uma crise civilizacional, como o profeta da desgraça, Samuel Huntington, preconizou em The Clash of Civilisations, em 1996:
Na semana passada a televisão portuguesa fez várias notícias sobre a recepção de refugiados yazidis sírios e iraquianos e as condições que lhes estão a ser preparadas por algumas organizações, autarquias e o próprio Estado. Mostrava-se o interior de uma casa que ia ser entregue a uma família refugiada, e as condições em que iam recomeçar a sua vida em Portugal. Estava a ver essas imagens num café e restaurante popular, onde várias mulheres trabalham na cozinha. Conheço-as pessoalmente – é gente que tem um salário mínimo e que trabalha em muito más condições, num local quente e acanhado, durante imensas horas. Não são estatisticamente pobres, mas são pobres. Têm salário, têm uma profissão, precária que seja, têm famílias e filhos, são umas novas e outras de meia-idade, mas são pobres.
Já várias vezes tinha reparado que, quando há algo que lhes interessa na televisão, que ouvem mas não vêem na cozinha onde trabalham, chegam à porta da sala onde se serve café e ficam a ver. Não saem do espaço da cozinha, mas espreitam de lado. Crimes, raptos, histórias de doenças, pedofilia, prisões têm o seu olhar assegurado. Mas, neste caso, era a história dos refugiados e, perante as imagens da casa preparada para os receber, exprimiam uma profunda reprovação, total, completa: “Vão-lhes dar uma casa melhor do que minha.” “Eu trabalho toda a vida e a mim ninguém me dá nada.”
É verdade. E isto é algo que é sentido como uma enorme injustiça. E é uma injustiça. O bem-estar destas famílias e das pessoas como aquelas que estão ali a trabalhar duramente foi abandonado. E estamos assim a alimentar claramente o populismo, como Trump percebeu, como Le Pen percebeu, como os partidos que alinharam nestes anos de lixo do “ajustamento” não perceberam, socialistas, sociais-democratas, centristas, não perceberam ou lhe foram soberbamente indiferentes. E, com excepção do PCP, com as limitações do seu casulo ideológico, nem o Bloco de Esquerda, nem muita da esquerda mais radical não só não o percebeu, como ajudou a tapar esse enorme ressentimento e sentimento de perda com distracções que, podendo ser em si importantes, ao deslocarem-se para o centro do debate político, como as chamadas “causas fracturantes”, funcionaram como um real abandono destas famílias e pessoas. E como o discurso do Bloco de Esquerda faz muito da agenda política da esquerda, a começar pelo PS, o abandono destas pessoas pela política leva-os a procurar outros meios de representação que lhes dêem voz. É por isso que, como tenho insistido, existe uma correlação entre a política destes anos do “ajustamento” e o crescimento do populismo, e este é um resultado de um grande abandono político, à direita e à esquerda.
Mesmo o discurso, tanta vez abstracto, sobre os pobres ajuda a este abandono. Falar dos pobres é politicamente intangível, toda a gente fala dos pobres, mesmo que não faça nada por eles. E é verdade que os mais pobres sofreram muito com estes anos de política da troika, mas, como as suas expectativas não eram grandes, ficaram no seu gueto cuidadosamente vigiado pela assistência caritativa a que a politica de direita os remeteu. O papel do Estado na criação de um elevador social que lhes desse a esperança de sair da pobreza foi travado e eles ficaram ali, onde já estavam, numa redoma social, que a política do Governo PSD-CDS quis acima de tudo manter com receio da agitação social.
Mas, como muitas vezes acontece, a agitação social veio de outros lados, não da parte mais de baixo da escala social. Se analisarmos esses anos, as únicas organizações com algum sucesso em alargar a mobilização social e política foram do “meio” da escala social: os “precários” de diferentes associações, com muitas ligações ao Bloco de Esquerda, e os “reformados” da Apre!, que representavam um sector da “classe média”, profissões liberais, funcionários públicos, muitos que tinham sido eleitores do PSD e do PS. A isso se deve acrescentar, por justiça, e no meio de enormes dificuldades e num período de refluxo, a CGTP e os sindicatos. Sobre estes últimos repito o que já disse: imaginem o que seria o mundo laboral e a legislação do trabalho se não fosse a resistência sindical, e, mesmo assim, muito perderam com a aplicação mais durável e com maior sucesso e zelo do programa da troika pelo Governo PSD-CDS.
As mulheres que se revoltavam com a casa para os refugiados estão na parte mais de baixo desse “meio”, mas aquilo que sentem ter perdido, ou ter direito a ter, não vem em nenhuma estatística. Como acontece com uma parte do eleitorado trabalhador de Trump, não perderam tanto como pensam que perderam, mas o que perderam chega para se sentirem desprezados e abandonados. Conseguem manter algum rendimento, mas têm mais do que um emprego para sobreviver e olham para as ruínas das cidades industriais à sua volta e têm nostalgia da dignidade que lhes vinha de serem trabalhadores numa grande fábrica de automóveis, de terem um trabalho com um certo grau de especialização que era respeitado, nuns EUA que eram a “grande fábrica da democracia”.
Em Portugal, passa-se o mesmo. Podem não ter sido as principais vítimas do processo de “ajustamento”, mas foram-no também. E perderam muito mais coisas que os distinguem dos mais pobres, que esses perderam menos. Perderam a esperança de melhorar no futuro, encontraram no destino dos filhos uma barreira que antes não existia – a de verem a geração que se lhes seguia ter muito menos oportunidades que, mesmo assim, eles tiveram. Ainda conheceram nos seus pais e mães o que era a pobreza, mas têm o sentimento de que saíram dela, por serem mais educados e terem um trabalho que não era no campo. Não têm a certeza de que o mesmo vá acontecer aos seus filhos.
Se fizermos a transposição desse olhar de revolta para o plano político, há um factor que convém ter em conta – é que a direita está a perceber mais depressa do que a esquerda a essência do “trumpismo”. Ainda não é capaz de mobilizar esse descontentamento, porque está muito acantonada socialmente e o populismo precisa de líderes e protagonistas vindos da televisão que escasseiam. Mas caminha para aderir ao seu modus operandi naquilo que é mais perigoso – o discurso social e a “pós-verdade” que circula pelas redes sociais.
Não é de agora a proximidade da direita portuguesa ao programa de Trump, já vem de antes, mas falta-lhe a componente populista. Quando se vê um conjunto de cartazes da Juventude Popular, já com alguns anos, é patente a proximidade. Aliás, enquanto o CDS passou a Partido Popular, e depois de novo a CDS-PP, a antiga Juventude Centrista mudou para Juventude Popular e por aqui ficou. Esses cartazes falam de “liberdade”, “segurança” e “impostos”, mas em que termos? A “liberdade” é: “A nossa geração não precisa de subsídios. Só queremos que nos deixem trabalhar.” A “segurança” é: “O Estado protege os criminosos. Quem nos protege a nós?” Os “impostos” são: “Dois milhões de pessoas com rendimento mínimo. Quem pensas que anda a pagar essa avareza?” Para além dos jovens populares não saberem o que significa “avareza”, não se ficam por aqui. Há outros cartazes com imagens, com jovens muito “betos” para serem eficazes fora do círculo social do CDS, mas mesmo assim esclarecedores: “Trabalhas toda a noite num bar para pagares a faculdade, o Estado tira-te 20% para dar a quem não quer trabalhar.” “O Estado rouba-te os sonhos e distribui-os por quem nada quer fazer.” E uma defesa do cheque-ensino ao modo da secretária de Trump para a Educação, Betty DaVos.
Portanto, o programa está cá, falta apenas o salto populista. O abandono a que foram deixados os trabalhadores, os pequenos empresários, os operários, uma massa de gente a quem tiraram o futuro e amachucaram o presente geram ressentimento que, como a água, segue o caminho mais fácil. Ele encontra-se no olhar para a casa limpa e composta que espera os refugiados e não precisa dos mastins da extrema-direita para lhe indicar os alvos. Eles sabem que o CDS, o PSD, o PS os abandonaram à sua sorte, estão-se literalmente borrifando para as “causas fracturantes” do Bloco de Esquerda, e a “linguagem de pau” do PCP não os mobiliza. Eles esperam no seu fel – até um dia.
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