حبر العالم خير من دم الشهيد
"A tinta do sábio é mais preciosa do que o sangue do mártir" (Hadith atribuído ao Profeta)
Gilles Kepel, islamólogo famoso, professor na École Normale Supérieure e em Sciences Po, autor de numerosas obras que modelaram o pensamento francês e mundial sobre o Islão, acabou de publicar La Fracture, onde considera que o Daesh operou uma "fractura" no ideal de "integração" dos filhos dos imigrantes pós-coloniais, fazendo cair uma suspeição terrível sobre a coesão sonhada da pátria.
Este livro reúne, precedidas de uma introdução, as crónicas do autor aos microfones de France Culture, entre o Verão de 2015 e o Verão de 2016, isto é, desde o ataque a "Charlie Hebdo" até ao atentado de Nice.
Ao longo das páginas deste livro, Gilles Kepel, eminente arabista e meu amigo, desenvolve o seu pensamento sobre as causas (e as consequências) do terrorismo dito islamista, debruçando-se sobre os actos praticados durante um annus horribilis. Desde então, não cessaram os actos visando "abalar as bases do Estado, apressar a decomposição da sociedade, desencorajar toda a gente e introduzir a desordem nos espíritos", para citar uma frase de Dostoyevsky, em Os Possessos, e cuja última ilustração foi o atentado no mercado de Natal de Berlim.
Profundo conhecedor do mundo islâmico, falando correctamente a língua árabe (literal e nas suas versões dialectais), Gilles Kepel investiga há mais de trinta anos esse mundo fascinante, e tive ocasião de fazer aqui em 2013 um comentário ao seu livro Passion arabe.
A evolução da situação no Mundo Árabe, nomeadamente após os ataques de 11 de Setembro de 2001, a invasão do Iraque, as "primaveras árabes", a guerra na Líbia e na Síria, e agora os atentados terroristas na Europa, tem levado os especialistas a uma reflexão sobre a relação dos muçulmanos com o Ocidente, já que nem todas as "certezas" que foram escritas podem ser dadas como adquiridas. Regressa a questão do "Orientalismo", tão bem equacionada por Edward Saïd e que suscitou larga controvérsia e contestação. Este é o momento da revisão de opiniões até aqui indiscutidas e indiscutíveis.
Também as teses de Gilles Kepel, figura incontroversa da islamologia, passaram a ser objecto de discórdia, ou porque o consagrado professor inflectiu a sua análise sobre os acontecimentos presentes, ou porque estes mudaram a própria natureza das coisas.
Confrontam-se hoje duas teorias principais: uma, sustentada por Kepel, a de que estamos a assistir a uma radicalização do islão; outra, que é defendida por Olivier Roy (também eminente islamólogo, professor e autor de cerca de trinta obras sobre o assunto), a de que estamos perante uma islamização do radicalismo. Como nesta área não há compartimentos estanques, nem um mundo a preto e branco, considero que os fenómenos se interpenetram, mas sou levado a privilegiar a tese de Olivier Roy. Não cabe aqui, evidentemente, explicar porquê: seria necessário revisitar a história do Ocidente, do Mundo Árabe e das suas relações mútuas durante, pelo menos, os últimos duzentos anos. Sobretudo nos últimos cinquenta anos.
Recomendo vivamente a leitura dos livros de Gilles Kepel, de Olivier Roy, e dos demais investigadores (e não apenas franceses) sobre tão premente problemática. Gostaria de ser optimista quanto ao futuro, mas não posso. Até porque, também eu, conheço alguma coisa da matéria.
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