sábado, 11 de abril de 2015

DO PAGANISMO EM FERNANDO DACOSTA




Começo por uma declaração de interesses. Sou amigo de Fernando Dacosta há perto de meio século, o que naturalmente não me impede de uma apreciação isenta.

Posto isto, algumas palavras sobre o seu mais recente livro, Viagens Pagãs, acabado de chegar às livrarias.

Para este volume, seleccionou o autor crónicas de viagens que efectuou, algumas em tempos já remotos, publicadas na época e que surgem agora reunidas nesta obra. As regiões evocadas são a zona do Douro, a ilha do Corvo (Açores), o Brasil, Marrocos, Angola e Moçambique. E duas incursões especiais: na nossa epopeia atlântica e no universo mineiro português.

Em verdade se diga que os locais visitados, para além do interesse intrínseco para o texto, são também o pretexto para Fernando Dacosta elaborar, no seu estilo peculiar e com a arte que lhe é reconhecida, sobre a condição de "ser português" e sobre a nossa relação com outros povos.

No Douro, terra da sua infância, salienta a paisagem e evoca os escritores que viveram ou escreveram sobre essa região. E lembra um acidente fluvial que lhe ia custando a  vida.

No Corvo, destaca a singularidade dos seus habitantes, para a qual muito contribuiu o largo período de grande isolamento provocado pela extrema insularidade, e recorda a ironia popular: quando o marechal Carmona visitou um dia o Corvo, foi recebido por um cartaz gigante que dizia "Seja bem-vindo a esta terra!". Só que o cartaz, sendo uma pequeníssima ilha, estava colocado no cemitério.

Sobre o Brasil, onde se deslocou na companhia de Agustina e de outros escritores, realça, citando Agostinho da Silva, "a subversão, a liberdade, a ousadia" do povo. Recorda de Agustina a resposta que deu a Salustiano Lopes, um dos "cicerones" nesta visita ao país e que a interrogava sobre a injustiça de não haver nenhum Nobel na literatura portuguesa: «Quem o vai receber é o Saramago, tudo aponta nesse sentido. Houve uma altura em que eu gostaria de o ganhar, mas apenas para dançar com o rei, como fez a Pearl Buck, que valsou com ele no Palácio de Oslo.»  Aqui Agustina deveria estar distraída, o Nobel da Literatura é atribuído em Estocolmo, o da Paz é que é em Oslo.

Subtraindo-se à comitiva literária, Dacosta ouve Salustiano Lopes, que acompanhou de perto Marcelo Caetano durante o período em que este viveu no Rio de Janeiro e que o leva até ao cemitério de São João Baptista, onde se encontra o mausoléu do antigo presidente do Conselho. Por ironia do destino, o túmulo encontra-se contíguo ao do célebre dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues, que Marcelo detestava. Escreve o autor (p. 84-5): «Marcello era, perante assuntos fracturantes, um espírito retraído. Desde muito novo que se indignava (Salazar mostrava-se mais arejado) com eles. Pertenceu, por exemplo, ao grupo dos que atacaram António Botto e Raul Leal por terem assumido, em livros, a sua homossexualidade. Entrou igualmente em boicotes a espectáculos "esquisitos", como A Garçonete, que Lucília Simões representou no Trindade, e Mar Alto, peça de António Ferro retirada, por "indecente", à terceira representação. Detestaria mais tarde, pelas suas "inconveniências", Jorge de Sena e Natália Correia. A esta, chegou a virar costas, recusando cumprimentá-la devido à publicação da Antologia da Poesia Erótica e Satírica - objecto de processo judicial.»

Marcelo Caetano era um homem de personalidade complexa, de feitio muito difícil, simultaneamente teimoso e hesitante, de estreitos horizontes humanísticos, ainda que conceituado administrativista. Não admira que tenha sido incapaz de manter o regime, antes apressou a sua queda.

No que toca a Marrocos, a viagem fora organizada pelo Centro Nacional de Cultura. Para lá de se deslumbrar com os locais, Dacosta aproveita para recordar as relações dos portugueses com Marrocos, desde a conquista de Ceuta, em 1415, à batalha de Alcácer-Quibir, em 1758, que custou a vida a D. Sebastião, uma curiosa figura da nossa monarquia. Sempre tivemos uma grande curiosidade (e atracção) pelos "mouros", aliás nossos vizinhos. Tenho dito e escrito muitas vezes que os portugueses, e os povos do sul da Europa em geral, são muito mais próximos dos norte-africanos do que dos nórdicos, apesar dos universos religiosos distintos. A presente crise da União Europeia demonstra-o cabalmente. Escreve o autor (p. 153): «Os leilões de escravos banalizavam-se. Nas épocas de fome  (como a de 1521), os pais vendiam os filhos, os idosos ofereciam-se a si mesmos e os adultos suplicavam que os levassem para Portugal; só os mais jovens, rapazes e raparigas, tinham, se esbeltos, interessados. O corpo sempre foi aqui uma arma. Assumido com ênfase, tornou-se de objecto (enganadoramente) submisso em objecto (exuberantemente) dominador - reverenciado por artistas e poetas de todo o Ocidente...»

E o corpo tem sido no mundo árabe (reflicta-se sobre o Orientalismo), até aos dias de hoje, uma poderosa arma. Nem mesmo as correntes extremistas islâmicas que agora se manifestam no mundo muçulmano conseguem evitar o poder da sedução. Ao invés dos europeus, os árabes sempre foram menos preconceituosos relativamente ao sexo, foram mesmo precursores de uma liberdade que os "colonizadores" invejavam. Continuando a citar Dacosta (p.155): «As paixões e as aventuras amorosas atingiam especial vibração; o calor, a indolência, o isolamento, a sensualidade de África, tornavam-nas agrilhoamentos de imprevisível tumultuosidade. Para animar os feridos, os físicos mandavam pôr belas raparigas (ou rapazes) mouras junto deles, ao mesmo tempo que lhe dobravam as rações.».

São muito interessantes as reflexões de Fernando Dacosta sobre as nossas incursões em Marrocos, nomeadamente sobre a expedição de D. Sebastião. Recordo uma peça do escritor belga Paul Dresse, Sébastien de Portugal ou Le capitaine de Dieu (1976), que foi traduzida para português e em tempos representada pelo Grupo de Teatro de Carnide, e que também se faz eco da obsessão do rei de Portugal pelo Magrebe. E não nos esqueçamos que até ainda não há muito tempo Marrocos foi um dos destinos extra-Europa mais procurados pelo turismo português.

O último capítulo é reservado a África. Foi em Angola que Fernando Dacosta nasceu e o seu fascínio pelo continente negro é conhecido. Aliás, a epígrafe que escolheu para esta viagem a Angola e Moçambique é uma citação de Alda Lara: "África é o berço de todos os paganismos". A sua análise da situação nas antigas colónias portuguesas é lúcida e implacável. Transcrevo alguns parágrafos:

«Há quatro décadas, África cortou as vias do desenvolvimento colonialista; depois, as do desenvolvimento socialista; a seguir, impôs as do ultra-liberalismo.» (p. 180)

«Os africanos falam da democracia com displicência. Sempre acreditaram com displicência na "felicidade" que os brancos lhes levaram, do Oeste e do Leste - entre armas, crucifixos, votos, divisas, idiomas, culturas, tecnologias, ludíbrios.» (p. 181)

«"Os velhos colonos portugueses tratavam-nos melhor do que nos tratam os africanos que estão no poder", exclama-me um negro do Cacuaco, quatro anos preso pela PIDE e três pela DISA. "Os humilhados humilham, não é?"» (p. 184)

«"Os únicos que conheciam Angola eram os portugueses. A sua saída, provocada pelos soviéticos e pelos norte-americanos, foi a nossa ruína. Os primeiros fomentaram-na para melhor dominarem o país, os segundos para provocarem o colapso do regime socialista e poderem, depois, explorar o país. Como aconteceu", sublinha-me a poetisa Maria Alexandre Dáskalos, natural de Angola.» (p. 198)

«Ramalho Eanes foi o político português que mais dignificou África. Profundo conhecedor dela, foi a ela que dedicou a sua primeira viagem como Presidente da Republica. Recebido festivamente em Maputo, Samora Machel apresentou-o aos seus de forma surpreendentemente expressiva: "Camaradas, este é o nosso antigo patrão!"» (p. 204-5)

Fiel a uma linguagem de algum modo barroca, Fernando Dacosta navega (é de viagens que aqui se trata) num universo onírico sem deixar de ter os pés bem assentes no chão. Cruzando o real com o sobrenatural surpreende-se e surpreende-nos ao longo das páginas deste livro.

Para sustentar a sua narrativa, apoia-se em numerosas e expressivas citações. Sei que não é seu hábito, que é mesmo contrário ao estilo que cultiva, referenciar as obras dos autores que menciona. Por mim, não resistiria a fazê-lo.


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