domingo, 19 de abril de 2015
A HIPOCRISIA EM TODO O SEU ESPLENDOR
O naufrágio esta madrugada, no Mediterrâneo, a 70 km da costa líbia, de um pesqueiro proveniente de Tripoli, com 700 pessoas a bordo, cuja maioria terá perecido na tragédia, suscita inevitavelmente alguns comentários, apesar de casos semelhantes começarem a tornar-se "normais" na região, nomeadamente depois da eclosão das chamadas "primaveras árabes".
A passagem marítima de clandestinos rumo à Europa, através do sítio mais próximo da costa africana, a ilha italiana de Lampedusa, verifica-se desde há mais de 20 anos, inicialmente em número muito restrito, que foi progressivamente aumentando, embora de forma lenta.
Foi a turbulência registada no Médio Oriente, depois da invasão do Iraque, "decidida" na reunião que juntou nos Açores dois grandes criminosos (Bush e Blair), acompanhados por dois comparsas menores (Aznar e Barroso), que determinou o começo de uma grande deslocação de populações, ainda que nessa altura não especialmente, embora também, através do Mediterrâneo.
As revoltas no mundo árabe, tanto quanto hoje se sabe comandadas do exterior, agravaram a situação dos povos, que se entusiasmaram pela promessa de um "regime democrático", quando o verdadeiro objectivo era o da instauração de um regime de economia ultra-liberal, que pretendia substituir-se a algumas resistências dos governos autoritários vigentes.
De um balanço feito hoje, resulta que a Tunísia se encontra muito mais pobre, insegura e dividida do que no tempo de Ben Ali. O Egipto, após os gravíssimos incidentes aquando da queda de Mubarak, e especialmente depois, regressou a uma situação mais restritiva das liberdades do que na época do presidente deposto, tem a sua economia desfeita, o turismo praticamente inexistente, o terrorismo instalado. A Líbia, deixou de ser um Estado e é hoje uma região que vive em absoluto caos. A sua destruição, programada pela NATO, incentivada por criminosos, como Sarkozy, Hollande ou Cameron, entre outros, com o apoio de Obama e o entusiasmo do sinistro pseudo-filósofo sionista Bernard-Henri Lévy, não só desencadeou todas as rivalidades tribais como permitiu a livre circulação dos movimentos terroristas que já operavam no norte da África Sub-Sahariana. Há que concordar que embora o coronel Qaddafi não fosse uma personagem muito frequentável, a sua manutenção no poder era infinitamente melhor, não só para os líbios como para a própria Europa. A Síria, pela violência da destruição, é um caso paradigmático do desprezo pelo género humano. Um país verdadeiramente encantador, onde se vivia em paz, com relativo desafogo económico, não obstante a existência de um regime também ele autoritário. Um regime que a maioria dos sírios preferia sem dúvida não só às duvidosas oposições "democráticas" como ao "Estado Islâmico", surgido não se sabe publicamente donde, embora haja quem saiba. E é ainda o regime de Assad que luta por segurar os restos de um país com verdadeira liberdade para todos os cultos. Nada mais vale acrescentar, tal a dimensão da tragédia em curso.
Ora são os refugiados destas guerras fratricidas, alimentadas por interesses que hoje nem sequer são inconfessáveis, que, desde 2011, em número exponencialmente crescente, demandam a Europa, já não propriamente à procura de um futuro economicamente mais atraente, mas pura e simplesmente para salvarem a vida. Perante o afluxo de originários dos mais variados países, a resposta da Europa tem sido quase um fechar de portas, e mesmo as operações de socorro aos mais que previsíveis náufragos é manifestamente (e se calhar intencionalmente) insuficiente.
A propósito das migrações, em conferência pronunciada a 23 de Janeiro de 1997 (há quase vinte anos), na abertura do convénio organizado pelo Município de Valência sobre as Perspectivas do Terceiro Milénio, o filósofo e romancista Umberto Eco disse: « Os fenómenos que a Europa tenta ainda enfrentar como casos de emigração são pelo contrário casos de migração. O Terceiro Mundo está a bater às portas da Europa, e entra mesmo quando a Europa não está de acordo. O problema já não é decidir (como os políticos fingem acreditar) se se admitem em Paris raparigas estudantes com o chador ou quantas mesquitas devem erigir-se em Roma. O problema é que no próximo milénio (e como não sou profeta não posso especificar a data) a Europa será um continente multirracial, ou se preferirem "colorado". Se lhes agradar, será assim; e se não lhes agradar, será assim na mesma.»*
Noto que, hoje mesmo, o primeiro-ministro italiano, por causa de mais este imenso naufrágio, solicitou uma cimeira urgente da União Europeia. Para quê? Quantas reuniões já se realizaram com o mesmo propósito? Até o Papa Francisco, num dos primeiros actos do seu pontificado, se deslocou, inutilmente, a Lampedusa. Estamos fartos das piedosas intenções da canalha que governa a Europa e o Mundo. As declarações a que costumamos assistir não passam da mais refinada hipocrisia.
Porque se esta questão existe, e com a acuidade especial com que agora se manifesta, ela deve-se especialmente aos actos ocorridos a montante e cujos danos são hoje muito difíceis de controlar. Actos praticados num passado recentíssimo, alguns, num passado mais remoto, outros.
Não acredito em soluções milagrosas.
* Umberto Eco, Cinco Escritos Morais. Difel (1998)
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