sexta-feira, 31 de outubro de 2014

AINDA O KOSOVO




Foi lançado ontem à tarde, no Palácio da Independência, o livro do embaixador José Manuel Arsénio A Satrapia do Kosovo.

Após algumas palavras do director da editora Fronteira do Caos, o padre Vítor Melícias fez a apresentação da obra, salientando a sua oportunidade e a necessidade de esclarecer a opinião pública nacional, e também estrangeira, acerca da história até hoje muito mal contada pela comunicação social (devidamente instrumentalizada pelos poderes fácticos), do desmembramento da Jugoslávia, das guerras que se lhe seguiram, do bombardeamento da Sérvia e, finalmente, da criação do estado-fantasma do Kosovo.

Depois, o embaixador José Manuel Arsénio, que chefiou a Delegação Portuguesa junto da Missão de Monitores da Comunidade Europeia (ECMM), em Zagreb, o que lhe confere especial autoridade na matéria,  procedeu a um resumo das etapas orquestradas pelos Estados Unidos para a desagregação da Jugoslávia e para o ataque à Sérvia, com vista a colocar no poder em Pristina os terroristas albaneses do UÇK (Ushtria Çlirimtare e Kosovës), o chamado Exército de Libertação do Kosovo, e a permitir a instalação nesse novo "país" das bases militares indispensáveis ao controlo norte-americano dos Balcãs.

A concretização desse processo, que sob a capa da NATO evocou o activismo militar de Hitler, foi protagonizada pela então secretária de Estado Madeleine Albright, uma abominável megera, que me abstenho de classificar de outra forma mais apropriada para não ferir as susceptibilidades dos leitores mais sensíveis. De facto, o ultimato que essa mulher impôs aos sérvios na conferência de Rambouillet (Fevereiro de 1999), forçando a cumplicidade dos seus parceiros da Aliança Atlântica, só poderia ser necessária e obviamente rejeitado pela ainda Federação Jugoslava. O próprio Henry Kissinger, personalidade de todo insuspeita de simpatias anti-americanas como comprova o seu longo cadastro de malfeitorias, reconheceu em entrevista ao "Daily Telegraph", em 28 de Junho de 1999, e cito o autor: «O texto de Rambouillet, que intimou a Sérvia a admitir tropas da NATO em toda a Jugoslávia, foi uma provocação, um pretexto para começar com o bombardeamento. Rambouillet não é um documento que um angélico sérvio possa ter aceite. Foi um terrível documento diplomático que nunca deveria ter sido apresentado sob essa forma.»

A destruição da Jugoslávia era um desideratum de Washington, no qual Bill Clinton foi ardorosamente secundado por outra figura sinistra, o vigarista britânico Tony Blair, o mesmo que anos mais tarde, já com o famigerado George W. Bush na presidência dos EUA, haveria de apoiar outro imenso crime, a invasão do Iraque, sob o pretexto da existência de armas de destruição maciça. Nunca é demais recordar que o cientista inglês David Kelly, que inspeccionara o armamento iraquiano e denunciara a falsificação de provas pelo governo de Blair, apareceu então "suicidado" perto de sua casa, como escrevi aqui e aqui, nunca se esclarecendo convenientemente se o ex-primeiro-ministro britânico fora conivente no suposto crime.

Também o bombardeamento da Jugoslávia efectuado pela NATO obedeceu a um pretexto: evitar as "atrocidades" cometidas pelos sérvios, quando afinal era a máfia albanesa que, no Kosovo,  procedia ao tráfico de droga, de prostitutas, de órgãos humanos. Numa expressão infeliz, e para justificar a participação, ainda que exígua como é da praxe, de Portugal nesse atentado à soberania de um país independente, António Guterres chamou-lhe "guerra humanitária". Não querendo entrar na questão de guerras justas ou injustas, a que Michael Walzer se tem dedicado, saliente-se que aquilo que não existe são guerras humanitárias, já que a própria expressão envolve uma contradição nos termos.








Edifícios públicos bombardeados pela NATO - Belgrado, 2000

Quando visitei Belgrado em 2000, alguns meses após o ataque da NATO, tive oportunidade de constatar a indignação dos sérvios face ao bombardeamento da sua capital, e à duplicidade da chamada "comunidade internacional" nos seus propósitos de alargamento da "democracia" à Europa de Leste, durante o consulado do ébrio russo Boris Yeltsin. Chocou-me ver (e fotografar) os ministérios, a embaixada da China, a torre da televisão completamente arruinados, para não falar nas fábricas, pontes, vias de comunicação ferroviárias e rodoviárias, refinarias, etc, etc., destruídas ao longo de todo o país, além, é claro, do elevado número de mortos.


Embaixada da China bombardeada pela NATO - Belgrado 2000

Mas uma coisa houve que particularmente me sensibilizou. Visitando o Kalemegdan, a grande e velha fortaleza de Belgrado, na confluência do Sava e do Danúbio, na companhia de um  jovem sérvio, este me declarou emocionado, perante o monumento aí existente de homenagem à França, e que durante algum tempo foi coberto de crepes, que o que mais o chocara fora a participação francesa nos ataques, a colaboração da França - a velha aliada da Sérvia - nesse acto ignominioso que envergonha não apenas os americanos que, pelo menos desde o bombardeamento atómico  de Hiroshima, perderam a noção da dignidade e da honra, mas o resto da Humanidade.

Torre da Televisão Nacional bombardeada pela NATO - Belgrado, 2000

É, pois, o embaixador José Manuel Arsénio credor dos maiores encómios pelo serviço publico que acaba de prestar com a edição do seu livro, contribuição singular para repor a verdade dos factos e esclarecer aqueles que, porventura distraídos ou manipulados por uma comunicação social subserviente dos poderes instalados a nível nacional ou internacional, ainda possam julgar que a destruição da Jugoslávia, como depois a do Iraque e as guerras civis árabes e agora o conflito na Ucrânia, foi uma "ingerência humanitária" (como definida pelo venal Bernard Kouchner, o lamentavelmente famoso "French Doctor") e não a prossecução de uma estratégia global de neo-liberalização da economia fundamentalista de mercado a nível mundial.

Monumento de gratidão à França, erigido em 1930 no Parque de Kalemegdan - Belgrado, 2000

Voltei a Belgrado em 2010, mas disso falarei noutra ocasião.


Edifício ainda em ruínas na Kneza Milosa - Belgrado, 2010

Monumento à França - Belgrado, 2010

Após a leitura integral do livro do embaixador José Manuel Arsénio, regressarei ao assunto.

1 comentário:

Anónimo disse...

Ainda bem que se volta a este assunto para sobre ele se derramar alguma luz.

Felicitações ao autor do livro e ao autor do blog.