quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

O "ÊXODO BÍBLICO" DOS CLANDESTINOS


Nas últimas semanas, chegaram à pequena ilha de Lampedusa (não posso deixar de recordar Il Gattopardo) mais de seis mil tunisinos, na maioria jovens, o que provocou a duplicação da população da ilha, que se encontra a meio caminho entre a costa tunisina (especialmente a partir da região de Mahdia) e a Sicília.

Desde há décadas que muitos tunisinos tentam a sua sorte, embarcando em pequenas bateiras (uma parte morre pelo caminho) em direcção a terras italianas. Mas a situação, após a revolução que levou à queda de Ben Ali, alterou profundamente os dados do problema. Até então, eram as próprias autoridades tunisinas que controlavam as suas costas, impedindo a emigração ilegal. Mas, com o colapso do regime, e nomeadamente das suas forças policiais, o caminho está aberto; e não é a marinha italiana que tem meios para patrulhar incessantemente as muitas milhas entre as duas costas.

O ministro italiano do Interior referiu-se a um "êxodo bíblico", prevendo que mais de 80.000 tunisinos consigam entrar ilegalmente em Itália nos próximos meses. O governo italiano decretou o estado de emergência humanitária e para tentar controlar a situação vai oferecer á Tunísia uma rede de radares, uma frota de embarcações rápidas e um cheque de 100 milhões de euros.

Estão também a chegar à Sicília barcos provenientes do Egipto com centenas de jovens, muitos de menor idade, que fogem das terras faraónicas após a queda do Raïs. O alastrar da contestação a todo o norte de África e Médio Oriente poderá significar que a Europa ficará braços com um problema de imigração ilegal único na sua história.

A União Europeia está a tomar providências (aliás inúteis) para evitar a entrada de clandestinos. A hipótese de uma distribuição dos emigrantes ilegais pelos países da União contou desde logo com a oposição do ministro do Interior alemão Thomas de Maiziere, tendo igualmente o governo de Sarkozy declarado que a França não aceitará nenhum emigrante tunisino que não possua um visto válido de entrada.

Recordo o que escrevi aqui há dias sobre a imigração ilegal, citando Umberto Eco. Eles entrarão quer a Europa queira quer não.

Importa acrescentar que estes novos migrantes, na sua quase totalidade jovens, trabalhavam (a maior parte) na  indústria turística, de forma legal ou ilegal. Passo a explicar. O derrube dos regimes tunisino e egípcio levou à queda abrupta da actividade turística dos respectivos países, já que os turistas em grupo ou os viajantes mais ou menos solitários cessaram as suas viagens para aqueles países. Que não retomarão tão cedo, pelo menos enquanto não estiver restabelecido um clima de tranquilidade e segurança. Ora o turismo constituía uma das principais fontes de emprego naqueles países. Os hotéis, os restaurantes, os bares, os transfers, os táxis, as piscinas, as praias, os bazares, os vendedores ambulantes, as lojas de pseudo-antiguidades, as lojas normais, as excursões, os passeios de barco, os desportos náuticos, e tudo o que se relaciona com estas actividades, empregavam muitos milhares, ou até milhões, de pessoas.

A esta actividade turística legal e sujeita a impostos (quando não se consegue proceder à evasão dos ditos), existe nestes países uma outra actividade turística (não tributada) e não legal, embora tolerada (e que é há séculos um dos apanágios do mundo árabe -  Gide, Foucault, Genet, Barthes, T. Williams, Gertrude Stein, Marguerite Yourcenar, poderiam esclarecer-nos, e esclareceram-nos, algo a esse respeito). É uma actividade discreta (nem sempre) que proporciona um amistoso convívio entre os autóctones e os estrangeiros, independentemente de idades ou sexos. Há toda uma literatura a este respeito. A prática desse convívio, para quem não tinha emprego certo, ou até para quem o tinha, sempre permitiu aos indígenas auferirem ao longo de décadas (e enquanto a idade lhes permitia) importâncias não despiciendas, em troca da satisfação que a sua actividade proporcionava aos visitantes. E para além dos encontros ocasionais de quem visita apenas uma vez um país, com os visitantes reincidentes estabeleceram-se ligações que perduraram no tempo, forjaram-se amizades de vidas, concluíram-se casamentos e uniões de facto, arranjaram-se passaportes e vistos, e por aqui me fico que a lista já vai longa.

Os políticos árabes, conhecedores deste fenómeno, que favorecia a economia e mantinha uma tradição nacional e civilizacional, sempre toleraram comportamentos, que muitas vezes contrariavam a ortodoxia religiosa. Os políticos europeus, a maior parte (não todos) indigentes mentais, nunca compreenderam esta realidade ou fizeram o possível por ignorá-la. Estas "trocas" ajudavam a manter o stau quo. Agora que o Maghreb e o Mashreq começam a desmoronar-se, há que encontrar soluções que permitam reequilibrar o sistema. Quem estará à altura de conceber tal desígnio, não um desígnio nacional ou europeu mas um desígnio intercontinental?

Não se sabe.

1 comentário:

ZÉ DOS ANZÓIS disse...

Sou totalmente favorável à distribuição dos árabes clandestinos por toda a Europa, ao contrário do idiota ministro do interior da srº Merkel. Repartam-se proporcionalmente segundo as nacionalidades, os sexos (parece que só há o masculino), as idades, e em função da populações de cada país da EU.

Se não se fizer esta distribuição racional e se procurar um certo enquadramento enquanto
e possível, com as vagas futuras, inevitáveis, será tudo mais complicado. Os governantes europeus não percebem ou não querem perceber. pior para eles e pior também para nós.

Tempos difíceis.