Quando no Verão de 2000, sob um calor sufocante, passei uma semana em Belgrado, não deixei obviamente de visitar o Museu Nacional. Ignorava então tudo do caso Chlomovitch. A minha estada na capital sérvia era de alguma forma uma contrição pelos bombardeamentos da NATO ocorridos no ano anterior, por insistência americana, a fim de conduzir a Jugoslávia à esfera da democracia, leia-se, à esfera da economia de mercado ultra-liberal. Para os americanos e alguns europeus, o regime de Slobodan Milosevic constituía um empecilho, depois da queda do muro de Berlim e do desmoronamento da União Soviética. Importava, pois, bombardear Belgrado e a Sérvia e desintegrar a Jugoslávia, já então em fase de estertor. Vi, em Belgrado, na Kneza Milosa, os edifícios destruídos de alguns ministérios, bem como as consequências dos ataques à embaixada da China e à Televisão.
A minha visita ao Museu Nacional foi rápida. Na ausência de ar condicionado (as refinarias tinham sido bombardeadas e o combustível escasseava), as janelas abertas não conseguiam disfarçar os 46º centígrados do exterior. Adquiri o modesto catálogo na única versão disponível, em alemão, que só viria a consultar alguns anos mais tarde. Nem me preocupei em averiguar porque várias salas estavam encerradas.
Voltei este ano a Belgrado, com temperatura amena e a firme intenção de revisitar o Museu, agora que já conhecia a extraordinária história da colecção Chlomovitch. Fi-lo no primeiro dia desta minha segunda estada, mas não passei da porta de entrada. O Museu encontrava-se temporariamente encerrado. Não foi para mim uma total surpresa, pois lera algum tempo antes, numa publicação especializada, que o Museu Nacional se encontrava fechado a maior parte do tempo. Ignoro porquê e os guardas da entrada, que só falavam sérvio, nem sequer tentaram dar-me alguma explicação.
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O caso Chlomovitch encontra-se pormenorizadamente descrito no livro Dosije Slomovic, de Momo Kapor, traduzido para francês com o título Le mystère Chlomovitch. O autor, Momcilo (Momo) Kapor (1937-2010), que morreu em 3 de Março deste ano, foi o mais popular dos escritores jugoslavos do Pós-Guerra, com cerca de quarenta obras publicadas. Romancista, mas também pintor, argumentista, ensaísta, diplomou-se em 1961 pela Academia de Belas-Artes de Belgrado, expôs na Europa e nos Estados Unidos e está traduzido em mais de vinte línguas. Pertenceu à Comissão para a Protecção da Verdade, de Radovan Karadzic, e foi testemunha de defesa de Slobodan Milosevic, no Tribunal Internacional da Haia.
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Momo Kapor |
(Milosevic morreu durante o julgamento, nunca se tendo esclarecido inequivocamente se foi de morte natural ou devido a suicídio ou assassinato).
Contemos então a história.
Em 1928, um jovem judeu jugoslavo de 13 anos, Erich Chlomovitch, estudante do liceu e que se apaixonara por uma obra que lhe caíra nas mãos, La Vie et l'Oeuvre de Pierre-Auguste Renoir, de Ambroise Vollard (editada em Paris em 1919), escreveu ao seu autor um bilhete dizendo-lhe que quando fosse grande gostaria de ser como ele. Vollard, grande especialista de arte moderna, galerista famoso, íntimo e biógrafo dos maiores artistas da época, organizador das primeiras exposições de Cézanne, Picasso e Matisse, achou curiosa a missiva do jovem e respondeu-lhe pelo seu punho, convidando-o a visitá-lo quando fosse a Paris.
Em 1935, com 20 anos, Chlomovitch chega à capital francesa e bate à porta de Vollard, mostrando-lhe a carta que dele recebera. Por insondáveis desígnios do destino, Vollard admite-o imediatamente como seu secretário e apresenta-o a todos os grandes pintores do seu círculo. O jovem, que então possuía já uma profunda sensibilidade artística, torna-se no braço direito do famoso galerista. Constou então, e continua a afirmar-se, que Chlomovitch, em cuja vida não existe uma única mulher, se tornara amante de Vollard. Durante quatro anos, Chlomovitch contacta os nomes mais famosos do impressionismo, auxilia o galerista com uma dedicação inexcedível e começa a fazer as suas próprias aquisições. Em 1939, Vollard morre num acidente de automóvel e, para espanto geral, deixa ao jovem, em testamento, a parte mais importante da sua grandiosa colecção de obras de arte.
Após a morte de Vollard, Chlomovitch regressa a Belgrado acompanhado pela sua preciosa colecção de pinturas, esculturas, fotografias, livros de arte, etc. onde figuram obras de Matisse, Cézanne, Renoir, Picasso, Degas, Roualt, Pissarro, Bonnard, Chagall, Dufy, Gauguin, Forain, Redon, Derain, Maillol, Le Corbusier, Daumier, etc. Quer expô-las na capital do Reino da Jugoslávia. De preferência no Museu do príncipe Paulo, o Regente (hoje Museu Nacional), mas Sua Alteza não se mostra interessada, apesar do inestimável valor das obras. Chlomovitch resolve então optar por Zagreb, a segunda cidade do país, onde apresenta finalmente a colecção, em 1940, na Casa das Belas Artes. Contudo, a estada em Zagreb não o entusiasma e, reembaladas as obras, regressa a Belgrado.
Em 25 de Março de 1941, o governo jugoslavo do príncipe Paulo adere ao Pacto Tripartido (Alemanha, Itália e Japão) e a 27 há um golpe de Estado no país. O regente é expulso, o jovem rei Pedro II, de 18 anos, assume efectivamente o poder e o novo governo demarca-se do Eixo. Em 6 de Abril, Hitler, como represália, manda bombardear Belgrado, considerada como cidade aberta, fazendo 17.000 mortos, e invade a Jugoslávia
Perante a nova situação, os Chlomovitch, sendo judeus, decidem abandonar Belgrado. Assim, Erich, com seu irmão Egon, o pai Bernard e a mãe Roza, e as obras de arte, tomam o caminho de Varvarin, no centro da Sérvia. Daqui partem para a vila de Bacina, onde se instalam o mais discretamente possível. As caixas com o tesouro são enterradas numa cozinha e construído um muro de protecção. Pouco tempo depois as tropas alemãs passam pela vila e, talvez devido a uma denúncia, identificam Chlomovitch como judeu e prendem-no bem como ao pai e ao irmão. Nunca mais serão vistos.
Em 1944, estando parte da Sérvia libertada das tropas nazis, Roza Chlomovitch visita em Belgrado Ivan Ribar, presidente da Assembleia Popular Provisória e amigo de longa data da família. Conta-lhe toda a história e pede-lhe ajuda para transportar a colecção, que deseja oferecer ao Museu Nacional, devendo ficar numa ala com o nome do filho. Ribar dá ordem para que a mesma seja embarcada em Bacina num vagão especial com destino à capital. Acompanham a preciosa carga Roza Chlomovitch, uma prima afastada, Mara Herzler e duas crianças, filhas desta. Mas perto de Velika Plana, de madrugada, acontece o imprevisível. O comboio colide com outra composição transportando tropas búlgaras. Várias carruagens são destruídas. Roza e as duas crianças têm morte imediata. Mara Herzler sobrevive.
Parece que uma maldição caiu sobre a invejada colecção. Durante um tempo não se fala dela, até que a segurança do Estado toma conhecimento, através de escutas telefónicas a um adido de imprensa ocidental, conhecido por Mr. Clifford mas de quem nunca se soube o verdadeiro nome, que alguém, em Belgrado, desejava vender parte da colecção dos mestres franceses. Recorde-se, a propósito, que Lawrence Durrell era, ao tempo, adido de imprensa da embaixada britânica em Belgrado e é dessa altura o seu romance Águias Brancas sobre a Sérvia. Entretanto, a polícia, já em campo, dá-se conta da existência de outro potencial comprador da colecção invisível, o embaixador de um país importante, recentemente chegado a Belgrado. Em 1948, iniciam-se investigações sistemáticas para encontrar Mara Herzler, que é finalmente descoberta na sua nova morada em Prizren, no Kosovo, rebaptizada como Mara Albahari, devido ao seu novo casamento. Intimada pelas autoridades, Mara revela que as caixas se encontram em Belgrado, na praça Slavija, confiadas à guarda do antigo comerciante Perisa Velykovic, que é obrigado a entregá-las.
A colecção será então exposta à porta fechada no ministério do Interior, sendo convocados para a identificação das obras, sob juramento de silêncio, os mais destacados especialistas de arte do país. Saber-se-á depois que Mara, cunhada de Erich, conservou a colecção em seu poder até ao Outono de 1947, altura em que, tendo morrido o marido e os filhos, se voltou a casar.
A colecção foi enfim entregue ao Museu Nacional, em 1949, constando, segundo inventário, de 321 obras, mais exactamente 163 quadros e 158 gravuras, litografias e águas-fortes, ou seja um número inferior das obras apresentadas em 1940 em Zagreb. Em 1989, o historiador de arte Vlado Buzancic afirmava que o Museu possuía 352 obras da colecção Chlomovitch. Este tesouro repousa ainda hoje nas caves blindadas do Museu.
Todavia, em 1980, tivera lugar um golpe de teatro. Um empregado da Société Générale, em Paris, verificou que o aluguer de um dos cofres-fortes do banco expirara em 1943. Aberto o mesmo na presença das autoridades, encontrou-se uma parte ignorada da colecção Chlomovitch, composta por 190 quadros, gravuras, esboços, fotografias, primeiras edições, etc. dos mais importantes mestres franceses, muitas das obras até então ignoradas. O banco, para se ressarcir do não pagamento do aluguer, promoveu a venda em leilão das obras, que teria lugar no Hôtel Drouot, onde estiveram expostas para contemplação dos apreciadores, não fora o recurso apresentado pela embaixada da Jugoslávia em Paris. Aceite o mesmo, a venda foi interdita e a colecção recolheu aos cofre-fortes, desta vez da Banque de France.
No que respeita à parte francesa da colecção, os herdeiros potenciais em 1981 eram a tia de Erich, Hilda Fleischmann, a prima Judita Herzler e os filhos da tia, Ruben e Rutka Godfinger, todos a viver em Israel, e ainda Mara Albahari, viúva de Friedrich Herzler. Em 1996, um tribunal de Amiens, declarou que o proprietário legal das obras depositadas no banco francês era Louis Sébastien, então de 75 anos, como herdeiro de Ambroise Vollard, ainda que nenhuma constasse do inventário elaborado aquando da morte deste.
Aguarda-se uma longa batalha jurídica, e internacional, para determinar afinal, a quem pertencem as obras agora depositadas na Nanque de France e no Museu Nacional de Belgrado.
A história desta colecção, e as vicissitudes que a têm acompanhado, constituem, sem dúvida, um folhetim apaixonante.