
As crianças têm as costas largas e são pretexto para a cruzada fundamentalista que percorre o mundo globalizado. Nunca se define, exactamente, quem é uma criança, já que rapazes e raparigas de menor idade legal praticam, conscientemente, actos que muitos adultos, com experiência da vida, nem sequer imaginam. Portugal também não foge à regra e basta recordar o delírio da comunicação social nos primeiros tempos do processo Casa Pia (aliás, tendo na base motivos políticos, como afirmou publicamente na televisão o bastonário da Ordem dos Advogados António Marinho e Pinto) para confirmar a histeria (e oportunismo) com que os media, nomeadamente a televisão, trataram o assunto.
A matéria remete-nos para a difícil relação que as religiões monoteístas sempre mantiveram com o sexo. Lembremo-nos das declarações dos últimos dias, proferidas nas "novas conferências do Casino" pelo cardeal José Policarpo (alertando para o perigo dos casamentos de raparigas católicas com rapazes muçulmanos) ou pelo cardeal Saraiva Martins (considerando a homossexualidade uma anormalidade), sendo que as afirmações deste último, para além da irracionalidade da doutrina que defende, são uma tontice na sua formulação, o que leva a interrogarmo-nos como uma figura tão néscia tenha chegado á condição de eminente purpurado.
A cruzada fundamentalista não é um exclusivo da religião cristã (nas suas vertentes católica, protestante ou ortodoxa). Também o islão e o judaísmo perseguem objectivos idênticos e acabam, em muitos casos, por se tornarem aliados conjunturais. Por exemplo, os trabalhadores egípcios que passam alguns anos nos países do Golfo, ficando imbuídos da rígida doutrina wahhbita, quando regressam à pátria proíbem muitas vezes os filhos de falar com os seus compatriotas coptas, para não estabelecerem contactos com "infiéis" (cf. John R. Bradley, Inside Egypt, 2008) . Também os cristãos evangélicos americanos, nomeadamente as seitas born-again, a que pertence o homúnculo G. W. Bush, estão empenhadas no combate ao vício (leia-se, ao sexo) e na defesa da virtude (leia-se da hipocrisia do puritanismo), e para estenderem o Reino dos Céus apoiam, por exemplo, os israelitas no seu extermínio dos palestinianos, pois, segundo dizem, quando toda a Terra Santa se converter ao judaísmo, os judeus converter-se-ão ao cristianismo, e voltará o Messias, no fim dos tempos.
Não está, assim, a Terceira República imune às tentações censórias, como não estivera a Primeira República que, em 1923, proibiu a representação, por imoralidade, da peça Mar Alto, de António Ferro, o que motivou um veemente protesto subscrito por dezenas de intelectuais, entre os quais Fernando Pessoa, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão, António Sérgio e Raul Proença.
Ainda em 1923, Fernando Pessoa publicara o Aviso por Causa da Moral, em defesa de António Botto e contra a cruzada moralista dos estudantes de Lisboa. E, em 1966, o Estado Novo apreenderia a obra Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia.
Vemos, agora, em plena democracia, que não só os escritos mas também as artes plásticas são objecto de uma tal tentação, recordando a época em que os papas mandavam tapar com parras os sexos generosos das estátuas do Vaticano ou cobri-los nas pinturas de Miguel Ângelo na Capela Sixtina.
Deseja-se, portanto, que haja bom senso e bom gosto, que cessem os atentados contra a arte, plástica ou poética, e que não se confunda o erotismo com a pornografia.