A biografia de Júlio César, por Luciano Canfora, refere, logo no início, uma afirmação de Bertolt Brecht: «En écrivant le César, je n'ai pas à croire un seul instant, je le découvre maintenant, que les choses devaient obligatoirement se passer comme elles se sont passés» (Brecht, no seu "Diário de Trabalho" (Arbeitsjournal), de 23 de Julho de 1938, que testemunha uma concepção precoce do seu livro, aliás inacabado, Die Geschaefte des Herrn Julius Caesar, publicado em 1957, e editado em português, em 1962, com o título Os Negócios do Senhor Júlio César, em tradução do poeta António Ramos Rosa, quando as traduções ainda eram efectuadas por pessoas com um adequado nível de cultura.
Resolvi, por isso, reler este romance de Brecht que se distingue na sua produção literária, quase integralmente dedicada ao teatro, onde introduziu o "efeito de distanciação", coisa que estudei quando era novo, e que esteve na base do teatro didáctico ou narrativo, por oposição ao teatro dramático.
Já não me recordava do texto, lido há uns cinquenta anos, e que é uma original abordagem de um período da vida de César. Imagina Brecht um cidadão romano, anos depois da morte do Ditador Vitalício, tentando obter de um agente fiscal um Diário que teria sido escrito por um escravo, Raro, que durante anos fora secretário de César. Anota Raro as atribulações da carreira do Divino Júlio, as suas permanentes dívidas, o arresto periódico de alguns dos seus bens, as suas conspirações políticas, tudo isto numa atmosfera de uma Roma mergulhada em problemas financeiros, que Brecht faz corresponder a uma City, usando a linguagem dos banqueiros e dos empresários dos nossos dias. Exercício largamente irónico, realizado numa perspectiva marxista, em que o autor pretende transmitir-nos a alienação do mundo capitalista, recorrendo a factos reais como o negócio dos escravos, a questão agrária, a distribuição do pão e tantas outras facetas que povoavam o quotidiano de Roma. Aproveita Brecht para alternar as vicissitudes do imperator, descritas pelo escravo Raro, com considerações deste sobre a sua própria vida, ilustrando os costumes da época. Não se coíbe Raro, em muitas das entradas do Diário, de se lamentar das infidelidades do seu jovem amante Caébio (cidadão romano), que mantém por conta, e que acaba por abandoná-lo, passando-se para os partidários de Catilina, por Raro não lhe ter montado uma loja de perfumes, como lhe prometera. Uma fina ironia, um escravo sustentar um homem livre em troca de favores sexuais.
Apesar do texto ser em alguns momentos repetitivo quanto às matérias tratadas, este livro ilustra bem as preocupações económicas, financeiras e sociais no fim da República e alguns aspectos menos conhecidos da vida doméstica quotidiana de Júlio César.
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