Li agora Les dames de Rome (2012), II volume da Tetralogia de Françoise Chandernagor La reine oubliée.
As "Senhoras" de Roma são as damas de elevada condição da sociedade romana que gravitavam na capital do Império em torno de Octávia Júlia Thurino, irmã de Octávio César Augusto, entre as quais Lívia, a mulher do próprio imperador ou Pompónia, mulher de Marcus Agrippa.
Recordemos que os filhos de Cleópatra VII, Alexandre Hélios, Cleópatra Selene e Ptolemeu Filadelfo foram enviados para Roma, na sequência do suicídio da mãe, a fim de figurarem no terceiro desfile do Triunfo de Octávio, celebrando a vitória sobre Marco António e a conquista do Egipto (15 de Agosto de 29 AC).
As crianças (Ptolemeu Filadelfo morreria a seguir ao desfile) ficaram à guarda de Octávia, que, não podendo abrigar na sua nova casa a colecção de arte que possuía na casa que fora de Marco António, "coleccionava" agora crianças, os seus filhos e os filhos dos seus parentes. Exemplifiquemos: habitavam em casa de Octávia os filhos do seu anterior casamento com Cláudio Marcelo (Marcelo, que Augusto adoptaria como filho, Cláudia Marcela Maior e Cláudia Marcela Menor); os filhos do seu casamento com Marco António (Antónia Maior e Antónia Menor); o filho do casamento de Marco António com Fúlvia (Iullus; o outro filho, Antyllus, tinha sido mandado assassinar por Octávio ainda em Alexandria); Júlia, a Velha (a filha de Octávio, do seu primeiro casamento com Escribónia); Vipsânia (filha única de Marcus Agrippa); Lucius Domitius Ahenobarbus (filho de Domitius Ahenobarbus e de uma parente do trúnviro Lépido), que viria a casar com Antónia Maior, filha de Octávia; os filhos do primeiro casamento de Lívia Drusila, agora mulher de Octávio, com Tibério Cláudio Nero (o futuro imperador Tibério, adoptado por Octávio, e Nero Cláudio Druso) e, a partir de 29 AC, os filhos de Cleópatra e Marco António (Alexandre Hélios e Cleópatra Selene), além de ainda mais alguns parentes chegados.
Octávia, nesta altura a Domina de Roma, afeiçoava-se extraordinariamente às crianças, apesar de ter de cuidar dos bens pessoais da família, agora que o seu irmão Octávio se tornara imperador. Note-se que a designação latina de Imperator já fora usada por Júlio César e também António a usara. Octávio viria a ser também César, Princeps, o primeiro dos seus pares senadores, e, por fim, Augusto (o Divino), por proclamação do Senado Romano, além de sucessivamente Cônsul até morrer. Por isso, foi considerado o primeiro imperador de Roma. O seu nome próprio (tal como o de Júlio César) era Gaius (ou Caius). E sendo Octávio o nome da família, Octávio passou a designar-se Octaviano.
Os Octavii não faziam parte das principais famílias aristocráticas, embora tentassem "enobrecer-se" com o passar do tempo. Grandes famílias eram os Iullii, os Claudius, os Marcelli, os Antonii, os Lepidii, os Domitii, que partilhavam o poder, e o dinheiro, em Roma.
Em certa altura, Nicolau de Damasco, antigo preceptor dos filhos de Cleópatra que se passara para o lado de Octávio, trouxe para Roma Alexandre e Aristóbulo, filhos do rei Herodes da Judeia e de sua segunda mulher Mariamne, que este mandara executar dois anos mais cedo por adultério. Herodes entregou os dois rapazes, de uma dúzia de anos, à protecção de Octávio, como penhor de fidelidade. É claro que vieram engrossar o lote de crianças residentes em casa de Octávia, onde em breve se lhes juntou, também, o jovem Tigrane, filho do novo rei da Arménia.
Alexandre Hélios morreria pouco depois do irmão Ptolemeu Filadelfo. Uma morte quase súbita. O rapazinho queixou-se de ter sido envenenado mas nada se provou a tal respeito. Octávia desconfiou de feitiçaria (!) e mandou matar a velha ama que viera de Alexandria com as crianças. Agora só restava Selene.
No livro, Françoise Chandernagor procede a uma interessante descrição da vida quotidiana das famílias romanas e das idossincrasias de Octávio, um ser que ela resolutamente detesta (e com razão) e que disfarçava a sua crueldade sob a capa da "clemência de Augusto", virtude que realmente não exerceu. Na verdade, o imperador viveu sempre aterrorizado pela possibilidade de ser assassinado, como acontecera a seu tio-avô e pai adoptivo, Júlio César. Ao longo do texto, tal como no volume anterior, a autora disseca psicologicamente a figura de Augusto, nas suas hesitações e contradicções, e mostra como, embora mantendo as instituições da República, o seu progressivo aumento de poder o tornou no autêntico senhor de Roma, levando os historiadores a considerá-lo o primeiro imperador romano.
A propósito do riquíssimo Caio Mecenas, amigo e protector dos poetas e dos artistas (Horácio, Vergílio, Propércio), e também amigo de jovens (entre os seus amantes conta-se o célebre Bathyllus, mimo de Alexandria que foi seu escravo e depois liberto) e que serviu como "ministro" da Cultura de Augusto, de quem era muito próximo, e também responsável dos serviços secretos do imperador, refere a autora: «Il y a bien des avantages à ce que le chef de la police soit en même temps ministre de la culture. La censure devient critique de connaisseur, la propagande, "art responsable"...» (p. 252)
Não constitui surpresa para alguém que Augusto se serviu dos poetas para dourarem a sua imagem. E alguns destes, ainda que inicialmente resistentes, acabaram por se deixar seduzir ou intimidar pelo imperador. Escreve Chandernagor: «Un écrivain rampant, voilà ce qu'est devenu Properce. Nous aussi, nous connaissons ces métamorphoses - quand, pour séduire un Staline, un Mao, le prince des poètes devient crapaud... Mais en ces temps lointains, c'était neuf. Rendons à Auguste ce qui est de Auguste: en politique il a tout inventé, y compris l'embrigadement des plumitifs. Properce y perdu sont talent, puis sa vie.» (pp. 253-4)
Octávio Augusto empenhou-se em promover casamentos no seio da própria família. Assim, determinou que Marcelo, filho de sua irmã Octávia, desposasse Júlia, sua filha do primeiro matrimónio. Tornado genro e sobrinho do imperador, a Marcelo estava prometido um futuro auspicioso. Mas quis o destino que Marcelo morresse quase subitamente de uma febre, quando se encontrava em Baiae, na Campânia, apenas com 19 anos, pouco tempo depois do imperador ter sobrevivido também a uma estranha febre. Marcelo foi a primeira pessoa a ser sepultada no Mausoléu, ainda inacabado, destinado a Augusto. Octávio seguiu o féretro de cabeça baixa. Para ele, mais do que um desgosto familiar era uma catástrofe política. «Malgré son désarroi, il parvient à accélérer, car il ne doit pas se laisser rattraper. Pour le bon ordre de la cérémonie, L'ordre du monde. L'Ordre.» (p. 312)
«Cet enterrement de Marcellus, si singulier à nos yeux, je n'ai jamais pu le revoir sans entendre en même temps la musique que Purcell composa pour les funerailles de la reine Mary: l'appel solemnel des trompettes, le roulement sourd des timbales. Une marche lente, ponctuée de martèlements de plus en plus violents, un ligne mélodique simple, soutenue d'un crescendo propre à inspirer terreur et respect.» (p. 316)
Sobre Augusto: «Car il a toujours eu conscience de vivre derrière un masque. De parler du haut d'une scène. Il a toujours su que son métier était de feindre pour représenter. De tromper son public pour le dominer. S'il paraît si grand, c'est qu'on l'a juché sur des cothurnes. Et chaque nuit il fait le même cauchemar. Il rêve qu'à l'instant de jouer son rôle, lui le gringalet, le souffreteux, reste sans voix. La foule rougit, mais son dompteur n'a plus de fouet, son dompteur est aphone... "Si la comédie vous a plu, applaudissez."» (p. 341)
A autora prossegue com a descrição do ambiente em Roma, das intrigas, do luto de Octávia, que começa a desconfiar que o seu filho Marcelo foi envenenado. E suspeita de Lívia e das suas ambições quanto ao futuro dos seus filhos. Encontrando-se agora viúva a filha de Augusto, Júlia, Octávia imagina que Lívia a pretenda casar com seu filho Tibério e, numa jogada de antecipação, sugere a Augusto que case a filha com Agrippa, embora este seja casado com Marcela, a sua própria filha. O imperador aceita e Agrippa repudia Marcela para casar com Júlia. Entretanto é arranjado o casamento de Marcela com Iullus.
Através das pontuais aparições de Selene no romance, quase sempre de ficção já que sobre ela não há nesta época praticamente qualquer registo histórico, a autora compraz-se em descrever os jogos de poder e as preocupações quotidianas. E discorre sobre os enfants délicieux que povoavam as casas dos notáveis romanos.
«Dans sa jeunesse donc, Auguste, malgré son prétendu coup de foudre pour Livie, avait eu des maîtresses. Mais ensuite? Il eut, en tout temps, des enfants délicieux: c'était une question de standing. Les enfants qu'il achetait, le maître du monde les préférait maures ou syriens, dit-on. Sans doute échangeait-il avec eux quelques caresses et de long baisers "sur la bouche": un homme incapable d'apprécier sensuellement la peau des enfants, leur haleine parfumée et le doux toucher de leurs petites mains serait passait, en ce temps-là, pour un rustaud. Mais qui disait sensualité ne disait pas forcément sexualité: Auguste jouait avec ses enfants délicieux, il ne les violait pas.
Son goût, de toute façon, ne le portait pas vers les garçons. En revanche, comme "l'empereur" Mao, il aimait dépuceler les fillettes - fillettes au sens ancien du terme, c'est-à-dire, selon le Grand Robert, "jeunes filles peu formées", préadolescentes. À propos d'Auguste, les historiens latins parlent en effet de puellae, et non de puellulae. Des "nymphettes", aurait dit Nabokov. Une fille romaine étant considérée comme nubile à douze ans (et souvent fiançée et "consommée " avant cet âge), on peut penser que les petites esclaves ou, horresco referens, les "fillettes" libres que se faisait livrer le Prince avec la complicité de Livie avaient entre dix et quatorze ans. Peut-être un peu moins... Il est vrai que, pour un Romain, l'âge ne faisait rien à l'affaire. L'atteinte à la virginité était déjà plus transgressive. Mais la perversion ultime consistait à mépriser les statuts juridiques - une hiérarchie sexuellement codifiée que traduit bien un mot d'esprit qui, paraît-il, enchanta Auguste: "Prêter son cul est une infamie pour l'homme libre, un devoir pour l'esclave, et une politesse pour l'affranchi..."» (pp. 424-4)
Entre casamentos, divórcios, recasamentos, Octávia, que depois da morte do filho e o êxodo das "crianças" agora já casadas, vivia quase em clausura, tendo mesmo deixado de receber os poetas e os aristocratas da cidade, decidiu jogar uma última cartada. Restava-lhe Selene, que não pensava em casar, atendendo à damnatio memoriae que caíra sobre os pais. Pois bem, a irmã de Octávio convenceu o imperador a autorizar o casamento de Selene com o ainda jovem Juba, filha do rei Juba I da Mauritânia, que Júlio César trouxera para Roma em miúdo e entregara aos cuidados da sua família. Assim, imprevisivelmente, Cleópatra Selene veio a tornar-se, pelo casamento com Juba II, agora colocado no trono da Mauritânia e Numídia, uma rainha, não com o prestígio da sua mãe, mas mesmo assim rainha. A linhagem dos Ptolemeus iria continuar.
O casamento de Selene (então com 20 anos) com Juba (então com 29 anos) teve lugar em 19 AC. Juba II era um homem muito letrado, que seguira em Roma uma educação clássica sob a supervisão de Júlio César e depois do seu assassinato, da familia deste.
Importa referir que a Mauritânia romana nada tem a ver com a actual República da Mauritânia. Aquela situava-se no território sensivelmente correspondente ao norte da Argélia actual. Quando morreu, Selene foi sepultada no Mausoléu Real da Mauritânia, em Tipasa, próximo de Argel. Mas os próximos acontecimentos da vida de Selene serão tratados nos restantes dois volumes da tetralogia de Françoise Chandernagor.
Não se tendo tornado uma figura da História Universal, como sua mãe Cleópatra VII, mesmo assim, Cleópatra Selene não ficará como reine oubliée: para a sua recordação este contributo de Françoise Chandernagor é uma peça importante!