Há uns vinte anos, desloquei-me várias vezes a Alexandria (já lá estivera anteriormente) para proceder a pesquisas com vista à elaboração de um trabalho cujo projecto ganhara, muitos meses antes, o concurso para criações multimédia organizado pelo Ministério da Cultura. Competia-me escrever um texto sobre a cidade desde a sua fundação até à actualidade, fazer as fotografias e obter os mapas necessários (1ª fase) e ao produtor estabelecer o suporte digital (2ª fase). O concurso tinha, pois, duas fases. Apresentada a 1ª fase, que foi aprovada pelo Ministério, procedeu-se à candidatura para a 2ª fase, mas uma mudança de Governo levou à extinção do projecto, não sendo coroadas de êxito as diligências a que então procedi junto do responsável da pasta e seus diretores-gerais para uma publicação do trabalho em livro.
Posteriormente, teve lugar a revolução no Egipto, no quadro das chamadas "primaveras árabes", e acabei por me desinteressar do assunto, até porque as novas circunstâncias implicavam uma actualização do texto e consequentes deslocações à cidade.
Vem isto a propósito do facto de também eu me ter interessado, em Alexandria, pelo lendário túmulo de Alexandre Magno, embora a preocupação do meu trabalho incidisse principalmente sobre a antiga Biblioteca e Museu e os vestígios arqueológicos da cidade, a par da cidade moderna.
Existe, ainda hoje, a tradição de que o túmulo do famoso guerreiro se encontrava num local com acesso por um túnel que começava sob a mesquita de Nabi Daniel, situada próximo da Estação Ferroviária Central de Alexandria (Mahatat Misr-محطة مصر ) Havendo um poço dentro da mesquita com acesso a esse túnel, cheguei a descê-lo na companhia de um jovem universitário funcionário da Delegação em Alexandria da Direcção-Geral do Turismo do Egipto e que (nessa viagem) tinha sido colocado ao meu serviço para servir de intérprete nos meus contactos nos sítios em que os meus interlocutores só falassem árabe (o meu árabe é rudimentar), como, por exemplo, nas conversas com os imames das mesquitas.
Ainda caminhámos uns metros por esse túnel, mas nada se descortinando resolvemos regressar à superfície, através da escada de madeira que a mesquita tinha facultado para o efeito.
Por causa desta minha paixão alexandrina, comprei por essa altura dezenas de livros sobre Alexandria (a ptolemaica, a romana, a bizantina, a islâmica (árabe e otomana), a da ocupação britânica, a monárquica e a republicana.
O livro que agora leio foi adquirido nessa ocasião e tenho especial prazer em recordar coisas que então vi, li, escrevi e vivi. Alexandria é um mundo e por isso eu tinha intitulado o meu trabalho: "Alexandria, Ainda e Sempre", que é também o título de um filme do famoso realizador egípcio Yussef Chahine.
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Entre os diversos livros que tenho sobre Alexandre, o Grande tenho dois concretamente sobre o seu túmulo. O que agora comento, The Lost Tomb of Alexander the Great (2004/2005), de Andrew Michael Chugg e Le Tombeau de Alexandre le Grand (2009/2010), de Valerio Manfredi.
Começa o primeiro livro por nos fornecer algumas informações acerca do homem e do seu tempo, antes de se debruçar sobre o caso particular do túmulo.
Diz-nos Chugg que existindo mais de um milhar de livros relativos a Alexandre (356-323 AC), em mais de cem línguas, o único livro publicado especificamente sobre o túmulo data de há dois séculos: The Tomb of Alexander (1805), de Edward Daniel Clarke. Após a sua morte em Babilónia, em 10 de Junho de 323 AC, Alexandre terá sido sepultado em Mênfis, uma das antigas capitais egípcias, por decisão de Ptolemeu I e mais tarde trasladado para Alexandria por Ptolemeu II. O túmulo terá sido destruído pelos terramotos que devastaram a cidade nos séculos III e IV da nossa era. A Igreja Copta ter-se-á oposto à reconstrução do monumento, pois sendo Alexandre considerado um deus ela via nele um potencial rival pagão. Após a conquista de Alexandria pelos árabes em 642, o assunto mergulhou no esquecimento durante um milénio e só no século XVI os visitantes voltaram a interessar-se pelo túmulo. No século XIX, com o progresso das escavações na cidade, a questão voltou à ordem do dia.
O livro inicia-se com a indicação das fontes históricas antigas e modernas (Dramatis Personae), ainda que inclua no fim uma extensa bibliografia sobre a matéria.
Importa fazer desde já uma referência a dois textos menos conhecidos: o Romance de Alexandre e o Diário Real de Alexandre (Ephemerides).
O Romance de Alexandre é um conto lendário da carreira militar de Alexandre atribuído a um editor nativo egípcio do século III. Ainda que muito fragmentado é uma obra valiosa pois preserva algumas tradições perdidas dos mais autorizados relatos do tempo. O seu criador foi provavelmente um habitante da antiga Alexandria. O compilador é conhecido como Pseudo-Calístenes porque alguns dos seus manuscritos são atribuídos a Calístenes, historiador da corte de Alexandre. Sobrevive hoje em diversas versões, das quais as mais antigas e fidedignas são um manuscrito grego do século III, a tradução arménia e a edição latina de Julius Valerius.
O Diário Real de Alexandre (Ephemerides) é a fonte principal sobre a doença fatal de Alexandre. Muitos consideram-no uma falsificação mas diários oficiais semelhantes foram conservados pelos antigos reis da Macedónia e pelos Ptolemeus. Aelianus atribui as Ephemerides a Eumenes de Cardia, "secretário-geral" de Alexandre, que teriam sido escritas de parceria com Diodorus da Eritreia.
Ainda na Introdução, o livro apresenta um resumo dos feitos de Alexandre III, o Grande.
O Capítulo I é dedicado à morte em Babilónia. Não está esclarecido se Alexandre morreu de doença natural ou se foi envenenado. Há numerosos relatos da sua doença, que se manifestou em 31 de Maio e culminou com a sua morte em 10 de Junho. Foi embalsamado em 16 de Junho e como o corpo se encontrava incorrupto há quem afirme (para lá dos que justificam o caso com o facto de ele ser um deus) que tal se deveu ao facto de não estar ainda morto mas tão só em estado de coma. Assim, teria sido embalsamado vivo. A febre que o acometeu ter-se-á devido a alguma substância venenosa enviada por um mensageiro (chegou a suspeitar-se que a mando de Antípatro, que governava a Macedónia ou do próprio Aristóteles, seu preceptor) ou de tifo, malária ou doença de fígado, até porque Alexandre ingeria grandes quantidades de vinho. Os principais testemunhos da doença provêm de Flavius Arrianus, Diodorus Siculus, Quintius Curtius, Junianius Justinus, Lucianus e Plutarco.
Antes de morrer, Alexandre entregou o seu anel a Perdicas, general macedónio e número dois do exército, que assumiu a regência do império. Foram proclamados co-reis Filipe III Arrideu, meio-irmão de Alexandre, e o filho de Alexandre, Alexandre IV, que nasceria já depois da morte do pai.
Parece que Alexandre teria pedido a Ptolemeu para ser sepultado no Egipto, pois se considerava filho de Amon. Talvez pretendesse mesmo jazer em Siwa, local do Oráculo de Amon e onde fora confirmado como filho de Zeus e proclamado faraó.
Perdicas desejava que Alexandre fosse sepultado na Macedónia devido a razões institucionais mas o cortejo fúnebre foi desviado em Damasco por Filipe Arrideu, que acompanhava o catafalco e dirigiu-se para o Egipto, segundo a vontade de Ptolemeu. O corpo foi sepultado em Mênfis, sendo mais tarde construído um mausoléu em Alexandria por decisão de Ptolemeu II. Para fazer cumprir as suas ordens, Perdicas invadiu o Egipto, combateu o exército de Ptolemeu I e viria a ser assassinado em 321 AC.
Ptolemeu proclamou-se regente do Egipto em nome dos co-reis Filipe III Arrideu e Alexandre IV, uma ficção, pois era ele que realmente governava. Só aceitou ser proclamado faraó em 305 AC, depois de Olímpia, a mãe de Alexandre, ter mandado assassinar Filipe III Arrideu em 317 AC e de Cassandro (filho de Antípatro) que reinava na Grécia, ter mandado assassinar Alexandre IV em 310 AC.
Segundo algumas fontes, discutíveis, Ptolemeu seria também meio-irmão de Alexandre Magno, por ser filho ilegítimo de Filipe II da Macedónia.
Admite-se que o sepultamento de Alexandre em Mênfis tenha sido efectuado no templo de Nectanebo II (360-342 AC), o último faraó da XXX Dinastia e também o último faraó egípcio nativo. Tinha este preparado para si um templo e o seu sarcófago na zona de Saqqara, próximo do Serapeum e da pirâmide (em degraus) de Djoser, nas proximidades de Mênfis. Para escapar à invasão persa de Artaxerxes III, Nectanebo II fugiu para o Alto Egipto e depois para a Núbia, nunca tendo chegado a ocupar o seu túmulo. Dado que a configuração do templo/túmulo teria semelhanças com as sepulturas reais macedónicas, por exemplo, o túmulo de Filipe II, pai de Alexandre em Aigai (hoje Vergina) [que eu visitei], é provável que Ptolomeu I tenha depositado o corpo de Alexandre no túmulo vazio de Nectanebo II.
Posteriormente, Ptolomeu II Filadelfo (282-246 AC), filho e sucessor de Ptolemeu I Soter (305-282 AC), procedeu à trasladação do corpo de Alexandre para a cidade de Alexandria, que este criara na localidade de Rhakotis e que se tornaria a capital do Egipto Ptolemaico e uma das mais notáveis cidades da Antiguidade. A data da trasladação não é pacífica, sendo apontado como mais provável o período 290-280 AC, ainda que o eminente professor P.M. Fraser, na sua obra Ptolemaic Alexandria [que felizmente possuo] defenda uma data anterior. A indicação daquela data é sustentada pelo facto de Ptolomeu Filadelfo ter sido associado ao governo por seu pai a partir de 285 AC., presumindo-se que Ptolemeu Soter ainda estaria vivo aquando da transferência do sarcófago.
Segundo Diodorus a cidade teria 300 000 cidadãos no fim do período ptolemaico, atingindo 500 000 se forem incluídos os escravos. Segundo Philon de Alexandria, a cidade compreendia cinco distritos: Alfa, Beta, Gama, Delta e Epsilon. O distrito Alfa situava-se no cruzamento das vias principais; no distrito Beta situavam-se os palácios reais e os célebres Museu e Biblioteca, numa zona debruçada sobre a baía. Toda esta zona terá ardido, pelo menos parcialmente, quando Júlio César mandou incendiar a frota egípcia estacionada no porto.
Segundo Chugg, Menelau, irmão de Ptolemeu I, terá sido o primeiro sumo-sacerdote do culto de Alexandre, em Alexandria, entre 290 e 285 AC., cidade onde se realizou, em 271/270 AC, uma procissão com estátuas de Alexandre, de Ptolemeu I e dos deuses Dionisus, Príapo e Virtude.
O Romance de Alexandre menciona o "Grande Altar de Alexandre" construido pelo rei em frente ao relicário e túmulo de Proteu, na ilha de Pharos, o que pode significar um largo número de localizações. Este altar, com reminiscências do contemporâneo altar de Pérgam, pode estar associado ao túmulo de Alexandre.
Escreve Zenóbio, o Sofista (primeira metade do século II), depois do assassinato de Berenice II, mãe de Ptolomeu IV Filopator (222-204 AC): «Ptolemeu Filopator... construiu no meio da cidade [de Alexandria] um edifício memorial que é agora chamado o Sema, e colocou lá todos os seus antepassados, juntamente com sua mãe, e também Alexandre o Macedónio». A este monumento chama Estrabão, na sua Geografia, "Soma". Em grego, "Sema" significa "túmulo" e "Soma" significa "corpo". Vários autores, como João Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla no século IV, mencionam "Sema", Outros autores, como Dion Cassius, referem o "Soma" de Alexandre. Parece pacífico que a designação de "Soma", o corpo por excelência, prevaleceu.
Por aqui se pode talvez concluir que o famoso túmulo de Alexandre só se concretizou no reinado de Ptolemeu IV. Segundo Estrabão ficava localizado no Distrito Real e possuía dois períbolos, contendo as sepulturas de Alexandre e dos reis (Ptolemeus).
Suetónio afirma que Augusto visitou o túmulo em 30 AC. Este poderia assemelhar-se, segundo certos investigadores, ao Mausoléu de Halicarnasso (próximo da actual cidade de Bodrum, na Turquia), que era uma das Sete Maravilhas do Mundo. O túmulo do rei Mausolo era de tal forma imponente que dele derivou a palavra "mausoléu" para significar as sepulturas grandiosas.
Em 108/107 AC, Ptolemeu X Alexandre I, filho segundo de Ptolemeu VIII e preferido de sua mãe Cleópatra III, conseguiu derrubar seu irmão mais velho, Ptolemeu IX Látiro e assumiu a regência. O irmão fugiu para Chipre e regressou depois, derrotando o rival. Por pouco tempo, pois Ptolemeu X Alexandre I voltou ao poder associado a sua mãe Cleópatra III, que terá mandado assassinar, segundo vários historiadores. Ptolemeu X Alexandre I ficou especialmente na história por ter profanado o túmulo de Alexandre. Segundo Estrabão, não tendo dinheiro para pagar às suas tropas, Ptolemeu X resolveu vender o sarcófago de ouro de Alexandre, substituindo-o por um de vidro ou de alabastro transparente. Os alexandrinos indignaram-se com o sacrilégio e a população acabou por expulsar Ptolemeu X (88 AC), que foi exilado para a Lycia, voltando Ptolemeu IX a ocupar o trono.
Por morte de Ptolemeu XII Auleta (51 AC), subiram ao trono Ptolemeu XIII Téo Filopator e sua irmã Cleópatra VII, com quem este casou. Em 47 AC, Ptolemeu XIII morreu afogado no Nilo, numa batalha contra Júlio César, que estava a conquistar o Egipto. O ditador romano instou para que o outro irmão, Ptolemeu XIV subisse ao trono, casando-se também com Cleópatra, que era ao mesmo tempo amante de Júlio César. Segundo Eusébio de Cesareia, Cleópatra terá mandado assassinar o irmão e marido em 44 AC. Também Júlio César, durante a sua permanência no Egipto terá visitado, segundo Lucanus, o túmulo de Alexandre.
Ainda em 47 AC, Júlio César deixou o Egipto e regressou a Roma. Pouco tempo depois, Cleópatra deu à luz um filho de César, que foi chamado Ptolemeu XV Cesarion e que foi o último o faraó do Egipto.
A mais famosa aparição cinematográfica do Soma encontra-se no filme Cleopatra (1963), de Joseph Mankiewicz. César, interpretado por Rex Harrison e Cleópatra, por Elizabeth Taylor, surgem perante um enorme sarcófago de vidro contendo o corpo embalsamado de Alexandre.
Nas lutas pelo poder em Roma, foi a vez de Marco António tutelar o Egipto no tempo de Cleópatra, depois da saída de Júlio César, entretanto assassinado. Tornando-se amante da rainha, que dele teve dois gémeos, em 40 AC, Alexandre Helios (Sol) e Cleópatra Selene (Lua). Marco António, que projectava tornar-se efectivamente soberano do Egipto, separando-se de Roma, foi vencido por Augusto na batalha de Actium. Na sequência desta derrota, António e Cleópatra suicidaram-se e Octávio César Augusto incorporou o Egipto no Império Romano.
Segundo Suetónio e Dion Cassius, Augusto na sua passagem por Alexandria visitou o Soma.
Os sucessivos imperadores romanos veneraram Alexandre como exemplo de uma governação absolutista e visitaram regularmente o local, sendo o seu corpo considerado a mais importante relíquia do Império, isto até à ascensão do Cristianismo.
Temos notícia das visitas de Germânico, neto de Marco António, acompanhado de seu jovem filho, o futuro imperador Calígula. Este chegou a desfilar com uma armadura que teria sido usada por Alexandre e que está representada no célebre mosaico representando a batalha travada por este contra Dario III, e que foi encontrado na Casa do Fauno, em Pompeia.
Nero previu deslocar-se a Alexandria em 64 e 66, mas não chegou a concretizar a viagem.
Foram a Alexandria Vespasiano, Tito e Adriano.
Teve o imperador Adriano uma verdadeira paixão pelo Egipto onde permaneceu algum tempo. [Recordo-me de ter visto, há muitos anos, no Museu Greco-Romano de Alexandria, entretanto encerrado, uma grande escultura representando o Boi Ápis, que fora oferecida á cidade por Adriano. Tendo sido inaugurado em 2003 o novo Museu Nacional de Alexandria, que cheguei a visitar duas vezes, não vi lá essa enorme escultura e ignoro se o antigo Museu Greco-Romano reabriu]. Foi no Egipto que morreu Antínoo, o famoso amante de Adriano, afogado nas águas do Nilo, por suicídio ou afogamento. O desgosto do imperador foi profundo, tendo fundado uma cidade que lhe foi dedicada, Antinópolis, e instituído o seu culto, que se tornou num culto paralelo ao de Alexandre.
Por volta do ano 400, João Crisóstomo, que foi arcebispo de Constantinopla, denunciou ao Senado Romano o culto de Alexandre e de Antínoo, que eram considerados como deuses.
É possível que Antínoo tenha sido sepultado na Villa Adriana em Tivoli (Tibur), de que existem excepcionais ruínas, ou até conjuntamente com o próprio imperador, que mandara erguer um monumento para a sua sepultura, nas margens do Tibre. Esse monumento foi depois transformado em fortaleza dos papas e é o actual Castel Sant'Angelo, onde ainda se pode ver o local do túmulo de Adriano.
Septimio Severo também visitou Alexandria, tal como Caracala, sendo este o último imperador romano de que há referência que tenha estado no Soma.
As opiniões sobre a data de desaparição do Soma são divergentes. Alguns afirmam que terá sobrevivido até à segunda metade do século III ou mesmo até ao fim do século IV. João Crisóstomo (340-407), citado por Clemente de Alexandria, numa homilia de finais do século IV, protesta contra o facto do Senado Romano considerar Alexandre como 13º deus, manifestando-se também contra o culto de Antínoo. A diatribe de João Crisóstomo (que não traduzo dada a sua extensão) evidencia a luta do Cristianismo nascente contra a herança greco-romana. Naquela altura o túmulo que interessava era o de Cristo, que teria sido descoberto por Santa Helena, mãe do imperador Constantino.
Em 270, Zenóbia, rainha de Palmyra, que se proclamava descendente de Cleópatra, viúva do rei Odenath, conquistou Alexandria, mas foi derrotada em 272 pelo imperador Aureliano. Registou-se depois uma rebelião de Firmus e dos mercadores alexandrinos contra o Aureliano, mas foram esmagados pelo exército imperial. Segundo o papiro Oxyrhynchus foi oferecida a Aureliano uma estátua da Vitória. Diz-nos Ammianus Marcellinus que houve então grandes destruições no distrito de Bruchion, onde estaria edificado o Soma.
A situação em Alexandria continuou agitada e houve novamente agitação social no tempo de Diocleciano, que venceu os insurrectos em 298, tendo mandado erguer uma grande coluna no Serapeum com a sua estátua no topo. A coluna ainda existe nos nossos dias, mas a estátua desapareceu. É hoje conhecida por Coluna de Pompeu.
Conta Ammianus Marcellinus que o bispo Georgius, que fora nomeado patriarca de Alexandria, nomeado no tempo de Constâncio II (337-61) tornou-se impopular aos olhos dos alexandrinos por ser um informador do imperador, que pretendeu indispor contra Alexandre, dizendo que o esplêndido templo de Genius [speciosum Genii templum] tinha sido muito dispendioso e devia ser uma fonte de recurso para o tesouro. Com a morte de Constâncio e a subida ao trono de Juliano (361-3) a multidão amotinou-se e esquartejou Georgius. [Não encontrei Georgius na lista dos Patriarcas de Alexandria nesta data. Não terá chegado a exercer?]
Juliano foi o último imperador romano que tentou conservar o culto pagão e impedir as perseguições dos cristãos aos pagãos que foram, historicamente, mais violentas do que as perseguições dos pagãos aos cristãos nos primeiros tempos do Cristianismo. [O escritor Gore Vidal escreveu uma interessante biografia romanceada do imperador Juliano, homem sábio e tolerante que viria a morrer numa batalha, não em combate mas presumivelmente assassinado por um soldado cristão.]
O grande terramoto de 365 poderá ter destruído o Soma. Descobriu-se recentemente que o erudito pagão Libanius terá escrito por volta de 388-392 ao imperador Teodósio (378-395), o qual antipatizava com os pagãos, a propósito do túmulo de Alexandre, mencionando o seu corpo em exibição. Terá sido o túmulo destruído mas recuperado o corpo? No reinado de Teodósio houve grandes perturbações na cidade. Teodósio apoiava o sinistro Patriarca Teófilo I (eleito em 385), um dos mais sanguinários perseguidores dos pagãos, que ainda contavam com a simpatia do próprio prefeito imperial. Teófilo mandou destruir o Serapeum e transformar em igrejas os templos pagãos.
Daqui decorre que o Soma pode ter sido destruído entre 262 e 365, segundo o autor.
Com o advento do Califado Islâmico, Alexandria mudou substancialmente de aspecto. As mesquitas e os bazares típicos do Médio Oriente substituíram a arquitectura clássica e as ruas rectlíneas e perpendiculares. Mas os muçulmanos foram mais tolerantes com os pagãos do que tinham sido os cristãos. Talvez porque haja referências a Alexandre no Corão, como uma espécie de profeta, Dulkarnein (Dhul Qarnain), o "Senhor dos Dois Chifres" (uma clara alusão ao elmo de Alexandre).
No século IX (mas antes da sua morte em 871), o historiador árabe Ibn Abdel Hakim compilou as mesquitas existentes em Alexandria, havendo entre elas a Mesquita de Dulkarnein, situada na Porta da Cidade. No século seguinte (943-4), o comentador Al Massoudi menciona a existência de um edifício modesto em Alexandria, chamado o "Túmulo do Profeta e Rei Iskender". Parece um local demasiado pequeno para o Soma, mas pode tratar-se de uma construção perto deste, no cruzamento das vias principais, que abrigaria o corpo de Alexandre depois da destruição do monumento.
Durante cinco séculos praticamente não se ouviu falar de Alexandria, até porque os árabes tinham transferido a capital para o Cairo. No século XVI, o escritor Leão Africano (1494/5-1552) notou a existência em Alexandria de um túmulo de Alexandre: «It should not be omitted, that in the middle of the city amongst the ruins may be seen a little house in the form of a chapel, in which is a tomb much honoured by the Mahometans; since it is asserted that within it is kept the corpse of Alexander the Great, grand prophet and King, as may be read in the Koran. And many strangers come from distant lands to see and venerate ths tomb, leaving at this spot grat and frequent alms.» (Description of Africa)
Em 1799, aquando da expedição de Napoleão Bonaparte ao Egipto, um oficial francês descobriu em Rosetta (Rashid, em árabe) um pedra de granodiorito (uma espécie de granito) com um texto em três línguas: hieroglífico, demótico e grego. A pedra foi depois roubada pelos ingleses e está hoje no Museu Britânico.
Sendo idênticos os textos em demótico e grego, presumiu-se que o texto hieroglífico fosse idêntico. E era. A partir especialmente desta descoberta, Champollion conseguiu descobrir a escrita hieroglífica (1822). O texto da pedra refere-se a uma proclamação assinalando o primeiro aniversário da coroação de Ptolemeu V (205-181).
Durante a sua permanência no Egipto, os eruditos franceses Dominique Vivant Denon e Déodat Gratet de Dolomieu descobriram uma pequena edificação no pátio da Mesquita Attarine, em Alexandria, sugerindo as circunstâncias que era venerado pelos egípcios como o túmulo de Alexandre. Continha um magnífico (e vazio) sarcófago de granito verde coberto de inscrições hieroglíficas que também foi roubado pelos ingleses e está igualmente no Museu Britânico. Quando os hieróglifos foram traduzidos foi possível ler-se que o túmulo se destinava ao faraó Nectanebo II que já citei neste texto.
Essa pequena edificação que abrigava o sarcófago foi venerada pelos muçulmanos e corresponde à Casa de Alexandre o Grande situada ao lado do minarete da mesquita. Assim, o relicário da Mesquita Attarine e a "pequena casa em forma de capela" descrita por Leão Africano são provavelmente o mesmo lugar.
No período romano tardio julgava-se que a Igreja de Santo Atanásio fora construída no local da futura Mesquita de Attarine [Attarine é um derivativo de Atanásio, segundo o autor do livro, mas não tenho a certeza]. Atanásio era Patriarca de Alexandria em 365, aquando do terramoto. A igreja romana foi provavelmente construída algumas décadas depois da destruição do Soma o que pode justificar a existência do sarcófago no local, embora seja estranho um patriarca conservar numa igreja um túmulo faraónico que teria contido o corpo de Alexandre. A Mesquita Attarine e a "Casa de Alexandre o Grande" foram destruídos em 1830, mas a actual mesquita foi reconstruída num local contíguo na segunda metade do século XIX.
Como Alexandre foi originalmente sepultado em Mênfis, provavelmente no Serapeum de Saqqara, como se escreveu acima, é natural que tenha sido utilizado o sarcófago vazio construído para Nectanebo II, que nunca o utilizou por ter fugido para a Etiópia em consequência da invasão persa do Egipto. Apesar de ser difícil o transporte de um sarcófago das dimensões em causa de Mênfis para Alexandria, o facto de se justificar do túmulo de Alexandre justificaria o esforço. Nesta óptica, Ptolomeu I teria sepultado Alexandre no sarcófago destinado a Nectanebo II e Ptolomeu II tê-lo remetido para Alexandria até à edificação do Soma.
A população de Alexandria no século I AC era de meio milhão de habitantes. Diminuiu no tempo do domínio romano, sendo estimada em 180 000 no século IV AD. A cidade rendeu-se aos árabes em 642, depois de um longo cerco. Devia ter então 100 000 habitantes. O historiador Ibn Abdel Hakim estima a população do século IX em 200 000 pessoas. Quando Bonaparte chegou ao Egipto (1798) haveria 5 000 habitantes, em 1806, 6 000 e nos anos 1820 de Mohamed Ali e da revitalização do porto o número cresceria rapidamente: 12 000, em 1821; 52 000, em 1835; 200 000, em 1868; 317 000, em 1897. Em 1960 a população atingiria 1 000 000.
A primeira tentativa de desenho de um mapa da antiga Alexandria deve-se ao francês M. Bonamy que, em 1731, apresentou o resultado do seu trabalho, recorrendo a muitas das afirmações de Estrabão. Infelizmente, o trabalho de Bonamy não teve grande valor prático, uma vez que incorreu em demasiados erros.
Nos anos 1860, Napoleão III (1852-70) concebeu a ambição de compor uma história do seu herói Júlio César e pediu, para o efeito, ao seu amigo o khediva Ismaïl Pasha, uma informação detalhada sobre a guerra de César em Alexandria. Encantado por poder prestar um serviço ao seu aliado, Ismaïl Pasha encarregou, afortunadamente, um membro do seu gabinete para proceder à investigação. E assim, em 1865, Mahmud Bey El Falaky (Falaky=Astrónomo), engenheiro e cartógrafo, de elaborar um mapa da antiga Alexandria. A ele devemos o primeiro desenho da cidade antiga em correspondência com o traçado da cidade moderna. Não cabe neste texto, que já vai longo, examinar as correspondências estabelecidas por El Falaky, sendo que o mapa é ainda hoje a base utilizada para todas as pesquisas efectuadas posteriormente.
O famoso arqueólogo alemão Heinrich Schliemann, que procedeu à descoberta das ruínas de Tróia e de Micenas, esteve em Alexandria em 1888. Tinha uma inabalável convicção de que o túmulo de Alexandre se encontrava sob a Mesquita Nabi Daniel, mas os seus planos foram frustrados porque as autoridades religiosas não permitiram as escavações que ele se propunha realizar.
Já no século XX, o arqueólogo italiano Evaristo Breccia, que foi director do Museu Greco-Romano de Alexandria (1904-1932), também partilhou a mesma convicção: «But in any case we may consider it as established that the Sema, and consequently also the Mausoleums of the Ptolemies, were near the Mosque Nabi Daniel».
Uma das falsificações mais flagrantes deveu-se a M. Joannides, em 1893. Tendo descoberto uma necrópole ptolemaica em Chatby, a leste da península de Lochias, garantiu ter descoberto os túmulos de Alexandre e de Cleópatra.
Muito interessante este trabalho de Chugg, ainda que por vezes confuso e em alguns momentos fantasiante, e até contraditório. Mas como hipótese de trabalho, a conclusão além de arrojada é pertinente.
A finalizar, o autor transcreve estas palavras de Alexandre, citadas por Arriano, em Address at the Beas:
«Toil and risk are the price of glory, but it is a lovely thing to live with courage and die leaving an everlasting fame.»
3 comentários:
É muita pena que tão vasto exercício de erudição acompanhado por um evidente entusiasmo pessoal pela matéria exposta fique escondido num blogue, agora que os blogues estão longe de suscitar o interesse do público ou dos especialistas. Bem sei que uma parte substancial do texto se apresenta como recensão bibliográfica, mas equilibrando essa área com a introdução mais extensa das memórias alexandrinas do autor, obteríamos uma interessante publicação, válida a vários níveis. E actualmente, o que não falta são editores disponíveis para todos os gostos. Fica a sugestão.
Para o Anónimo das 00:53:
Agradeço a gentileza do comentário.
Não creio, todavia, que haja editores disponíveis para este género de trabalhos. Publica-se muita coisa, mas o alvo são públicos receptivos a coisas mais ligeiras.A cultura histórica está com baixa cotação no mercado livreiro.
Muito interessante. Sendo seu leitor habitual, hoje não resisti a este simples comentário.
A. Ribeiro
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