quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

AINDA O TÚMULO DE ALEXANDRE

Leio agora Le tombeau d'Alexandre le Grand - L'énigme (2009/2010), de Valerio Manfredi, autor italiano que escreveu várias obras sobre Alexandre Magno. Segundo o editor, a sua Trilogia sobre o famoso guerreiro foi traduzida em 32 línguas, publicada em 53 países e vendidos cerca de 4 milhões de exemplares. Possuo também a edição francesa dessa famosa trilogia.

Foi este livro publicado cinco anos depois do referido no post anterior, o de Andrew Michael Chugg (The Lost Tomb of Alexander the Great) , mas não é suportado pela minuciosa investigação constante deste último, sendo as suas considerações de certa forma mais superficiais e impressionísticas. 

Começa Manfredi por referir os inúmeros presságios de morte ocorridos antes da fatal doença de Alexandre, mantendo-se a dúvida quanto às causas do óbito: envenenamento ou doença. Parece, de facto, tal como em Chugg, que o envenenamento fica afastado, sendo provável uma doença súbita (escassos dias) ou uma debilidade anterior agravada por um motivo mais recente. A hipótese de envenenamento, talvez encomendado por Antípatro ou pelo próprio Aristóteles, carece de fundamento.

Também, segundo Manfredi, quem dirigiu o cortejo fúnebre de Babilónia para o Egipto não foi Filipe III Arrideu, meio-irmão de Alexandre, mas um outro Arrideu, o que contraria a versão de Justinus.

Segundo uma lenda antiga, que permaneceu muito tempo no Egipto, Alexandre não seria filho de Filipe II da Macedónia mas do faraó Nectanebo II, o qual, quando derrotado pelos persas, se teria refugiado na Macedónia e aproveitando uma ausência do rei, teria dormido com Olímpia. Esta estória fez parte do anteriormente citado Romance de Alexandre.

Considera ainda o autor que a trasladação do corpo de Mênfis para Alexandria poderia ter ocorrido sob Ptolemeu I, embora não afastando a hipótese de ter sido ordenada por Ptolemeu II. Segundo Chugg, a transferência aconteceu por iniciativa de Ptolemeu II, admitindo-se que pudesse ter ocorrido ainda em vida de Ptolemeu I, quando o filho estava já associado à governação. A construção do Soma é atribuída por ambos a Ptolemeu IV.

O general macedónio Perdicas, a quem Alexandre entregou o anel à hora da morte, e que ficou como regente (provisório) do império, esteve para casar com Cleópatra, filha de Filipe II e de Olímpia e irmã de Alexandre. Se o enlace tivesse acontecido, é provável que pudesse ter mantido a unidade do império, depois dividido pelos generais companheiros de Alexandre. Talvez ele tivesse feito um derradeiro esforço na tentativa de desviar para a Macedónia o cortejo fúnebre de Alexandre, mas a derrota face ao exército de Ptolemeu frustrou os seus desígnios, acabando por morrer no Nilo.

Para consolidar o seu poder no Egipto como faraó, Ptolemeu decidiu ostentar os atributos exteriores da iconografia local, mas esses símbolos só começaram a ser exibidos alguns anos depois da sua tomada do poder, para não escandalizar os macedónios. Essa assunção teve lugar progressivamente, mas só depois de Cassandro, filho de Antípatro, ter assassinado Olímpia, mãe de Alexandre, em 316 AC, e mandado assassinar, em 310-319 AC (sic ? - deve ser 309) primeiro Roxana e a seguir o seu filho Alexandre IV. Ainda em 309 AC, Cassandro mandou envenenar Alexandre Hércules, filho ilegítimo de Alexandre e da persa Barsine.

Ao contrário dos túmulos de outras figuras da Antiguidade, o de Alexandre desapareceu. Diz-nos o autor que, à excepção de pequenos testemunhos vagos e contraditórios, o único que viu o monumento e o descreveu foi Estrabão, que esteve em Alexandria entre 24 e 20 AC.: «E o corpo de Alexandre foi levado por Ptolemeu e enterrado em Alexandria, onde hoje ainda repousa, mas não no sarcófago original, porque o de hoje é em "yaline" enquanto aquele em que ele fora inumado  era em ouro. Com efeito, Ptolemeu (XI) apoderou-se dele, o que é chamado Kokkes ou ainda Pareisactos ("intruso") que chegava da Síria e foi expulso imediatamente de maneira que o seu roubo não lhe aproveitou.»

Segundo a edição Loeb (comentário de H.L. Jones) "yaline" deve traduzir-se por vidro ou talvez alabastro. 

De acordo com as fontes, terão realmente existido dois sepulcros de Alexandre, em Alexandria, e em locais diferentes. O primeiro edificado por Ptolemeu II (Soma), na centro da cidade, o segundo, monumental, erigido por Ptolemeu IV (Sema), junto ao mar. 

A propósito de Septimio Severo, escreveu Dion Cassius: «[Septime Sévère] essaya de tout connaître, y compris tout ce qui était soigneusement caché. C'était en effet le genre de personne qui ne négligeait l'examen d'aucune chose humaine ni divine. Par conséquent, il fit retirer de presque tous les sanctuaires l'ensemble des livres qu'il put trouver susceptible de contenir une histoire secrète et il scella le tombeau d'Alexandre. Cela, afin que personne dans le futur ne puisse voir le corps ni lire ce qui était écrit dans les livres dont nous avons parlé.» (p. 127)

«Não sabemos se os selos de Septimio Severo foram respeitados, porque ele morreu em 211, em York (Inglaterra). Quatro anos mais tarde, o seu filho Caracala. admirador fanático e imitador grotesco de Alexandre, visitou o Serapeum, principal santuário de Alexandria, onde ofereceu sacrifícios sumptuosos, e depois o túmulo, onde colocou em sinal de homenagem o seu manto de púrpura, os seus anéis de pedras preciosas e os seus cinturões. Herodiano, que conta o episódio, emprega, também ele, um termo vago, "túmulo" (ταφος=cova). Podemos supor que Caracala quebrou os selos para entrar na câmara sepulcral ou que depôs os seus dons no exterior sobre o altar destinado às oferendas. Dado o seu fanatismo, a primeira hipótese afigura-se mais provável.» (p. 129)

A partir daqui nada mais sabemos sobre o túmulo, salvo uma indicação indirecta de uma homilia de João Crisóstomo, no fim do século IV, a que já fizemos referência em post anterior. Dizia o bispo, que pregava na catedral de Antioquia: «Onde está, digam-me, o túmulo (sema) de Alexandre? Mostrem-mo e digam-me em que dia ele morreu?» Pode deduzir-se destas palavras lacónicas mas significativas que o termo sema é associado uma vez mais à significação de mausoléu e que no fim do século IV já ninguém sabia onde se encontrava o túmulo de Alexandre ou que os que o sabiam seriam raros. Estas palavras também veiculavam uma dupla mensagem: que a glória humana é efémera (quem é venerado como um deus é a seguir votado ao esquecimento) e que esse esquecimento marca o triunfo da nova fé que obscureceu e apagou os valores e os símbolos do mundo pagão.

Depois da visita de Caracala, o distrito dos palácios reais, o Bruchium, sofreu sucessivas destruições. O Museu e a Grande Biblioteca tinham praticamente desaparecido e ninguém estaria interessado na conservação do túmulo. Com o advento de Constantino I e o Concílio de Niceia, o patriarca de Jerusalém, Macário, consagrou-se à descoberta do túmulo de Cristo, o que aconteceu pouco tempo depois. 

«Saunders propose une intuition brillante: l'évêque Osius de Cordoue aurait donné ce conseil à Constantin lors de son passage à Alexandrie, où il avait constaté l'importance du tombeau d'Alexandre pour les païens. Cela impliquerait que le tombeau existait encore, ce dont nous sommes loins d'être certains. En revanche, il est établi que Constantin et les membres les plus influents du clergé comprirent qu'une religion toute spirituelle aurait du mal à conquérir les masses. Le tombeau du Christ fut donc retrouvé. C'est le seul lieu à avoir connu dans les siècles suivants et jusqu'à nos jours une importance et un impact sur notre culture supérieurs à celui d'Alexandrie. La raison en est claire: le tombeau du Christ avait la supériorité d'être vide.» (pp. 132-3)

Quem nos relata o grande terramoto, seguido de tsunami, que, em 365, abalou Alexandria é Ammianus Marcellinus. O distrito real, junto ao mar, e onde se situaria o túmulo de Alexandre, terá sido parcialmente destruído. O que não significa necessariamente a desaparição do corpo mumificado de Alexandre. O livro refere também as ferozes perseguições dos cristãos aos pagãos, a luta entre o patriarca Cirilo de Alexandria e o prefeito romano Orestes e o assassinato da famosa intelectual Hipatia, no  Cesareum, templo erigido por Cleópatra para o culto de César, e que estaria hoje transformado em catedral e matadouro. (p. 140) É verdade que o templo foi mais tarde convertido em igreja, mas nada disso existe hoje. O Cesareum ficava situada no sítio da actual praça Saad Zaghlul, frente ao Mediterrâneo, onde se encontra agora uma estátua do grande político nacionalista egípcio.

Também o livro se refere à presumível menção de Alexandre no Corão sob a designação de Dul-Qarnaïn (o Senhor dos dois cornos). De facto, Alexandre costumava usar duas plumas no capacete e era representado em moedas da época com cornos de carneiro, símbolo do deus Amon, ou ainda com o escalpe de um elefante com os dois dentes no ar, em recordação das campanhas indianas. Aliás, na cultura muçulmana, Alexandre foi sempre considerado um grande homem, ou até um profeta (nabi).

«La présence du tombeau du chef macédonien à Alexandrie est évoquée aussi dans une oeuvre écrite en italien par un Arabe, Hassan al-Wazzan, dit "Léon l'Africain". Son livre intitulé Description de l'Afrique et des choses remarquables qu'on y trouve, par Giovanni Lioni Africani fut publié par Ramusio à Venise en 1550. Personnage haut en couleur dont les traits sont peints par Sebastiano del Piombo, Hassan al-Wazzan était né en Espagne juste après la fin du califat de Grenade. Il émigra au Maroc avec ses parents, puis il voyagea à l'occasion de différentes missions dans les pays de l'Afrique saharienne, du Maghreb et de l'Arabie, jusqu'à ce qu'il soit capturé par un navire espagnol et conduit en Italie où il fut emprisonné au château Saint-Ange. Comme Joseph dans les prisons du pharaon, notre aventurier parvint à faire connaître sa doctrine jusqu'à la cour pontificale. Le pape Léon X voulut le renontrer, et en 1520 le fit baptiser à Saint-Pierre en lui imposant son propre nom. Dans son livre, Léon raconte que dans le centre de la ville d'Alexandrie, parmi d'autres ruines, se trouve une petite maison avec une chapelle à l'intérieur de laquelle un tombeau renferme le corps d'Alexandre le Grand, prophète et roi; et que ce tombeau est visité par une multitude de voyageurs de tous horizons.» (pp. 144-5)

Manfredi retoma a seguir a narrativa de Chugg, a propósito do túmulo suposto de Alexandre, que na verdade se destinava a Nectanebo II e que foi encontrado na Mesquita Attarine (na pequena dependência de que fala Leão o Africano). Mas não crê que o corpo de Alexandre nele fosse transportado desde Mênfis. Supõe até que a fuga do faraó de Tebas poderia ter determinado a transferência do sarcófago para Mênfis, susceptível de o mesmo o vir acolher mais tarde.

E também é referida a velha ideia de Alexandre estar sepultado sob a Mesquita Nabi Daniel, aliás não distante da Mesquita Attarine. Sendo certo que o Nabi (profeta, em árabe) Daniel bíblico nunca poderia ter estado em Alexandria, que não existia no seu tempo. O Daniel em questão seria um santo homem muçulmano, natural de Mossul. 

Também é citada a descoberta por Osman Hamdi, na antiga Sidon (Líbano actual), em 1887, de um maravilhoso sarcófago de mármore com cenas das batalhas de Alexandre contra os persas [encontra-se hoje no Museu Arqueológico de Istanbul, e tive ocasião de o admirar]. É considerado por alguns (Gertrude Bell, por exemplo) como o verdadeiro sarcófago de Alexandre, embora tal hipótese seja pouco plausível.

Convergindo as opiniões dos especialistas, ao longo do tempo, que Alexandre foi sepultado em Alexandria, cidade que fundou, dois investigadores sustentam teses diferentes. Um deles, Andrew Chugg, supõe, como vimos em post anterior, que o corpo de Alexandre se encontra em Veneza, na Basílica de São Marcos, substituindo o corpo do evangelista e primeiro bispo da cidade, que teria sido queimado. A outra tese é da arqueóloga grega Liana Souvalzi, que afirmou ter descoberto o túmulo em Siwa, no templo dórico de Bilad el Rum (1989). É verdade que foi em Siwa que Alexandre foi coroado faraó e proclamado filho de Amon, no templo deste deus egípcio. O edifício já era conhecido, as pesquisas posteriores não conduziram a qualquer conclusão e as autoridades egípcias não prorrogaram o prazo para a continuação das mesmas. E deduz-se do livro que não foi encontrada qualquer múmia.

Em 1977, o general grego Papazois afirmou a Manfredi ter encontrado os restos mortais de Alexandre numa urna na necrópole real de Vergina, na Macedónia. Mas tratou-se de uma manobra mais política do que científica, numa altura em que os gregos pretendiam reforçar o sentimento de identidade nacional face à pretensão de um novo Estado balcânico passar a usar a designação de Macedónia.

Transcrevemos da Conclusão: «L'attachement des Grecs, et notamment des Gréco-Macédoniens, à leur héro est inimaginable. Aux États-Unis, à la sortie du film Alexandre, d'Oliver Stone, il y eut, parmi des émigrants helléniques, une levée de boucliers à cause des scènes, pourtant très chastes, qui raccontaient l'amour entre Alexandre et Héphaestion. Des menaces d'actions en justice furent lancées afin de sauver l'honneur du condottière.» (p. 208)

Na generalidade dos casos, a obra de Valerio Manfredi não se afasta muito da de Andrew Michael Chugg, e não poderia ser de outra forma, já que a maioria das fontes é comum. Há talvez diferenças de interpretação, algumas das quais expusemos neste texto. Ocorre que em Chugg os factos históricos são especialmente detalhados enquanto que em Manfredi há lugar para alguma divagação pessoal.

Continuaremos com Alexandre, e o seu túmulo, em posts futuros neste blogue.


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