Publicou agora Manuel Maria Carrilho um novo livro, A Democracia no seu Momento Apocalíptico, em que aborda alguns aspectos da progressiva, e imparável, crise da democracia no mundo. Eu diria crise daquilo a que chamamos democracia. E, como nos adverte, logo no início, o autor, a democracia não é o fim da História, como, há anos, um tristemente célebre ensaísta tristemente proclamou.
Nos anos mais chegados, estabeleceu-se um império do infotretinimento, uma histeria comunicacional motivada pelo Covid-19 (criando um mundo novo), que só terminou com a invasão russa da Ucrânia que passou, pelo menos nos primeiros meses, a dominar por completo a comunicação social. [Eu não sei se os jornalistas "ocidentais", e os portugueses em particular, debitam esta informação totalitária voluntariamente (e isso denotaria uma estupidez incalculável) ou se a isso são obrigados por outras forças, ao serviço de agendas ocultas ou das redes sociais. Seria interessante elaborar sobre esse tema.] A crise da democracia, que vinha sendo intensamente discutida em todo o Ocidente, deu lugar ao incensamento da dita, que se transformou «num modelo exemplar de indiscutível vocação universal, sem problemas nem máculas» (p. 16)
Adverte-nos Carrilho que, em próxima obra, abordará temas indispensáveis para a compreensão do momento apocalíptico da democracia, como: cultura do cancelamento (cancel culture); wokismo (cultura do alerta, ou talvez melhor, da denúncia); desconstrução; políticas de identidade; multiculturalismo; sexo, género e "conexos"; interseccionalidade; vitimização como paradigma social; apropriação cultural, etc.
«Tal como o 11 de Setembro de 2001 marcou o fim da doutrina do fim da história, não tenho qualquer dúvida de que a invasão da Ucrânia pela Rússia a 24 de fevereiro de 2022 marcará o fim da ilusão de uma outra doutrina, a do pacifismo indolente, que tem caracterizado persistentemente a União Europeia nas últimas décadas.» (p. 19)
«Middelaar dissecou bem o estado de negação em que a União Europeia se foi habituando a viver os seus principais problemas, preferindo sempre contorná-los com a prática dos "saltos em frente" de natureza eminentemente retórica, de resto a grande especialidade da actual Presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, nisso seguida pela quase totalidade dos dirigentes políticos europeus.» (p. 21)
O autor cita José Pedro Teixeira Fernandes (do jornal Público de 03.04.22) sendo seus os itálicos: «Sozinhas, as democracias liberais nunca ganharam nada. Nenhum dos maiores conflitos e guerras do último século foram vencidos por estas sem se terem aliado também a Estados não democráticos.» (p. 22)
«Que relações pretende ela [a Europa] ter, no médio e longo prazo, com a Rússia e com a China, entre tantas outras definições de relações com outros continentes e países, que cada vez mais se impõem? Que lugar estratégico pretende a Europa vir a ocupar, num mundo cada vez mais complexo e hostil, em que a Europa está - não tenhamos qualquer ilusão sobre isto - cada vez mais só?» (p. 23)
«Sejamos claros: sem forças armadas credíveis e sem fronteiras definidas, nunca a Europa conseguirá ter uma estratégia coerente ou ser uma efectiva potência no mundo de hoje.» (p. 24) Não há uma Europa ilimitada. E "os europeus perderam os instrumentos mentais para perceber e pensar que a história é uma permanente competição de potências" como escreveu Hubert Védrine.
Escreve o autor: «Uma fronteira não é, como parecem pensar os burocratas bruxelenses, um mero traçado num papel ou num ecrã. Não, uma fronteira é uma instituição, uma instituição que é resultado de conflitos e de compromissos com muita história, que visam definir os Estados no âmbito da sua soberania e, portanto, da sua identidade política.» (p. 25)
«Dir-se-ia que a União Europeia parece hoje uma zona privilegiada e protegida one se recreiam as suas elites, indiferentes à realidade das nações e à vontade dos povos, apenas obcecadas com a ortodoxia financista (nas suas várias vertentes) e com os humores das agências de rating. E mais recentemente também, claro, com a extravagante "democracia" ucraniana!...» (p. 26)
«E aqui, insisto, temos que ser claros: a Ucrânia, tal como a Albânia, a Macedónia do Norte, a Sérvia, o Montenegro, a Turquia, o Kosovo, a Bósnia-Herzegovina, a Moldávia ou a Geórgia, não entrarão nunca plenamente na União Europeia, a não ser que seja - e isso é infelizmente possível - para acentuar ainda mais os impasses criados em 2004 quando, imprudentemente, se saltou de 15 para 28 membros - como os Estados-Unidos queriam - tornando-se assim a Europa num gigante... de impotência.» (p. 29)
«A não ser - mas isso levar-nos-ia para outro caminho que, por heterodoxo que pareça, não quero deixar de referir como uma interessante e ousada hipótese de interpretação política - que Peter Mair tenha razão na sua céptica análise da democracia ocidental, exposta no livro Ruling the Void. Nesta obra Mair apresenta a União Europeia, não sob a habitual perspectiva dos seus problemas canónicos (défice democrático, heterogeneidade económica, débil representatividade, etc.), mas como um dispositivo construído justamente para contornar, e se possível evitar, os tão arrastados problemas das democracias. Seria este facto que explicaria a ausência de uma verdadeira oposição política no quadro da União Europeia, com debates efectivos sobre as suas principais iniciativas e medidas, ignorando-se deste modo na prática a vontade e as expectativas de um povo, o povo europeu, que na sua visão na verdade não existe, sendo a União Europeia constituída por uma inultrapassável pluralidade de povos distintos.» (pp. 31-2)
«O facto é que vivemos hoje, como escrevi no meu ultimo livro, uma era sem retorno, facto que tem implicações em todos os domínios da nossa vida individual e colectiva. Uma era estruturada por uma lógica do ilimitado - da dívida, dos direitos, do consumo, da energia, da vida, das fronteiras, etc. - que combinou, como factores da construção do nosso novo mundo, o financismo, a globalização, as novas tecnologias e o hiper-individualismo.» (p. 32)
O autor considera que a União Europeia criou, pelas suas práticas, um extremismo do centro, agitando o espantalho do populismo, populismo que foi um fenómeno político historicamente bem datado, nada tendo a ver com as formas políticas demagógicas surgidas nos últimos anos. O recurso ao termo apenas aproveita os que querem defender o status quo. «Pensar a política como consenso é uma armadilha que impede de ver que os extremismos se podem desenvolver, não só na radicalidade dos limites, mas também no dogmatismo do centro.» (p. 36) «Terão sido estas ideias que inspiraram o "centrismo radical" que foi explicitamente reivindicado por Emmanuel Macron, fórmula que ele procurou depois traduzir no slogan "en même temps" (de direita e de esquerda, entenda-se), fórmula contudo não isenta de riscos, nomeadamente de natureza autoritária, como o de se pretender identificar o "en même temps" com uma posição análoga aos justo meio aristotélico, esquecendo que Aristóteles alertara para o perigo de, ao fazê-lo, se colocar numa posição de razão absoluta, procurando desse modo ilegitimar as outras posições, o que faria do extremo centro um extremismo afinal idêntico a todos os outros.» (p. 38) «Afinal, são os centristas, e não os esquerdistas ou os direitistas, aqueles que mais hostis se mostram à democracia... e também os que mais abertos e tolerantes se declararam perante o autoritarismo. (David Adler, "The Centrist Paradox", 2018, Universidade de Oxford)» (p. 39)
Segundo Tony Corn [L'Europe à la Dérive], o europeísmo consistiria em tornar o sentimento europeu num autêntico "ópio do povo". «No origem da perspectiva deste europeísmo como um extremismo do centro encontra-se uma surpreendente, mas significativa convergência entre o comunismo e o europeísmo, que ele [Corn] identifica em dois pontos muito precisos: no absoluto e dogmático primado dado à economia, por um lado, e no objectivo de abolir (se possível integralmente) a política, substituindo o governo dos cidadãos pela administração das coisas, por outro lado.» (p. 41)
A crise que se vive nas últimas décadas tem uma diferença e uma gravidade especiais que afectam a democracia. «O que temos hoje são instituições nacionais ou internacionais bloqueadas por anos e anos de interesses instalados e de múltiplos desajustes à realidade. O que temos hoje são líderes que preferem as fantasias do marketing político ao conhecimento da história, e trocam a visão de futuro pela obsessão dos ciclos eleitorais. O que temos hoje são Estados fracos, muitas vezes em estado terminal, e que agora vemos serem descaradamente parasitados por muitos daqueles que tudo fizeram para os fragilizar. O que temos hoje é uma Europa sem élan nem ambição, presa aos seus privilégios históricos e aos seus interesses nacionais.» (pp. 49-50)
«Porque estas décadas também foram um tempo de esvaziamento ideológico e de constante virtualização da realidade, em nome de exigências cada vez mais ocas. Falar de reforma passou a ser um estereótipo sem conteúdo. Proclamar a modernidade tornou-se num tique sem projecto. Invocar as novas tecnologias transformou-se no álibi de todos os impasses estratégicos. E o essencial continua por fazer: o essencial é que se ultrapasse, com decisões e medidas concretas, o abismo que se criou entre o poder da finança e o Estado de direito, entre as dinâmicas do mercado e as exigências da democracia.» (p. 50)
«A regulação que se impõe com mais urgência é, pois, a das interdependências - da finança, do meio ambiente, do trabalho, da fiscalidade, etc. - que, se não forem articuladas, podem conduzir o mundo ao caos.» (p. 52)
«Neste ponto, é bom ter presente que, quando hoje falamos de democracia, estamos a falar de uma realidade relativamente recente, que progressivamente se configurou e instalou no Ocidente a partir de meados do século XX, no pós-guerra, portanto. Num contexto em que ela pôde aparecer como o resultado de uma tensão em que o capitalismo aparecia como condenado pela história, em que a revolução se confirmava como tema político incontornável e em que o socialismo democrático se impunha como dominante. Tensão que converge de um modo inédito durante o chamado período dos "trinta gloriosos" na vitória de um Estado protector, em que, na sintética frase de Marcel Gauchet, "o socialismo reina e a democracia cristã governa - eis como se pode resumir o compromisso típico da Europa do pós-guerra" (Gauchet, M. 2007/2017, vol. 3, p. 573).» (pp. 56-7)
«O facto, hoje, é este: o capitalismo revela-se incapaz de encontrar soluções para a crise, mas também não se vê aparecerem alternativas estruturadas e credíveis que o desafiem. Só assim se compreende que uma crise desta natureza, dimensões e consequências - a maior que o capitalismo viveu desde 1929 - tenha completamente escapado à esquerda, que (com excepções sem significado político) vem somando desaires eleitorais desde então.» (p. 61)
«Há, claro, algumas razões para isto. Em primeiro lugar, generalizou-se a ideia de que a queda do muro de Berlim foi a vitória de uma forma de democracia que encontrava a sua forma final na pura e simples identificação com o mercado. Seguidamente, não se compreendeu que a globalização minava na sua raiz o compromisso social-democrata entre o trabalho e o capital, deixando o trabalho preso às suas raízes nacionais enquanto o capital se tornava cada vez mais livre num tabuleiro cada vez mais mundial. E a terceira razão encontra-se na identificação dos valores da modernidade com os da metamorfose do capitalismo na sua versão financista ~- e aqui a "terceira via" inspirada pela dupla Anthony Giddens/Tony Blair teve especiais responsabilidades. E tudo isto, note-se, sem nenhum pressentimento do brutal impacto que as economias viriam a ter no mundo do começo do século XXI.» (p. 61)
«É preciso sublinhar ainda uma outra razão, nunca referida mas que está, como já tenho dito, na origem do modo como, nas décadas de 80 e 90 do século passado, o tema europeu funcionou como compensação dos fracassos sofridos e das dificuldades encontradas pela social-democracia. Com François Mitterrand, Mário Soares ou Filipe González, num primeiro momento. e depois com Lionel Jospin, António Guterres ou Gerard Schröeder, procurou fazer-se da construção europeia - numa pirueta política de pesadas e impensadas consequências - o ersatz das ilusões perdidas do socialismo democrático.» (pp. 61-2)
Prossegue o autor referindo que a "saída da religião" que define hoje a civilização ocidental não evitou a sujeição a um novo deus, o mercado, instituído como valor supremo. Trata-se de uma nova servidão voluntária, cujo modelo foi interiorizado pelos indivíduos.
«Nasceu aqui um fenómeno novo, que tenho designado como endividualismo, um fenómeno que cresceu com o paradigma do ilimitado (da energia, do consumo, dos direitos, da dívida, etc.) e triunfou com a convergência das metamorfoses do indivíduo e do consumo. Foi na verdade este endividualismo que deu forma, tanto ao ultraliberalismo como ao mini-socialismo dos nossos dias - ele constitui um novo tipo de individualismo, na verdade um "individualismo de massas" que nas últimas décadas mudou toda as regras do jogo político.» (p. 63)
«E o que é pior é que se continua a ler a realidade com as lentes de há décadas, as mesmas que levaram a não se pressentir as consequências da globalização, a não se perceber a transformação do capitalismo em financismo, a desvalorizar-se as alterações demográficas, a negligenciar-se a questão da distribuição da riqueza, a não se detectar o retorno das mais brutais desigualdades, a ignorar-se a fragilização do Estado-providência, a incensar-se a "estupidez sistémica" induzida pelas novas tecnologias.» (p. 65)
«É que vivemos hoje o pico do paradoxo democrático que exige cada vez mais igualdade, mas, simultaneamente, pretende ignorar as diferenças que a própria conquista da igualdade expõe, [...]» (p. 69)
Afirma o autor que vivemos hoje sob o signo do ilimitado. Tudo se exige, mesmo sabendo-se que certas reivindicações são inviáveis, em que a protecção diminui e a fragilização cresce.
«[A] constatação quotidiana de que os políticos, seja qual for a sua ideologia, são incapazes de resolver os principais problemas do mundo, seja no domínio do emprego ou da saúde, da educação ou da finança.» (p. 73)
«Na Europa este processo acentuou-se ainda mais com a perda de soberania dos Estados, conduzindo todos estes factores ao que Wendy Brown chamou a "des-democratização" das sociedades contemporâneas (Brown, W., 2003).» (p. 74)
Citando Yascha Mounk, Carrilho alude depois às democracias iliberais e aos liberalismos não democráticos, sendo as primeiras umas «democracias sem direitos, um sistema fechado que exclui a população de qualquer participação cívica concentrando todo o poder nas mãos de uma pequena mas poderosa elite, exercendo uma verdadeira tirania da maioria, onde não existe respeito por grupos minoritários, como acontece na Hungria ou na Polónia»; e as segundas as dos «liberalismos sem democracia, organizadas em torno de um simulacro mais ou menos sofisticado de democracia, mas onde a forma de governo é burocrática e tecnocrática, excluindo na realidade o povo das suas decisões, a fim de proteger o status quo, como - a seu ver - é o caso da União Europeia.» (p. 76)
«Para se revitalizar a democracia é preciso entender - e aqui seguimos as análises e as propostas de Pierre Rosanvallon - que a sua matriz histórica "representacionista" se transformou, que o seu ponto de maior fragilidade se situa agora justamente aqui, no modo como tradicionalmente se estabeleceu que a parte vale pelo todo. E, depois, no corolário segundo o qual o momento eleitoral vale, não transitoriamente, mas para toda a duração de cada mandato.» (p. 78)
«É por isso fundamental, nas democracias contemporâneas, distinguir e respeitar as duas formas bem distintas de legitimidade, a da eleição e a da acção.» (p. 84)
«A evolução oligárquica das nossas democracias está por isso, como há muito vem explicando Marcel Gauchet, em sintonia com uma profunda despolitização das sociedades, hoje tão atordoadas que não conseguem sequer definir com um mínimo de clareza, nem o que querem, nem o que recusam (cf. Gauchet, M. 2002 e 2007-2017)» (p. 88)
«[...] não será melhor começar a pensar no que poderá vir depois da democracia? De começar a pensar em termos de apocalipse, tal como Jacques Derrida o definiu ao escrever "o fim aproxima-se, mas o apocalipse é de longa duração" (Derrida, J., 1983, p. 81)? Dito de outro modo, não estaremos nós a viver o momento apocalíptico da democracia, no sentido em que já tantas e tão profundas mutações ocorreram e em que tantas metamorfoses já hoje se insinuam?» (p. 93)
«A colocação deste tipo de hipóteses é sempre recebida, não como uma possibilidade ou um desafio, mas como uma provocação, quase como se de um blasfema se tratasse. E logo chove, claro, em coro e em catadupa, a famosa frase de Winston Churchill, que "a democracia é a pior forma de governo, excepto todas as outras", omitindo-se sempre que o que Churchill afirmou a 11 de Novembro de 1947 na Câmara dos Comuns foi algo diferente, foi uma frase ligeiramente mais longa, que acrescentava a essas outras formas de governo o importante detalhe "that have been tried time to time". O que, a meu ver - e bem - liberta o futuro de um diagnóstico que só dizia respeito ao passado.» (pp. 93-34)
«Ora, o que é preciso ter em conta é que as sucessivas revoluções dos últimos cem anos, mais coisa menos coisa, implicaram imensas mudanças nas sociedades, bem como nos próprios indivíduos. Mudanças de tal ordem que se impõe perguntar se as transformações tecnológicas e culturais, entretanto ocorridas nas sociedades desenvolvidas, apenas alteraram, embora às vezes muito substancialmente, as características, as rotinas e as expectativas do ser humano, ou se elas não terão tido consequências e impactos de outra ordem, ao ponto de ser legítimo - ou mesmo imperativo - perguntar se não seremos nós já hoje, na verdade, seres mutantes.» (p. 97)
«Aqui, as novas tecnologias foram determinantes e sê-lo-ão certamente cada vez mais, elas criam um contexto completamente inédito para todas as modalidades de viver o corpo e o tempo. Na verdade, é com elas que efectivamente se muda de fase, no sentido da mutação antropológica a que atrás me referi. É que com elas, e nomeadamente com o telefone portátil e o computador pessoal, com os "tablets" e os "smartphones", que a definição do ser humano passa a ser dada pela sua conectividade, uma vez que a sua identidade decorre agora fundamentalmente, não do seu enquadramento familiar, profissional ou social, mas de se estar ligado, e das modificações desta conexão.» (p.101)
«Por outro lado, é preciso ter bem em conta que, para um ser humano ligado, o tempo é apenas o da actualidade, que assim lhe impõe viver no regime do mais completo curto-termismo. Uma actualidade que invade -como se a pudesse substituir - a própria vida interior dos indivíduos, ao mesmo tempo que os priva de qualquer visão global da sociedade a que pertencem. O que acontece porque se vive num regime de uma aceleração tal, que ela dilui a percepção das várias temporalidades da existência humana num presente perpétuo, excitantemente extático, em que os acontecimentos se multiplicam na razão inversa da compreensão do seu sentido. O tempo comprime-se, o atordoamento instala-se, vive-se com a angustiante noção - que contraria todas as promessas da utopia tecnológica - que realmente não há tempo para nada.» (p. 103)
«Ora, uma das razões mais fortes dos equívocos políticos do nosso tempo está justamente aqui, na frequente confusão criada pela errada identificação da democracia, da sua natureza e dos seus objectivos, com as ideologias, a sua natureza e os seus objectivos. Porque democracia e ideologia são coisas muito diferentes, pois enquanto estas têm uma natureza programática e objectivos programáticos, a democracia tem uma natureza reguladora e objectivos orientadores.» (p. 106)
«Foi esta confusão [entre democracia e ideologia] que, em boa medida, levou a que o processo de declínio da democracia fosse paralelo ao da erosão das ideologias, do seu lento desaparecimento, seja qual for a ideologia que se considere. Socialismo, liberalismo, democracia-cristã, comunismo, anarquismo, todos estes "ismos" ideológicos, bem como as suas diversas variantes, foram desaparecendo nas últimas décadas, com velocidade e identidades distintas conforme as diversas circunstâncias históricas que se considere.» (pp. 107-8)
«Há contudo aqui que considerar dois casos, que podem parecer desmentir o que acabo de afirmar: o do liberalismo triunfante na sua versão neoliberal, que arrancou nos anos 80 com a dupla Thatcher/Reagan e com o movimento da globalização. E o da social-democracia, que ensaiou um movimento de "modernização" nos anos 90, liderado por Tony Blair e a sua Terceira Via. Abordaremos numa outra ocasião o caso do liberalismo e dos principais equívocos que o rodeiam, deixando no entanto já bem claro que o seu domínio foi indiscutível nestas últimas décadas, tão indiscutível quanto o foi o fracasso da réplica social-democrata, apesar de nos anos 90 o socialismo democrático ter chegado a dominar mais de uma dúzia de governos ocidentais.» (p. 109)
«E essa nova realidade é, insisto, a de um financismo global absolutamente inédito, coadjuvado - num contexto de intensa globalização - por um individualismo tão robusto como disseminado e por umas novas tecnologias que, numa convergência ainda sem nome - eu tenho proposto, como já referi, o de "endividualismo" -, fazem ajoelhar toda a gente, reinventado assim a "servidão voluntária" tão bem caracterizada pelo filósofo Boécio.» (p. 110)
«[...] sem formas de pensamento que estruturem convicções colectivas e assumam no tempo o compromisso da sua concretização - eram afinal isso, no essencial, as ideologias -, a política rendeu-se ao tacticismo sem princípios, ao pragmatismo sem visão e ao curto-prazismo sem responsabilidade.» (p. 111)
«Quero com isto dizer que a chamada "crise da democracia", que indiscutivelmente existe e exibe as características que fomos vendo, traduz uma outra crise, e que esta é que é a sua verdadeira causa de tal modo que, sem alterações a esse nível será difícil, talvez mesmo impossível, que algo mude. Essa causa, que está na raiz da crise da democracia é, na minha hipótese, a crise da própria sociedade em que se ancora e desenvolve a democracia.» (p. 112)
«[...] é na crise da sociedade, dada a unidimensionalidade que ferreamente se impõe a todos (e que tem no extremismo do centro uma das suas formas políticas de eleição), que se encontra a verdadeira raiz da crise da democracia, que a exprime de diversos modos, conforme as circunstâncias históricas, geográficas e políticas em que ela ocorre.» (p. 114)
«Na origem da opacidade em relação à origem da crise da democracia, estarão certamente muitos factores, mas creio ser de sublinhar o papel do que Jean-Marie Guéhenno chamou "les mensonges de 1989", que me parece preferível designar como os equívocos de 1989. E que foram três: primeiro, a confusão entre o fracasso do sistema soviético e a vitória da democracia; depois, a incapacidade de repensar seriamente a construção europeia; por fim, a insensibilidade quase total ao impacto que o fim da Guerra Fria teve na estabilidade das nações e, portanto, nas instituições internacionais que elas constituíam.» (p. 115)
No último capítulo, Carrilho refere-se a uma nova era política, a que chama era das geringonças. Não sendo exclusivo de Portugal - como o governo formado em 2015 por António Costa, com o apoio do Partido Comunista, do Bloco de Esquerda e de "Os Verdes" - esse tipo de alianças foi inaugurado no princípio desse ano por Alexis Tzipras, na Grécia, com o "Syriza" e os "Gregos Independentes" (de direita). Existiu mais tarde em Itália, com o "5 Estrelas e a "Liga do Norte"; em Espanha, com uma heteróclita coligação liderada pelo PSOE; em 2021, na Alemanha, com Olaf Scholz a fazer a aliança dos sociais democratas com a direita liberal e a esquerda ecologista; e em França «que apresenta, por um lado, uma geringonça atípica, em constante metamorfose em torno do seu próprio vazio estratégico e pragmático, criada por Emmanuel Macron com o seu "En Marche", agora rebaptizado como "Renaissance", e por outro lado a pletórica geringonça de Jean-Luc Mélenchon que, com o "NUPES", aglutinou nada menos do que 16 forças políticas distintas...» (p. 118)
«Esta era das geringonças traduz, na minha perspectiva, o apogeu do cinismo político contemporâneo, que vai adoptando as máscaras que a situação mais aconselha para aceder ao poder. Definitivamente pós-ideológica, esta era impõe-se no século XXI simultaneamente como o novo horizonte político de uma época que, na realidade, vive sem ideologias, bem como um novo dispositivo, estruturalmente híbrido, de governação dos homens e de administração das coisas, realidades que aparecem hoje cada vez mais identificadas.» (p. 118)
«Se assim for, a era das geringonças será a resposta política de uma nova época. E ela surge marcada por, pelo menos, oito mutações decisivas: 1) a dos programas pelas performances, 2) a das ideias pelos interesses, 3) a da substância pelo estilo, 4) a do colectivo pelo conectivo, 5) a do social pelo societal, 6) a do cidadão pelo consumidor, 7) a da pessoa pelo indivíduo, 8) a do nacional pelo global, abdicando assim de qualquer visão ou perspectiva de futuro. De uma época que vive como se estivesse anestesiada - ora em júbilo, ora em depressão - por uma actualidade frenética que é permanentemente ritualizada em termos de uma "crise interminável" pelos irmãos siameses da comunicação e da política.» (p. 119)
E termino, porque este texto vai já demasiado longo.
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Pensara fazer um resumo das teses expendidas por Manuel Maria Carrilho, mas a importância do conteúdo do livro e o risco de involuntariamente trair o pensamento do autor em matérias tão delicadas, levou-me proceder à transcrição de várias passagens, procurando transmitir as preocupações expressas na obra. Obra cuja leitura vivamente recomendo.