No último capítulo do livro Soi-même comme un roi, de Élisabeth Roudinesco, que acabei de ler há dias, é feita uma referência especial ao problema da substituição da população europeia por populações migrantes, o "grand remplacement", teorizado formalmente pela primeira vez por Renaud Camus (n. 1946), mas que dera já origem a uma obra como La France Juive (1886), de Édouard Drumont, grossa de 1200 páginas em dois volumes, então especialmente virada para a influência judaica. Também, em 1973, Jean Raspail publicou Le camp des saints, que na altura passou quase despercebido mas que trinta anos mais tarde viria a obter um sucesso monumental junto de todos os identitários nacionalistas e seria traduzido em numerosas línguas. Livro sucessivamente reeditado, na reedição de 2011 Raspail redigiu um prefácio intitulado "Big Other", em homenagem (equívoca) ao romance de George Orwell. Finalmente, em 2011, Renaud Camus publica Le Grand remplacement, onde desenvolve a sua tese da substituição dos franceses de souche por muçulmanos árabes e negros, que passaram a ocupar, no seu imaginário, os anteriormente vituperados judeus. Esta obsessão com a preservação dos franceses de cepa, ameaçados pelos imigrantes, seria ainda o tema do famoso romance Soumission (2015), de Michel Houellbecq, a que fizemos oportunamente referência neste blogue. Sobre os livros de Drumont, Raspail e Renaud Camus iremos debruçar-nos em próximos posts.
Como escrevi acima, a referência de Roudinesco a Renaud Camus suscitou-me o desejo de ler Tricks, o primeiro livro deste escritor a obter considerável sucesso, o qual repousava há anos na minha biblioteca, e cujo tema nada tem a ver com as preocupações identitárias. Publicou Renaud Camus Tricks em 1979, e o livro foi objecto de diversas edições e reedições (também em línguas estrangeiras). A minha edição (a 3ª), considerada a definitiva, contou com um prefácio de Roland Barthes, de quem o autor foi amigo. "Tricks", que se poderá traduzir aqui genericamente por "engates", descreve 46 relações homossexuais do autor com parceiros diversos, em apartamentos, em discotecas especializadas, em saunas, em sanitários públicos, na praia, em variados locais, inclusive nos jardins de Notre-Dame.
No prefácio, cumplicidade oblige, Roland Barthes tenta atribuir um especial valor literário à descrição destes "tricks", conferindo-lhes quase um estatuto de experiência mística mais do que simples actividade sexual, mas é evidente que nem a boa vontade do Mestre consegue iludir o facto de que se trata de vulgares engates. Conta o livro os encontros de Renaud Camus nos primeiros meses de 1978, com rapazes e homens com quem manteve as mais diversas relações sexuais, descritos com abundância de pormenores, incluindo o físico dos parceiros, curiosamente todos (excepto um) com bigode (era a moda na época, imitando o vocalista Freddie Mercury, dos Queen) e razoavelmente peludos. Diga-se em abono da verdade que Renaud Camus, que publicou posteriormente uma vasta e variadíssima obra, ainda navegava nas águas da sua militância homossexual e estava longe da actividade política com que está a coroar a sua carreira de escritor. Tendo convivido com os mais distintos intelectuais do seu tempo, como Barthes, Aragon, Matzneff, Marguerite Duras ou Robbe-Grillet, Renaud Camus, considerado um homem de esquerda, foi membro do Partido Socialista francês e convicto apoiante da candidatura presidencial de François Mitterrand em 1981. Confesso admirador do escritor francês Tony Duvert (caído em desgraça por se dedicar a jovens demasiado jovens), assinou algumas das suas obras usando ora o prenome Tony ora o apelido Duvert em homenagem ao falecido plumitivo, ostracizado pela ditadura dos costumes que vigora hoje no Ocidente.
Também é verdade que a descrição que Camus faz dos seus engates, apesar da minúcia, nunca é pornográfica, contém pelo meio pormenores interessantes e talvez seja mais autêntica e literariamente mais conseguida da que é feita por Arthur Dreyfus no seu recente livro Journal sexuel d'un garçon d'aujourd'hui (2021), que não comprei nem li, e que relata, em 1300 páginas, as suas centenas de engates homossexuais estabelecidos através da internet. Presumo que, neste caso, se trata de uma actividade bastante impessoal, mas segundo a doxa que nos é imposta os contactos humanos devem ser progressivamente substituídos por contactos digitais, mesmo no que ao sexo diz respeito. Não me espantaria se, num futuro próximo, a consumação carnal dos engates sexuais via computador ou telemóvel viesse a realizar-se também online, como, aliás, já se regista, alternativamente, em algumas situações particulares.
Também Camus provocou uma certa polémica em França ao manifestar-se contra a exagerada proporção de judeus em certas emissões televisivas [o que até era verdade, mas não se pode dizer], no caso concreto a propósito de uma emissão de France Culture. Vários intelectuais acusaram-no de anti-semitismo mas Camus recebeu também a solidariedade de muitos dos seus pares, que defenderam o seu direito à liberdade de expressão.
Causa alguma admiração esta viragem ideológica e política de Renaud Camus. Tendo sido um fervoroso defensor dos direitos dos homossexuais, e continuando a ser ele mesmo um homossexual assumido, a sua hostilidade em relação aos árabes e aos negros, geralmente considerados excelentes parceiros sexuais (segundo afirmam os conhecedores), revela-se surpreendente. Poderia atribuir-se essa antipatia a algumas experiências mal sucedidas, mas isso não basta para atacar aquelas comunidades, ainda que se possa admitir que o número de representantes de certas etnias em solo francês esteja a provocar um desequilíbrio na manutenção das tradições e costumes ancestrais dos gauleses. Mas é também uma verdade que, desde há mais de um século, os governos da República Francesa não souberam lidar com as sucessivas camadas de população migrante, descurando a sua integração no solo nacional.
Voltaremos brevemente a Renaud Camus.
Nota 1: Um dos jovens com quem Camus manteve comércio carnal era português, de nome Zé, natural de Coimbra mas vivendo desde pequeno no Brasil.
Nota 2: Considerando que o livro tem cerca de 500 páginas, confesso que a partir sensivelmente de metade passei a lê-lo obliquamente e com alguma rapidez. Não há paciência (nem tempo) para tomar conhecimento destas aventuras quase diárias de Camus que, embora variando na forma de actuação, no tipo dos protagonistas, na variedade dos locais, na abundância dos pormenores e até nalguns aspectos reconhecidamente interessantes, pela sua repetição se tornam fastidiosas.
Nota 3 - Importa ainda salientar que ao longo do livro perpassam bastantes referências culturais, o que se traduz, naturalmente, num valor acrescentado.