Comprei Sebastião José, de Agustina Bessa-Luís, em 1981, ano da sua publicação. Jazia desde então, inlido (não sei se existe a palavra, mas pouco interessa), na minha biblioteca, como acontece a tantos outros livros. Devido a uma referência de Maria Ângela Pires, resolvi agora lê-lo.
A exemplo da generalidade das obras da escritora, que ainda conheci pessoalmente, esta "biografia" do marquês de Pombal constitui mais uma oportunidade para Agustina debitar, com o talento que se lhe reconhece, os seus habituais aforismos, exercício que sempre prezou.
Mais do que uma história da vida do marquês, pretende a autora traçar um perfil psicológico, nem sempre conseguido, já que Sebastião José escapa às extrospecções possíveis. E perfil por perfil, temos o Perfil do Marquês de Pombal, de Camilo Castelo Branco.
Há que reconhecer que a autora não se restringe à figura do Marquês mas entra na apreciação da sociedade portuguesa, e europeia, da época, que pretende descrever, ainda que de forma muitas vezes confusa e principalmente segundo um ângulo muito subjectivo. Como é seu costume, e apesar da abundância da bibliografia citada, que Agustina certamente não leu, existem inexactidões e conclusões precipitadas. A começar pela imprecisão da informação genealógica e pelo aparecimento, a despropósito, de muitas figuras, algumas das quais se perdem pelo caminho. Esta perda das personagens não é inédita nas obras de Agustina; uma vez questionei-a a esse respeito e ela respondeu-me, com a maior naturalidade (e até satisfação!) que não tinha a menor importância: esquecia-se delas, quando já não interessavam à estória e seria uma maçada recuperá-las.
O anacronismo da narrativa acabou por me distrair do essencial, mas também não era intenção da autora escrever uma biografia "clássica" de Sebastião José. Algumas ideias fortes são todavia enfatizadas: as inclinações jansenistas de Pombal, o permanente conflito deste em relação a Roma (o marquês terá sido iniciado na Maçonaria em Londres, ou mais provavelmente em Viena, no período em que foi representante diplomático naquelas cortes, embora Agustina o não refira), a origem de nobreza provinciana de Pombal (que sempre o afectou e o pôs em conflito com a grande nobreza da época), os dotes intelectuais habitualmente atribuídos ao marquês (que a I República tanto salientou mas que Agustina considera um exagero), a atribuição a D. José, mais do que a Pombal, da perseguição dos Távoras (que não posso ajuizar, embora possua alguns valiosos volumes sobre o Processo que, por lamentável falta de tempo, nunca tive oportunidade de ler), a ideia de que se deve ao marquês o plano de reedificação de Lisboa depois do terramoto, embora este apenas tenha criado os meios para a sua realização.
Não se cansa Agustina de criticar os ingleses por sistematicamente terem explorado Portugal, e pelas atitudes que contra nós tomaram. E que muito se avolumariam nos séculos posteriores, e até hoje. A famigerada Aliança Luso-Britânica (1373), firmada entre Eduardo III de Inglaterra e D. Fernando I, funcionou sempre em sentido único, mesmo quando disfarçada de intervenção a favor da soberania portuguesa!
É dedicado um capítulo às questões económicas, que Agustina não domina mas que não a leva a abster-se de longas dissertações, com incorrecções evidentes. Salientando-se contudo no livro a criação da Companhia dos Vinhos do Alto Douro, para pôr termo às depredações inglesas no terreno, assunto que a escritora, como avisada mulher do Norte, conhece muito bem, até por raízes familiares.
A expulsão dos Jesuítas por Pombal merece também destaque, considerando Agustina que este os odiava mais do que aos próprios Távoras, e salientando a execução do padre Malagrida, queimado num auto-de-fé no Rossio, depois de garrotado, e a expulsão do próprio núncio do Papa, mons. Acciaiuoli.
Neste livro, que oscila entre história e alguma ficção (para lá das considerações pessoais e naturalmente muito subjectivas da autora), Agustina insiste em que Pombal pretendeu seguir o exemplo de Sully, o célebre ministro de Henrique IV de França, mas que o seu papel junto de D. José esteve, dadas as circunstâncias, muito longe de se assemelhar ao célebre militar e político francês.
Permito-me duas transcrições:
«No meio desta desfilada de apetites, intrigas, decepções, só a casa Marialva parece prosperar. O Marquês de Marialva é hábil, bom bebedor e o bastante libertino para parecer um Tibério reformado; a sua fortuna permite-lhe estar acima de toda as suspeitas - políticas e morais. Beckford, que o conheceu ainda no meio de uma multidão de poetas, músicos, lacaios, macacos, anões, toureiros e crianças com asinhas transparentes extremamente formosas, poupa-o às suas ferroadas e até lhe pretende a filha para casamento. Para um inglês respeitar um velho devasso é preciso que ele o impressione muito, ou pela fortuna, ou pelo humor um tanto original que é o sintoma de liberdade justificada pela fortuna. Beckford, de resto, mal aceite pela colónia inglesa devido à sua extravagância de rastacouère [suspeito de que a palavra está mal escrita em francês], encontrou em Lisboa a atmosfera imparcial e doce que se confunde com a licença. A Corte nunca o recebeu oficialmente, e só o Marialva o aceitou, com essa largueza de vistas um pouco displicente com que se suportam os visitantes cuja reputação é um excitante, mas não um compromisso.» (pp. 116-7)
[Não escreve Agustina mas digo eu que William Beckford, riquíssimo e excêntrico aristocrata inglês, chegou a Portugal em 1787, devido às pressões britânicas para deixar então o seu país e viajar pela Europa, devido aos escândalos homossexuais que provocara. Em Lisboa (arredores) instalou-se no Ramalhão e conviveu com muita gente da nobreza, especialmente com D. Diogo de Meneses de Noronha Coutinho, 5º marquês de Marialva, que, atendendo à riqueza do inglês pensou casá-lo com sua filha, que viria mais tarde a desposar o duque de Lafões. Mas não era na filha que Beckford (com 27 anos) estava interessado mas no filho, D. Pedro de Meneses Coutinho, então com doze anos, e que viria a ser o 6º marquês de Marialva. Houve mesmo uma relação de grande intimidade entre o jovem e Beckford, conforme consta do Diário deste, embora não se possa afirmar que o ilustre visitante tenha passado das palavras aos actos, como sucedeu em relação a muitos outros rapazes que conheceu em Portugal.]
Nas páginas dedicadas ao processo dos Távoras, Agustina escreve: «Porque isso que, sob tormento, declarou o porteiro do Duque de Aveiro, que no dia seguinte ao atentado se reuniu na casa do dito Duque parte dos conjurados, parece ser falso, pela imprudência que descreve. Há testemunhas de antemão preparadas para confessarem coisas francamente comprometedoras, como no caso do boleeiro do Duque, Francisco da Costa, da cidade de Braga, e que não é sujeito a tormento, pela acusação violenta que fornece. Descreve o Duque como "péssimo de génio e pior condição, que parecia herege, sumamente soberbo, e desprezador de todos, porque todos os criados descompunha sobre lhes não pagar". E que, tendo ele, respondente, dito uma vez: "Que ele duque, era mais bem servido que El Rey", lhe respondera, como soberba e desprezo: "Que me importa cá El Rey; cabrão, filho da puta".» (p. 130)
Não pretende Agustina, nem eu tão pouco, formular um juízo cabal sobre as grandezas e misérias de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782). Demitido (ou demitindo-se) de "primeiro-ministro" de D. Maria I, logo após a morte de D. José, tem o tempo julgado, e continuará a julgar, o seu longo consulado à frente dos destinos do país. Longe de poder ser comparado a Richelieu, o 1º marquês de Pombal deixou, contudo, e inegavelmente, uma marca indelével na História de Portugal.
1 comentário:
1) "rastacouère" é perfeitamente legítimo, embora "rastaqouère" seja talvez o original.
2) Algo se terá passado de concreto entre Beckford e D.Pedro. Se não, dificilmente escreveria a 22 de Outubro (1787) "He loves me. I have tasted the sweetness of his lips".
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