Foi publicado há dias Salazar - O Ditador que se Recusa a Morrer, de Tom Gallagher, tradução portuguesa de Salazar - The Dictator Who Refused to Die (2020).
Trata-se de uma biografia de António de Oliveira Salazar (1889-1970) que pode situar-se entre os trabalhos de Filipe Ribeiro de Meneses e de Bernardo Futscher Pereira, que utilizam o método científico da investigação histórica, e a obra de Franco Nogueira, que é uma aproximação mais memorialística, até porque o autor, estando no exílio, não tinha acesso às fontes primárias. Há ainda os livros de Fernando Dacosta que consagram uma visão algo intimista da personagem.
A leitura do livro é agradável, embora a organização das matérias careça, por vezes, de alguma continuidade, verificando-se repetições desnecessárias, e também omissões que, não sendo certamente intencionais, decorrem de lapsos ou da desatenção do autor. Não conheço o original, mas o texto português que, em geral, se lê fluentemente, encalha por vezes na construção das frases, o que parece dever-se mais à tradução do que à escrita inicial, ainda que esta proponha, de quando em vez, parágrafos menos bem articulados.
Passados que são cinquenta anos sobre a morte do antigo chefe do Governo, Gallagher pretende ser um observador imparcial do homem e da época, objectivo que parece alcançado. Tantos e tão variados têm sido os textos publicados sobre Salazar no meio século transacto, que este não surge propriamente como novidade mas antes como a tentativa de uma leitura mais objectiva dos factos, sistematicamente distorcidos quer pelos apoiantes, quer pelos opositores do regime derrubado em 1974.
Não cabe aqui a análise do livro mas tem interesse registar alguns aspectos enfatizados pelo autor.
É do conhecimento geral que Salazar foi uma pessoa austera, mesmo puritana, na sua vida pessoal, mas com poucas ilusões sobre as "virtudes" dos homens. Por isso, nunca se preocupou muito com os costumes dos outros, logo que não ocorresse escândalo público, já que as aparências tinham de ser salvaguardadas. Assim, teve como colaboradores próximos muitas pessoas cujos costumes não se enquadravam na doxa, desde que fossem leais e competentes. Uma posição bastante distante da de alguns dos principais vultos do regime, como Marcelo Caetano e Pedro Theotónio Pereira, empenhados na defesa da "moralidade pública".
Um aspecto normalmente distorcido é o que respeita às relações com a Igreja Católica, que é considerada geralmente como um suporte do Regime. Chefiando Salazar o Governo e o Cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa, a Igreja (de facto que não de direito, já que desde há muitos anos todos os bispos reportam directamente a Roma) e sendo velhos amigos, é costume ouvir dizer-se que contou sempre com o apoio da instituição eclesial. Nos primeiros tempos, não refeita dos atropelos que sofreu durante a I República, este suporte foi real, mas desvaneceu-se com o passar dos anos, até ao momento em que se constituíram grupos católicos de oposição e mesmo a crítica de alguns bispos e as acções de distanciamento da própria Santa Sé. Aliás, e importa salientar, o Cardeal Cerejeira era realmente muito mais liberal do que Salazar.
Também é reduzida à sua dimensão a figura de Aristides de Sousa Mendes, que foi cônsul de Portugal em Bordéus durante a Guerra, e a quem se atribuem hoje feitos heróicos relacionados com a concessão de vistos a judeus. Não só o antigo diplomata foi uma figura particularmente controversa, como a concessão de vistos não teve a extensão que hoje se proclama, nem os vistos foram concedidos exclusivamente a judeus mas a pessoas de várias origens. Houve nesse conturbado período outras acções tão ou mais meritórias, como as de Sampaio Garrido (que Gallagher não cita) e de Teixeira Branquinho, que foram, em 1944, respectivamente embaixador e encarregado de negócios em Budapeste.
Outras faceta pertinente do livro é a análise das relações de Portugal com o Reino Unido, ligados pela velhíssima Aliança Inglesa, que verdadeiramente só funcionou a favor dos britânicos desde que foi firmada há mais de 600 anos. O autor conta a pressão dos britânicos para evitar a venda de volfrâmio à Alemanha, quando Salazar pretendia manter a neutralidade e o facto de Churchill e outros políticos ingleses terem considerado a hipótese de um golpe de Estado em Portugal que promovesse a sua destituição, aquando das reticências à instalação de bases nos Açores, que os americanos haveriam de obter, através de um ultimato. Registe-se que Salazar nem era anti-britânico, pelo contrário, mas ninguém é perfeito. Tinha sim uma especial aversão pelos americanos, atitude de que eu comungo inteiramente. Os americanos desde há mais de um século que se consideram os donos do mundo e como tal têm actuado, mas a sua hegemonia aproxima-se do fim.
Em 1949, Salazar hesitou em aderir à OTAN. «Vieram-lhe à cabeça temores de que o rumo desta aliança poderia, em última análise, enfraquecer a soberania portuguesa. [...] Ironicamente, os primeiros tiros que a OTAN disparou a valer ocorreriam no que pode ser visto justamente como um desses conflitos internos, aquele que envolveu a violenta fragmentação da Jugoslávia.» (p. 218)
Há duas coisas que este livro não explica, tal como as precedentes biografias. Uma é a obstinação de Salazar em considerar que o Império Colonial Português se manteria pelos tempos; outra, a sua recusa em encarar a sucessão. Sabemos que Salazar, que era indiscutivelmente um homem inteligente e cultivado, era também muito teimoso e persistente nas suas convicções, embora soubesse ser pragmático quando as circunstâncias o exigissem. Ora a política internacional convergira no sentido de considerar encerrada a época colonial. As colónias francesas de África tornaram-se independentes em 1958 e as inglesas nos princípios do anos 60. O Congo Belga tornou-se independente em 1960. A própria Argélia, que para os franceses nem era uma colónia mas uma extensão da França metropolitana, obteve a independência em 1962. Não era expectável que Portugal mantivesse indefinidamente as suas colónias de África, mesmo com a designação de províncias ultramarinas.
A questão da sucessão, porque verdadeiramente de sucessão se tratava, não foi ignorada por ele mas constantemente adiada, à medida que mudava de opinião sobre os potenciais sucessores. Ela dependia também da correlação de forças em cada momento e as Forças Armadas teriam necessariamente um papel a desempenhar na escolha. Muito mais do que a Igreja Católica, foram aquelas o verdadeiro sustentáculo do Regime e as que haveriam de determinar o seu fim, embora não fosse já Salazar quem detivesse o poder. Mesmo quando criou um ministro da Presidência escassas foram as responsabilidades que lhe foram cometidas, pois sempre Salazar receou uma intromissão na sua capacidade decisória. Apesar de muitos percalços internos e externos, a sua habilidade política e o seu indubitável conhecimento do povo português permitiram-lhe conservar-se no poder durante quatro décadas.
Por curiosidade, transcreve-se da página 240 uma afirmação de Salazar a André de Staercke, funcionário belga da OTAN. A uma pergunta deste sobre a sucessão, considerando uma afirmação de Salazar demasiado fatalista, este responde-lhe: «Sabe, há muito sangue árabe neste país.»
Há ainda outro aspecto sobre o qual os seus biógrafos não se debruçam: a sua vida sexual. Não se lhe conhecem paixões, nem mesmo verdadeiras paixonetas, se é que tudo o que se conta (e é pouco) não passou de um platónico encantamento. O único caso mais visível, mas inconsequente, foi o da jornalista Christine Garnier. Também nunca constou que se sentisse atraído por homens. Não teria Salazar vida sexual??? Chegaram a insinuar que haveria um caso com a sua governanta Maria de Jesus, mas segundo as fontes, esta, quando morreu, estava virgem. Tirando a hipótese de uma castidade mantida ao longo de toda a vida, sobra que Salazar tivesse satisfações solitárias, o que não deixa de ser estranho.
Em jeito de balanço, dir-se-á que Tom Gallagher, não escondendo o lado autoritário e conservador de Salazar, o seu horror ao desenvolvimento (a que só moderadamente acedeu quando muito pressionado), a sua profunda obsessão quanto ao perigo comunista, revela-nos todavia os aspectos positivos de uma governação empenhada em manter o equilíbrio financeiro, em assegurar uma neutralidade na Segunda Guerra Mundial que nos evitasse o horror do conflito, em defender corajosamente a independência do país e uma integridade territorial, que se manifestaria impossível dada a existência das parcelas coloniais.
Não conferi as datas, mas pareceu-me que algumas não são exactas. Também a abordagem dos assuntos, não seguindo rigorosamente uma ordem cronológica, dificulta por vezes o entendimento do texto.
1 comentário:
Comparar as ações de Sousa Mendes com as dos dois diplomatas de Budapeste é injusto para com o primeiro, dado que o contexto era completamente distinto, em 1940 a Alemanha estava a ganhar a guerra, em 1944 ela estava irremediavelmente perdida. Esses diplomatas tinham o apoio do Governo Português, Sousa Mendes agiu à revelia das ordens das Necessidades.
Curiosamente, se Salazar irradiou Mendes, honrou os vistos todos que ele emitiu.
Depois, não se compreende a referência ao facto de que Mendes não salvou apenas judeus. Claro que não, o homem era um católico devoto, o que o preocupava era a proteção das vidas individuais.
O facto de não ter discriminado judeus é que é relevante, dado o anti-semitismo que caracterizava o catolicismo anterior ao Vaticano II (ou a ambiguidade em relação ao anti-semitismo, para sermos brandos).
Também não se compreende a preocupação com a sexualidade de Salazar. Contrariamente, digamos, a um Hitler, ela não parece ter sido relevante para o exercício do poder por Salazar. Salazar era um puritano consigo próprio mas, como menciona, os vícios privados dos outros não pareciam preocupá-lo muito.
Num consulado tão longo, seguramente que há aspetos positivos na sua governação (o meu preferido é talvez o programa nacional de barragens, responsável pela produção renovável, avant la lettre). Mas o homem era iliberal e tacanho e condenou o País a 50 anos de atraso, pelo menos...
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