domingo, 20 de junho de 2021

UM ESCRITOR CONFESSA-SE

O escritor Dominique Fernandez, membro da Academia Francesa, à beira de completar os 92 anos, publicou há poucas semanas L'Homme de trop, uma espécie de testamento sexual, que coroará a sua vastíssima e notável obra.

Autor de cerca de 90 livros, dedicados à arte e à música, aos países de sua eleição e à vida de homens notáveis, e ainda especificamente à questão homossexual, ainda que esta percorra mais ou menos explicitamente toda a sua produção literária, Dominique Fernandez (n. 25 de Agosto de 1929) consagrou prioritariamente a sua obra ao mundo italiano e ao mundo eslavo, sem esquecer uma especial simpatia pelos árabes. Cultivou o romance, a biografia, a literatura de viagem (em muitos casos fotograficamente ilustrada com as imagens de Ferrante Ferranti), o ensaio, e escreveu mesmo um libretto de ópera. Devem-se-lhe ainda várias traduções da língua italiana.

A obra que ora se aprecia, e que presumo ser a derradeira, é uma espécie de testamento literário de carácter sexual. Apresentando-se como romance, e é, desvia o género literário para uma incursão ensaística, em que o autor molda a ficção à medida da necessidade de incorporar a sua erudição clássica na defesa da condição do homossexual. Obra também biográfica, onde Dominique Fernandez se oculta por trás da personagem do protagonista para descrever a sua adolescência, a sua educação sentimental e significativos episódios da sua vida, até que uma certa libertação dos costumes ocorreu nos anos 1970. Através deste livro, percorremos meio século de história da França, sob o signo da homossexualidade.

Há um aspecto curioso no livro. O autor, a partir da predilecção do jovem "pupilo" do protagonista do romance por uma colecção de porcos de porcelana, elabora largamente sobre a condição dos porcos. Faz notar que os porcos têm sido considerados injustamente animais imundos ao longo da história, uma espécie de seres excluídos, tal como os homossexuais. Estabelece mesmo a igualdade porcofobia=homofobia e brinda-nos com uma extensa bibliografia (dos clássicos e da Bíblia até aos contemporâneos) sobre a forma como a literatura considerou os porcos ao longo dos séculos.

Dominique Fernandez

Sobre os cuidados da velhice, Dominique Fernandez escreve apropriadamente: «Jusqu'à trente-cinq, quarante ans, on fanfaronne, on n'a besoin de personne, on s'est fier d'être seul, et puis, peu à peu, vient le désir de s'appuyer sur quelqu'un, de compter sur lui, ne serait-ce que pour les choses pratiques, les ennuis de santé, les réunions avec les colocataires, les déclarations d'impôts à remplir, les valises à porter quand on part en voyage.» (p. 230)

E sobre o ensino: «Lucas constata que les élèves de Gaël (une première littéraire), déjà installés à leur place, ne se levaient pas à l'entrée de leur professeur, comme lui même et ses camarades le faisaient quarante-cinq ans plus tôt. En quarante-cinq ans, l'argent étant devenu la seule valeur, on jugeait un homme selon son revenu. Le corps enseignant étant toujours aussi mal payé, la modestie de leur salaire diminuait l'estime portée aux professeurs dont on appréciait autrefois le dévouement. Quant au savoir, ils n'étaient plus les seus détenteurs. Google en savait autant qu'eux, et souvent bien plus. Tout ce qui était dates, vie des auteurs, raccourci des personnages, résumé des intrigues, réception de l'oeuvre, etc., n'avait plus besoin d'être enseigné.» (p. 233)

Sobre a actual atmosfera de uma maior liberalidade nos costumes, Dominique Fernandez é manifestamente contra. Desde a chamada linguagem "inclusiva" (que afinal exclui) até ao Pacs (Pacte civil de Solidarité), a união civil de duas pessoas maiores independentemente do seu sexo, o autor manifesta fundadas reservas. Apesar de ter, na altura, defendido a legalização do Pacs, considera-o uma prisão, a ocasião aguardada pelos conservadores para restabelecer os valores da família e reforçar a protecção dos filhos. «Les pacsés vont devenir fidèles et mener une vie de couple qui leur ôtera l'envie d'aller draguer les jeunes dans le métro, les étudiants à la sortie de la fac. Les chers petits seront à l'abri de la menace. Les soeurs ne craindront plus pour leur frère, les fiancées pour leur promis, les épouses pour leur mari. Un célibataire, c'est toujours dangereux! Rien ne l'attache à son foyer, puisq'il n'a pas de foyer. Le Pacs lui en donne un. Le voilà pourvu d'un chez-nous. Pénatisé! Je ne dis pas ligoté, mais ficelé quand même! Rallié au modèle conjugal! Son domicile, ses sorties, ses loisirs, il les partage. La vie à deux l'amène à des scrupules, à des concessions, à des renoncements qui, mis bout à bout, rognent fatalement sur son indépendance et lui enlèvent le goût des infidelités. Finies les incartades...» (pp. 256-7)

«Sans Corydon, on en serait resté à la vision de Proust, et les homos passeraient pour des tarés, des types à se faire enchaîner, fouetter, empaler par des malabars dans des bordels clandestins.» (p. 259)

«À Montmartre, Gaël se blotissait contre Lucas et feignait de l'embrasser sur la bouche. Cette manoeuvre, qu'il avait essayée dans les jardins du Palais-Royal, n'avait etonné personne. Les habitués en avaient vu d'autres! À peine si quelque passant occasionnel l'avait remarquée. Mais le dimanche, sur la butte envahie par la foule des badauds, l'opération réussissait à tout coup. On les pointait du doigt, les Américains vérifiaient dans leur vade-mecum si exhiber aussi publiquement son désir fait partie de "l'exception française", les Russes se poussaient du coude en constatant la décadence de l'Occident, les Japonais les prenaient en photo, les Chinois crachaient par terre, en signe de désaprobation (mais peut-être le contraire, on ne sait jamais avec eux). Quant aux mères de famille, elles ordonnaient à leurs rejetons de regarder ailleurs et se hâtaient de les entraîner plus loin. Un cadre en complet-veston et cravate à rayures, qui promenait ses deux fils mineurs, regretta tout haut de ne pouvoir appeler les agents.» (p. 267)

Em resumo: Dominique Fernandez lutou pela "emancipação" dos gays (não gosto desta palavra anglo-saxónica, mas uma vez ou outra utilizo-a) e pelo reconhecimento dos seus direitos; todavia, a "normalização" a que se assiste (normalização aliás fingida), desgosta-o. Quando os homossexuais começavam a lutar pelo direito à diferença, já Michel Foucault proclamava o direito à indiferença.  Está esta aparentemente adquirida (em alguns países). Mas Fernandez preferia uma certa cultura da ambiguidade, a única capaz de suscitar paixões, de conduzir à arte absoluta. A matéria é complexa e os tempos são outros.

Também as questões da identidade e do género arrepiam Dominique Fernandez. Importadas das universidades americanas, tentam fazer caminho na Europa Ocidental, que a Leste encontram obstáculos. É a vontade de construir um mundo novo que se perfila no horizonte, com a intenção de transformar (e destruir?) a sociedade actual. A imposição do "politicamente correcto", que determina o discurso, derruba estátuas, cancela livros e tentará proibir filmes, eliminar pinturas e esculturas, e os demais horrores que se avizinham nesta torrente demencial, prenuncia tempos sombrios. Se não houver homens que lhe ponham termo!

No século XX francês, distinguem-se escritores e intelectuais notáveis, como Proust e Céline, Sartre e Beauvoir, Gide e Camus, Yourcenar e Duras, Cocteau e Malraux, Aragon e Montherlant, Genet e Peyrefitte, Foucault e Barthes, e tantos outros cujo nome agora não me ocorre. Dominique Fernandez figurará indelevelmente entre eles, com a virtude de ter conseguido passar ao século XXI. 

 Previne-nos o autor, no fim do livro, que será publicado um segundo volume.

 

segunda-feira, 14 de junho de 2021

SALAZAR

Foi publicado há dias Salazar - O Ditador que se Recusa a Morrer, de Tom Gallagher, tradução portuguesa de Salazar - The Dictator Who Refused to Die (2020).

Trata-se de uma biografia de António de Oliveira Salazar (1889-1970) que pode situar-se entre os trabalhos de Filipe Ribeiro de Meneses e de Bernardo Futscher Pereira, que utilizam o método científico da investigação histórica, e a obra de Franco Nogueira, que é uma aproximação mais memorialística, até porque o autor, estando no exílio, não tinha acesso às fontes primárias. Há ainda os livros de Fernando Dacosta que consagram uma visão algo intimista da personagem.

A leitura do livro é agradável, embora a organização das matérias careça, por vezes, de alguma continuidade, verificando-se repetições desnecessárias, e também omissões que, não sendo certamente intencionais, decorrem de lapsos ou da desatenção do autor. Não conheço o original, mas o texto português que, em geral, se lê fluentemente, encalha por vezes na construção das frases, o que parece dever-se mais à tradução do que à escrita inicial, ainda que esta proponha, de quando em vez, parágrafos menos bem articulados.

Passados que são cinquenta anos sobre a morte do antigo chefe do Governo, Gallagher pretende ser um observador imparcial do homem e da época, objectivo que parece alcançado. Tantos e tão variados têm sido os textos publicados sobre Salazar no meio século transacto, que este não surge propriamente como novidade mas antes como a tentativa de uma leitura mais objectiva dos factos, sistematicamente distorcidos quer pelos apoiantes, quer pelos opositores do regime derrubado em 1974.

Não cabe aqui a análise do livro mas tem interesse registar alguns aspectos enfatizados pelo autor.

É do conhecimento geral que Salazar foi uma pessoa austera, mesmo puritana, na sua vida pessoal, mas com poucas ilusões sobre as "virtudes" dos homens. Por isso, nunca se preocupou muito com os costumes dos outros, logo que não ocorresse escândalo público, já que as aparências tinham de ser salvaguardadas. Assim, teve como colaboradores próximos muitas pessoas cujos costumes não se enquadravam na doxa, desde que fossem leais e competentes. Uma posição bastante distante da de alguns dos principais vultos do regime, como Marcelo Caetano e Pedro Theotónio Pereira, empenhados na defesa da "moralidade pública".

Um aspecto normalmente distorcido é o que respeita às relações com a Igreja Católica, que é considerada geralmente como um suporte do Regime. Chefiando Salazar o Governo e o Cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa, a Igreja (de facto que não de direito, já que desde há muitos anos todos os bispos reportam directamente a Roma) e sendo velhos amigos, é costume ouvir dizer-se que contou sempre com o apoio da instituição eclesial. Nos primeiros tempos, não refeita dos atropelos que sofreu durante a I República, este suporte foi real, mas desvaneceu-se com o passar dos anos, até ao momento em que se constituíram grupos católicos de oposição e mesmo a crítica de alguns bispos e as acções de distanciamento da própria Santa Sé. Aliás, e importa salientar, o Cardeal Cerejeira era realmente muito mais liberal do que Salazar.

Também é reduzida à sua dimensão a figura de Aristides de Sousa Mendes, que foi cônsul de Portugal em Bordéus durante a Guerra, e a quem se atribuem hoje feitos heróicos relacionados com a concessão de vistos a judeus. Não só o antigo diplomata foi uma figura particularmente controversa, como a concessão de vistos não teve a extensão que hoje se proclama, nem os vistos foram concedidos exclusivamente a judeus mas a pessoas de várias origens. Houve nesse conturbado período outras acções tão ou mais meritórias, como as de Sampaio Garrido (que Gallagher não cita) e de Teixeira Branquinho, que foram, em 1944, respectivamente embaixador e encarregado de negócios em Budapeste.

Outras faceta pertinente do livro é a análise das relações de Portugal com o Reino Unido, ligados pela velhíssima Aliança Inglesa, que verdadeiramente só funcionou a favor dos britânicos desde que foi firmada há mais de 600 anos. O autor conta a pressão dos britânicos para evitar a venda de volfrâmio à Alemanha, quando Salazar pretendia manter a neutralidade e o facto de Churchill e outros políticos ingleses terem considerado a hipótese de um golpe de Estado em Portugal que promovesse a sua destituição, aquando das reticências à instalação de bases nos Açores, que os americanos haveriam de obter, através de um ultimato. Registe-se que Salazar nem era anti-britânico, pelo contrário, mas ninguém é perfeito. Tinha sim uma especial aversão pelos americanos, atitude de que eu comungo inteiramente. Os americanos desde há mais de um século que se consideram os donos do mundo e como tal têm actuado, mas a sua hegemonia aproxima-se do fim. 

Em 1949, Salazar hesitou em aderir à OTAN. «Vieram-lhe à cabeça temores de que o rumo desta aliança poderia, em última análise, enfraquecer a soberania portuguesa. [...] Ironicamente, os primeiros tiros que a OTAN disparou a valer ocorreriam no que pode ser visto justamente como um desses conflitos internos, aquele que envolveu a violenta fragmentação da Jugoslávia.» (p. 218)

Há duas coisas que este livro não explica, tal como as precedentes biografias. Uma é a obstinação de Salazar em considerar que o Império Colonial Português se manteria pelos tempos; outra, a sua recusa em encarar a sucessão. Sabemos que Salazar, que era indiscutivelmente um homem inteligente e cultivado, era também muito teimoso e persistente nas suas convicções, embora soubesse ser pragmático quando as circunstâncias o exigissem. Ora a política internacional convergira no sentido de considerar encerrada a época colonial. As colónias francesas de África tornaram-se independentes em 1958 e as inglesas nos princípios do anos 60. O Congo Belga tornou-se independente em 1960. A própria Argélia, que para os franceses nem era uma colónia mas uma extensão da França metropolitana, obteve a independência em 1962. Não era expectável que Portugal mantivesse indefinidamente as suas colónias de África, mesmo com a designação de províncias ultramarinas.

A questão da sucessão, porque verdadeiramente de sucessão se tratava, não foi ignorada por ele mas constantemente adiada, à medida que mudava de opinião sobre os potenciais sucessores. Ela dependia também da correlação de forças em cada momento e as Forças Armadas teriam necessariamente um papel a desempenhar na escolha. Muito mais do que a Igreja Católica, foram aquelas o verdadeiro sustentáculo do Regime e as que haveriam de determinar o seu fim, embora não fosse já Salazar quem detivesse o poder. Mesmo quando criou um ministro da Presidência escassas foram as responsabilidades que lhe foram cometidas, pois sempre Salazar receou uma intromissão na sua capacidade decisória. Apesar de muitos percalços internos e externos, a sua habilidade política e o seu indubitável conhecimento do povo português permitiram-lhe conservar-se no poder durante quatro décadas.

Por curiosidade, transcreve-se da página 240 uma afirmação de Salazar a André de Staercke, funcionário belga da OTAN. A uma pergunta deste sobre a sucessão, considerando uma afirmação de Salazar demasiado fatalista, este responde-lhe: «Sabe, há muito sangue árabe neste país.»

Há ainda outro aspecto sobre o qual os seus biógrafos não se debruçam:  a sua vida sexual. Não se lhe conhecem paixões, nem mesmo verdadeiras paixonetas, se é que tudo o que se conta (e é pouco) não passou de um platónico encantamento. O único caso mais visível, mas inconsequente, foi o da jornalista Christine Garnier. Também nunca constou que se sentisse atraído por homens. Não teria Salazar vida sexual??? Chegaram a insinuar que haveria um caso com a sua governanta Maria de Jesus, mas segundo as fontes, esta, quando morreu, estava virgem. Tirando a hipótese de uma castidade mantida ao longo de toda a vida, sobra que Salazar tivesse satisfações solitárias, o que não deixa de ser estranho. 

Em jeito de balanço, dir-se-á que Tom Gallagher, não escondendo o lado autoritário e conservador de Salazar, o seu horror ao desenvolvimento (a que só moderadamente acedeu quando muito pressionado), a sua profunda obsessão quanto ao perigo comunista, revela-nos todavia os aspectos positivos de uma governação empenhada em manter o equilíbrio financeiro, em assegurar uma neutralidade na Segunda Guerra Mundial que nos evitasse o horror do conflito, em defender corajosamente a independência do país e uma integridade territorial, que se manifestaria impossível dada a existência das parcelas coloniais.

Não conferi as datas, mas pareceu-me que algumas não são exactas. Também a abordagem dos assuntos, não seguindo rigorosamente uma ordem cronológica, dificulta por vezes o entendimento do texto.

domingo, 13 de junho de 2021

À SOMBRA DE IRMINSUL

Recebi na semana passada mais um DVD de Norma, de Bellini, uma das mais notáveis óperas do repertório do bel canto.

Trata-se da gravação do espectáculo apresentado no Gran Teatre del Liceu, de Barcelona, em Fevereiro de 2015, com a orquestra da casa, dirigida por Renato Palumbo. Interpreta a protagonista a soprano americana, de origem checa, Sondra Radvanovsky, de quem possuo outros desempenhos operáticos em DVD, incluindo uma outra Norma, de 2017, apresentada no Met, com direcção musical de Carlo Rizzi e encenação de David McVicar.

Como é conhecido, a acção decorre numa Gália um pouco fantasiada, à sombra de Irminsul, o carvalho sagrado, que encarnava a ligação entre o céu e a terra. A ópera, com libretto de Felice Romani (a partir do poema Norma, ou L'infanticide, do francês Alexandre Soumet)  foi estreada no Scala, de Milão, em 26 de Dezembro de 1831.

Gravação de 1954

A prestação vocal é de elevado nível (não revi a gravação de 2017 mas tenho em memória que suplanta a presente) mas faltou a Sondra Radvanovsky o golpe de asa que lhe permitiria alcançar o sublime. Também digno de apreço o desempenho de Ekaterina Gubanova, em 'Adalgisa'. É claro que ninguém ainda conseguiu superar a interpretação de Maria Callas, em 'Norma' (que conheço de disco) e estou certo que a mais notável 'Adalgisa' do último meio século foi Fiorenza Cossotto, que ouvi no papel, em São Carlos, contracenando com Mara Zampieri, num espectáculo memorável.

Gravação de 1961

A encenação do americano Kevin Newbury hesita entre o convencional e o moderno, resultando híbrida, embora, globalmente, não desmereça o texto e a música de Bellini. O conflito entre o amor e o dever, o "patriotismo" dos gauleses e a ocupação romana, a paz e a guerra é bem claro nesta tragédia lírica que continua a suscitar pelo mundo o aplauso de multidões.

 

sábado, 5 de junho de 2021

QUEM MATOU PUSHKIN?

Aleksandr Pushkin

Aleksandr Sergeyevitch Pushkin (1799-1837), pai da moderna literatura russa, morreu em 29 de Janeiro de 1837, na sequência dos ferimentos recebidos no duelo que manteve dois dias antes com Georges Dantès, a quem desafiara por uma questão de saias.

Georges d'Anthès

Segundo as fontes coevas, Georges Dantès (1812-1895), foi um militar francês, oriundo de família nobre, que após a abdicação de Carlos X e a instauração da Monarquia de Julho, sob Luís Filipe, em 1830, se recusou a servir o novo regime,  emigrando para a Prússia e logo a seguir para a Rússia onde, com autorização do Governo de Paris, ingressou (1834), com apenas 22 anos, no Regimento dos Cavaleiros da Guarda da Imperatriz, criado por Catarina II.

Barão Jacob van Heeckeren

Os laços familiares permitiram-lhe a frequência dos salões aristocráticos, onde conheceu o Barão Jacob van Heeckeren van Bewerweerd (1792-1884), embaixador dos Países Baixos na Corte de São Petersburgo, celibatário e sem descendência, com quem iniciou um prolongado e frutuoso comércio bíblico. Georges Dantès era um jovem muito bonito, a quem a natureza prodigalizara especiais dotes físicos, o que suscitou o especial interesse do Barão que, com a anuência dos pais de Dantès e a permissão do rei holandês, instituiu o rapaz como herdeiro universal dos seus bens, com direito à transmissão do título. A partir da data de adopção, Georges Dantès, passou a assinar Georges-Charles de Heeckeren d'Anthès. A ligação entre ambos foi muito bem sucedida, apesar da diferença de idades (o Barão tinha mais vinte anos que o jovem) e era do conhecimento geral. A propósito, o Príncipe Aleksandr Trubetskoy escreveu nas suas notas pessoais: «...d'Anthès was known for his antics, quite inoffensive and appropriate to youths except the one, of which we learnt much later. I don't know what to say: whether he took Heeckeren or Heeckeren took him... All in all, ... in the intercourse with Heeckeren he was ever a passive partner».

Nataliya Goncharova

Talvez esta estreita ligação ao Barão tenha levado Dantès a um excesso de assiduidade junto das damas, (hoje seria considerado assédio sexual) mais do que recomendava a elementar cortesia. Percebe-se a razão: distrair as atenções do seu relacionamento "inapropriado". Uma das senhoras objecto dos seus galanteios era precisamente Nataliya Goncharova, a jovem e bela mulher de Pushkin. Houve boatos de que esta manteria uma relação extra-conjugal com Dantès. O próprio Pushkin recebeu uma carta nesse sentido, avisando-o também da condescendência da sua mulher para com o atraente francês e, mais do que isso, com o próprio Czar Nicolau I, o que justificaria a protecção dispensada ao escritor pelo imperador. Diga-se que, entretanto, Dantès se casara com Ekaterina Goncharova, a irmã de Nataliya. Todo este enredo conduziu Pushkin a desafiar Dantès para um duelo, em defesa da honra. Para evitar um drama familiar, Dantès propôs retirar-se, mas o poeta recusou. Nicolau I ainda tentou evitar o confronto, mas era tarde.

Escritório de Pushkin

O duelo teve lugar às 16 horas de 27 de Janeiro de 1837, num lugar conhecido como Rivière Noire, perto de São Petersburgo. O tiro de Dantès, que ficou ligeiramente ferido, atingiu Pushkin no ventre e foi-lhe fatal.

Secretária de Pushkin

Preso na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, aguardando julgamento, foi, depois de ter protestado a sua inocência, agraciado pelo imperador e conduzido à fronteira (acompanhado pela mulher que nunca duvidou da sua inocência), não mais regressando à Rússia.

Eu, à entrada da Fortaleza de São Pedro e São Paulo

Melhor fora que dois homens tão jovens e atraentes, Pushkin com 38 anos e Dantès com 25 anos, tivessem ido para a cama em vez de se terem batido em duelo.

A obra literária de Pushkin é notável e significa a inovação da literatura russa. Ele inspirou Gogol (1808-1852), Lermontov (1814-1841), Turgeniev (1818-1883), Dostoievsky (1821-1891), Tolstoi (1828-1910), para apenas citar alguns dos nomes cimeiros das letras russas dos dois últimos séculos.

Diversas obras de Pushkin foram passadas à música: Russlan i Liudmila (ópera de Glinka), O Prisioneiro do Cáucaso (ópera de César Cui), As Ciganas (ópera de Rachmaninov), Poltava (ópera de Tchaikovsky, com o título de Mazeppa), A Pequena Casa de Kolomna (ópera de Stravinsky), Tsar Saltan (ópera de Rimsky-Korsakov), Boris Godunov (ópera de Mussorgsky), O Convidado de Pedra (ópera de Dargomyjski), Mozart e Salieri (ópera de Rimsky-Korsakov), Festim em Tempo de Peste (ópera de César Cui), Rusalka (ópera de Dargomyjski), O Cavaleiro Avarento (ópera de Rachmaninov), A Dama de Espadas (ópera de Tchaikovsky), Eugeni Oniegine (ópera de Tchaikovsky).

A casa de Pushkin, no nº 12 do Cais Moïki

Registe-se, como curiosidade, que o bisavô de Pushkin, Abraham Hannibal (1696-1781), era africano, natural do Chade (ou dos Camarões ou mesmo da Etiópia, a origem permanece incerta). Capturado em 1703 (quando tinha sete anos), por mercadores de escravos, e levado para Constantinopla, sendo um rapaz de grande beleza foi comprado secretamente por Pedro o Grande, que se lhe afeiçoou, tendo-se tornado afilhado e secretário do Czar. De grandes aptidões físicas e intelectuais, foi mais tarde general do Exército Imperial Russo.

Abraham Hannibal, em Petrovskoïe

terça-feira, 1 de junho de 2021

A DAMA DE ESPADAS

Recebi esta semana o DVD de Pique Dame, de Pyotr Ilyich Tchaikovsky (1840-1893), gravação do espectáculo realizado no Grosses Festspielhaus, de Salzburg, em 2018. Interpretou a Wiener Philharmoniker, dirigida por Mariss Jansons, distinguindo-se a prestação de Brandon Jovanovich (Hermann), Evgenia Muraveva (Lisa) e Vladislav Sulimsky (Conde Tomsky). A encenação de Hans Neuenfels é verdadeiramente desastrosa. A aparição de Catarina II (em esqueleto) e o quarto da Condessa transformado em quarto de hospital são apenas alguns dos aspectos risíveis.

Aproveitei para rever a gravação de 1992, no Teatro Mariinsky, com a Kirov Orchestra dirigida por Valery Gergiev e a conveniente encenação de Yuri Temirkanov. Nas mesmas personagens, Gegam Grigorian (Hermann), Maria Gulegina (Lisa) e Sergei Leiferkus (Conde Tomsky) têm um notável desempenho.

Deve referir-se também a gravação em disco de 1977, com a Orchestre National de France, dirigida por Mstislav Rostropovich e interpretações de Peter Gougaloff (Hermann), Galina Vishnevskaya (Lisa), Dan Iordâchescu (Conde Tomsky) e Regina Resnik (Condessa).

O conto Пиковая дама, de Aleksandr Pushkin (1799-1837) foi publicado em 1834 e conta a história de um segredo de jogo de cartas (o conhecimento de três cartas especiais - tri kar ty - o três, o sete e o ás) na posse da Condessa Anna Fedotovna (a Vénus Moscovita), que permitiria a vitória ao seu possuidor, mas também acarretaria a desgraça [no fim, em vez do ás surgirá a dama, com a cara da Condessa] . O libretto de A Dama de Espadas, sobre o conto de Pushkin, é da autoria de Modest Ilyich Tchaikovsky (1850-1916), irmão do compositor, que efectuou algumas modificações no texto original, de forma a adaptá-lo às exigências do espectáculo operático.

Estreou-se A Dama de Espadas no Teatro Mariinsky, de São Petersburgo, em 1890.