sábado, 5 de dezembro de 2020

SEPARAR O HOMEM DO ARTISTA

Em entrevista publicada no nº 2925 (19 a 25 de Novembro de 2020) de "L'Obs", a socióloga Gisèle Sapiro, a propósito do seu recém-publicado livro Peut-on dissocier l'oeuvre de l'auteur?, discorre sobre a questão de separar a obra de arte do seu autor. Pode dissociar-se um livro, um filme, um quadro da pessoa do criador, quando este afronta pessoalmente a moral pública e o politicamente correcto hoje insidiosamente dominantes? 

A polémica ganhou uma especial actualidade com os casos mais recentes de Roman Polanski e Gabriel Matzneff, por questões de ordem sexual, mas Gisèle Sapiro recorre a outros exemplos como Céline, Heidegger, Maurras, Michel Houellebecq, Peter Handke, Günter Grass, Maurice Blanchot, Paul de Man, para não recuar até Flaubert e Baudelaire.

Poderia a autora ter lembrado na entrevista o livro de Marcel Proust, Contre Sainte-Beuve, a propósito da distinção entre o homem e a obra, quando aquele escreve: « L'homme qui fait des vers et qui cause dans un salon n'est pas la même personne », mas esqueceu-se ou não conhece.

É evidente que a excitação presente decorre particularmente do movimento #Metoo e da chamada "cancel culture", invenções provenientes dos Estados Unidos, país onde as preocupações pelo acessório se sobrepõem sempre aos cuidados a ter com o essencial, como o nível de pobreza, a iliteracia, a igualdade, a protecção social e outros valores que definem a qualidade de um povo.

Os casos evocados por Gisèle Sapiro são de naturezas diferentes, uns sexuais, outros políticos, nuns é o comportamento do homem que inquina a obra, noutros é a própria obra que desmerece o homem e, nalguns, ainda, a obra e o homem que se confundem. 

Estamos a viver agora um período de puritanismo exacerbado e começamos a sofrer os preconceitos de uma censura "moral" inevitavelmente conducente à instauração de regimes totalitários a coberto da proclamação dos valores da "democracia". Isto é, estamos confinados (duplamente, por causa da pandemia) a participar numa farsa de bons costumes que conduzirá a remeter muito rapidamente para os subterrâneos da História muitos dos homens e das obras que marcaram a Arte dos últimos séculos. 

Os novos movimentos censórios preparam-se com certeza para atacar em breve Gide, Wilde, Sade, Pasolini, Visconti, Gombrowicz, Henry Miller, Essenin, Gauguin, Caravaggio, Lorca, Goethe, Leonardo Da Vinci, Miguel Ângelo e por aí fora... uma lista infindável. E como os políticos se tornaram complacentes, e coniventes, com este atentado à CULTURA, é preciso, é mesmo indispensável, que a chamada sociedade civil erga barreiras contra a progressiva destruição daquilo a que orgulhosamente se chama o património da Civilização Ocidental.  Como se poderá condenar o "obscurantismo islâmico" surgido nos últimos anos (as sociedades muçulmanas nunca tiveram na prática, que não no Livro, durante os séculos passados, preocupações maiores com as condutas "morais") se o próprio Mundo Ocidental se ilumina como farol de todas as castrações?

Não li o livro de Gisèle Sapiro, ainda não me chegou, as considerações acima são minhas e não dela, e foram-me sugeridas apenas pela entrevista, na qual ela mesma se interroga sobre tão pertinente questão.

Voltaremos ao assunto.

4 comentários:

M. G. P. MENDES disse...

Leio todos os seus textos...Riquíssimos de informação sobre as várias vertentes socio-culturais .

E a propósito da entrevista, publicada no Nouvel Obs. (e cuja cópia nos oferece)...e da análise que faz da mesma, - e com a qual concordo completamente, - venho "dar-lhe conta" (se é que ainda não conhece...) do encerramento do restaurante da Tate Gallery...

A pintura The Expedition in Pursuit of Rare Meats, do pintor Rex Whistler, e que decora há 93 anos as paredes do restaurante, foi "condenada" a ser eliminada, por um qualquer comité de ética, que a considerou racista...!?!

Anónimo disse...

Com a Globalização, infelizmente, veio também a Normalização da Intolerância Purificadora, em todas Esferas sejam Islâmicas, Hindus, Confucionistas, Ortodoxas, .....

Curiosamente, graças da Francisco I, a Esfera Católica Apostólica Romana vai tentando um certo arejamento, mas a Cúria está atenta e vigilante .....

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para M.G.P. Mendes:

Obrigado pelo seu comentário.

Já tive conhecimento do caso da pintura da Tate. Absolutamente lamentável.

Li hoje que se pretende mudar o nome da Universidade John Hopkins, porque, apesar de anti-esclavagista, parece que possuiu um escravo!!! Estes delírios resultam da conjunção de mentes alienadas com propósitos bem definidos com vista a alcançar determinados objectivos.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para o Anónimo de 9 de Dezembro:

Este tipo de Globalização vai ser (está já a ser) uma tragédia para a Humanidade. E a "purificação" dos espíritos, com a consequente intolerância, só pode contribuir para a desgraça dos indivíduos.