quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O IRMÃO DE ARTHUR RIMBAUD

Publiquei há alguns dias um post sobre um livro recente que procede à revisitação nos nossos dias dos locais outrora frequentados em Paris por Arthur Rimbaud e Paul Verlaine.

Aconteceu que, entretanto, me chegou às mãos um recentíssimo livro, L'Autre Rimbaud, de David Le Bailly, em que o autor se debruça sobre uma figura (ostensivamente) quase desconhecida, Frédéric Rimbaud (1853-1911), o irmão mais velho de Arthur Rimbaud (1854-1891).

A vasta bibliografia dedicada ao poeta de Une saison en enfer é geralmente omissa ou pouca explícita quanto à existência de um irmão mais velho de Arthur, e que se manteve praticamente afastado da família, salvo no período da adolescência. Frédéric e Arthur, com apenas um ano de diferença, frequentaram o mesmo colégio, tiveram os mesmos companheiros, viveram na mesma casa, partilharam o mesmo quarto e, como acontece frequentemente nestas idades, é mesmo possível que tenham dormido juntos, o que não seria de estranhar dada a subsequente inclinação homossexual de Arthur. 

De Arthur Rimbaud sabemos tudo, ou pelo menos tudo o que ele não impediu que se soubesse. Porém,  a biografia de Frédéric é quase inexistente, pois ele era o mal-amado da família, o falhado, o inútil, o "raté", como os franceses o costumam qualificar. É pois sobre Frédéric Rimbaud que incide o livro de David Le Bailly, um texto de agradável leitura, onde a investigação minuciosa que o autor se propôs efectuar é envolvida numa atmosfera de ficção, já que não seria possível reconstituir a vida de uma figura de quem tão pouco se conhece. 

Sabemos, e Le Bailly enfatiza-o, que a mãe Rimbaud (Vitalie Cuif) era uma mulher difícil, puritana, intriguista, avarenta, autoritária, invejosa, que tornou a vida dos filhos, especialmente a de Frédéric num inferno. Mas os irmãos mantinham uma relação fraterna, ainda que no colégio Arthur se distinguisse desde logo do irmão, obtendo as melhores classificações e ganhando todos os prémios. Das duas irmãs mais novas apenas Isabelle interessa, já que Vitalie (filha) morreu muito cedo, com apenas 17 anos. O pai, também Frédéric Rimbaud, capitão de infantaria, incapaz de aturar a mulher, abandonou o lar conjugal logo após o nascimento de Isabelle, para não mais regressar.

Arthur Rimbaud, como todos sabem, encontrou-se com Paul Verlaine em Paris (1871), ainda não tinha completado os 17 anos e manteve com ele uma relação sexual apaixonada e tumultuosa, que os levou a Londres e a Bruxelas, onde Verlaine, dez anos mais velho, acabou por disparar sobre o jovem, ainda que sem consequências maiores. A sua relação provocou escândalo público e Verlaine (que já se separara da mulher e abandonara o filho recém-nascido) acabou por ser preso, encontrando-se com Arthur, pela última vez, em Stuttgart, em 1875. Arthur, poeta genial, escreveu neste período a sua breve mas imortal obra. Poesia tão genial quanto insuportável e verdadeiramente infrequentável era a sua pessoa, cuja vida de embriaguês, luxúria, desacatos e até proxenetismo os seus contemporâneos testemunham. Em 1876 abandonou a França, viajou e acabou por se instalar em Aden e Harar (na Etiópia) onde se dedicou ao tráfico de café, de armas, de marfim e até mesmo (há quem o afirme) de escravos, amealhando algum dinheiro, a única coisa que passou então a interessar-lhe. Doente, regressou a França em 1891, sendo-lhe amputada uma perna num hospital de Marselha. Morreu pouco depois. Não mais escreveria uma linha de poesia, o que não deixa de constituir um mistério sobre a sua estranha personalidade.

Frédéric Rimbaud (de pé) e Arthur Rimbaud (sentado) no dia da primeira comunhão, em 1866

Mas regressemos a Frédéric, que é o objecto do livro, ainda que a sua vida não se possa dissociar da de Arthur.

Injustamente considerado o inútil da família, Frédéric não teve a profissão a que a sua mãe para ele aspirava. Os Cuif possuíam propriedades e viviam com alguma abastança. Mas o rapaz, para lá de uma passagem pela vida militar (em homenagem ao pai) em serviço na Argélia, foi criado, cocheiro, camionista e viveu toda a vida em Charleville (a terra natal) ou arredores. Casou, contra a expressa vontade da mãe, com uma rapariga de um meio ainda "inferior" ao seu, Blanche Justin, que lhe deu quatro filhos e de quem acabaria por se separar. A irmã Isabelle, que casaria mais tarde com um jornalista e escultor de pouca envergadura, Pierre-Eugène Dufour (de pseudónimo Paterne Berrichon), herdou a maior parte dos bens da mãe, que detestava Frédéric (e também Arthur, mas de quem passou a gostar para o fim da vida, procurando apagar todas as manifestações de libertinagem, poesia e anti-religiosidade do filho). Isabelle conseguiu também obter de Frédéric uma renúncia aos direitos autorais de Arthur, inicialmente insignificantes mas que a pouco e pouco se tornaram imensos, à medida que a sua obra poética era progressivamente conhecida. Deve-se também a Isabelle, igualmente puritana e avarenta como a mãe, a ideia de que Arthur, confessadamente ateu e progressista (chegou a estar na Comuna de Paris, para horror da família) se teria convertido ao catolicismo antes de morrer, já que foi ela que permaneceu à sua cabeceira nos últimos dias que ele viveu no hospital.

Explica David Le Bally que se interessou por Frédéric Rimbaud porque a sua vida tem algumas semelhanças com a deste, e também porque ele é sistematicamente ignorado, ou quase, nas obras dedicadas ao irmão. Mesmo a Wikipédia não lhe consagra qualquer página, mas apenas ao seu pai e homónimo, o capitão Frédéric Rimbaud. Para escrever o livro, Le Bailly procedeu a uma investigação minuciosa nos prováveis ou improváveis arquivos e junto de pessoas que ainda poderiam ter alguma recordação do falecido e pacífico cidadão de Charleville. Salvo em alguns casos, não conseguimos descortinar na obra o que é realidade ou ficção.

O livro começa pela descrição da inauguração, em 21 de Julho de 1901, de um busto de Arthur, em Charleville, com a presença das autoridades e já de alguns intelectuais que se haviam apercebido da importância do poeta. E prossegue, ao longo de mais de 300 páginas, mantendo sempre vivo o interesse do leitor.

Quem estiver interessado no desvendar da vida desta figura quase desconhecida encontrará no livro a satisfação da sua curiosidade.

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