quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

RELEMBRANDO AS "PRIMAVERAS ÁRABES"

Por razões que não vêm ao caso, reli A Síria em Pedaços (2015), de Bernardo Pires de Lima. O volume reúne os artigos de opinião publicados pelo autor na sua coluna no "Diário de Notícias", entre Janeiro de 2011 e Janeiro de 2015, sobre a situação no Médio Oriente em geral e na Síria em particular, após a eclosão das chamadas "primaveras árabes". Inclui um oportuno glossário com a indicação das organizações citadas no texto, das siglas (das organizações que são designadas por estas) e das principais dramatis personae.

Os textos (breves) a que o autor chama "fotogramas de guerra", não mencionam os dias da respectiva publicação no jornal, impossibilitando o leitor de saber se são agora apresentados cronologicamente, embora tal se possa presumir, encontrando-se o livro dividido em três partes: 1) Circo de Feras (Janeiro de 2011 a Maio de 2012); 2) Linhas Vermelhas (Junho de 2012 a Agosto de 2013); 3) O Nosso Amigo Assad (Setembro de 2013 a Janeiro de 2015).

Procurou Bernardo Pires de Lima fazer como que um diário da evolução dos acontecimentos desencadeados na Tunísia pela imolação de Mohamed Bouazizi, em 17 de Dezembro de 2010, e que levou à queda do regime do presidente Ben Ali, até ao controle pelo Estado Islâmico de grande parte do território situado entre os rios Tigre e Eufrates. Com as diversas insurreições (ou tentativas) nos países árabes, o bombardeamento da Líbia, o assassinato de Qaddafi e a revolução no Egipto, que conduziria à demissão do presidente Hosni Mubarak. Uma página negra da história universal, que, na sequência da invasão do Iraque, provocou milhões de mortos, feridos, desalojados, migrantes, e em que o chamado "mundo ocidental" foi criminosamente cúmplice.

Não pretendeu Pires de Lima emitir um juízo moral sobre tudo o que ocorreu, e ocorre ainda, no Mundo Árabe, limitando-se a descrever os factos, a relação das forças em presença, e a sua previsão do evoluir dos acontecimentos. Sem prejuízo do cuidado do autor em nos fornecer informação tão detalhada quanto as circunstâncias lho permitiram, acontece que as suas análises se verificaram erradas na maior parte dos casos. A sua convicção, reiterada ao longo desses quatro anos, de que Assad teria de ser necessariamente derrubado do poder é a prova evidente de que mesmo os bons analistas desconhecem muitas vezes certas realidades que se impõem para lá da espuma das negociações diplomáticas, da força das armas e das alianças conjunturais. Assad continua presidente da Síria, está bem e recomenda-se, e continuará ainda por mais tempo se nenhum acontecimento imprevisível entretanto se verificar.

Mas o livro de Bernardo Pires de Lima tem o mérito de nos recordar o vai-vem das posições dos países árabes e dos países ocidentais, estes mais interessados nos recursos daqueles do que na proclamada necessidade deles acederem à "democracia", uma ideia cada vez mais vaga em territórios de tradições ancestrais, que não se compaginam verdadeiramente com a noção corrente no Ocidente. Além de que a intromissão "ocidental" no Mundo Árabe mais não fez do que despoletar ou incentivar movimentos islamistas radicais, com as consequências que hoje todos conhecemos.

Se passarmos em revista o estado em que se encontra o Médio Oriente desde a invasão anglo-americana de 2011, protagonizada por George W. Bush e Tony Blair, até ao momento actual, encontramos um Marrocos e uma Argélia (felizmente poupados a males maiores) periclitantes, uma Tunísia largamente dominada pelo organização islamista Ennahda com governos fracos, uma economia em crise e um turismo destruído, uma Líbia completamente destroçada, com dois governos e numerosas facções tribais, um Egipto que, depois da experiência "democrática" falhada de Mohamed Morsi, tem hoje um governo mais "duro" do que o de Mubarak, um Iraque a recompor-se muito lentamente da invasão de que foi vítima, parcialmente esfacelado pelos "Aliados" e pelo Estado Islâmico, uma Síria em pedaços (para citar o título do livro de Pires de Lima), com uma parte da população morta e a restante fortemente debilitada, um Líbano, alvo de sucessivas catástrofes, um Iémen dividido por uma guerra civil, uma Jordânia tentando equilibrar-se entre os os terramotos vizinhos. Sem esquecer o drama da Palestina. Subsistem, na sua majestade petrolífera, a Arábia Saudita e as monarquias do Golfo. A Turquia, sob a batuta demencial de Erdogan, continua a sacrificar a economia e a vida civil aos sonhos presidenciais do restabelecimento do Império Otomano e do Califado e o Irão prossegue, no meio das sanções ocidentais e da tentativa de progressos nucleares, uma política de afirmação no xadrez local, em disputa com sauditas, egípcios e turcos. Israel, esse sempre apoiado pelos Estados Unidos, vai-se aproveitando deste cataclismo para alargar o seu território. E o Curdistão continua a não existir, apesar das promessas dos vencedores da Primeira Guerra Mundial.

Para a situação que hoje se verifica no Médio Oriente concorreram por ignorância, estupidez, cupidez ou má-fé muitos dos líderes ocidentais, com especial destaque para Barack Obama, David Cameron, Nicolas Sarkozy e François Hollande (um desgraçado que pretendia a todo o custo bombardear a Síria).  Nunca será demais recordar que as decisões destes homens, a que se devem juntar George W. Bush, Tony Blair e uma parte significativa da administração norte-americana, e que são responsáveis pelos crimes de guerra ocorridos naquela zona, provocaram milhões de mortos, feridos, estropiados, famílias desfeitas, migrações de povos que perduram até aos nossos dias.

Concluindo, diria que os textos de Bernardo Pires de Lima estão factualmente bem documentados mas que as suas análises decorrem de uma perspectiva demasiado ocidental e são assentes em raciocínios baseados num quadro lógico, que é o do autor mas que não corresponde às circunvoluções médio-orientais, ou russas e chinesas. Contudo, o livro não deixa de ser um instrumento interessante para nos recordar, dia após dia, o que aconteceu durante os quatro primeiros anos das "primaveras árabes".

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