sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

ANDRÉ VENTURA E A CONSTITUIÇÃO

Tem provocado por estes dias grande clamor nos media e nas redes sociais a intenção de André Ventura de promover a revisão da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como o teor de várias propostas apresentadas pelo líder do Chega, agora candidato a presidente da República.

Analisemos ambas as situações, já que constituem matéria distinta.

Comecemos, todavia, por uma outra questão: a pretensão de ilegalização do Chega. Esta ideia já foi manifestada por duas das actuais candidatas presidenciais, Ana Gomes e Marisa Matias, e até por Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Também esta semana Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do Partido Socialista, não recusou essa hipótese, no programa "Circulatura do Quadrado". Baseia-se esta pretensão no facto de considerarem que o Chega é um partido de extrema-direita, fascista, racista, xenófobo, anti-imigração, que viola os princípios fundamentais da nossa democracia. Acontece que o Chega foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional (TC), no cumprimento de formas e conteúdos, e que só a ele cabe, segundo o artigo 223º- e) da CRP «verificar a legalidade da constituição de partidos políticos», embora possa, de acordo com a mesma disposição, «ordenar a respectiva extinção, nos termos da Constituição e da lei». Não tendo o Tribunal Constitucional, até à data, tomado qualquer iniciativa sobre a matéria, o Chega existe como partido político na plenitude dos seus direitos. Argumenta-se que o Chega defenderá hoje ideias que não constavam do seu programa entregue ao TC; como desconheço que documentos foram entregues àquele tribunal e também não conheço o actual programa do Chega (parece que tem sofrido muitas alterações) não me permito emitir opinião sobre a matéria.

É evidente que algumas das propostas que o Chega pretenderia ver consagradas na lei fundamental, e que a comunicação social tem divulgado, devem merecer repúdio imediato, tais como o estabelecimento da pena de morte, a ablação dos ovários a mulheres, em certas circunstâncias (esta não passou de um episódio), a castração química de pedófilos. Tudo o que constitui mutilação física da pessoa humana justifica um liminar repúdio. A redução dos serviços públicos de saúde e de educação e da segurança social, num país com as limitações que se conhecem, seria também simplesmente trágico. Já a diminuição do número de deputados da Assembleia da República é matéria susceptível de discussão.

Não subsistem, porém, dúvidas de que o combate às ideias do Chega deve ser feito no campo político e não por processo administrativo. Afinal, as constantes invectivas contra ele acabam tão só por favorecê-lo, conferindo-lhe uma maior visibilidade.

Mas o que me leva a escrever estas linhas é especialmente a argumentação contra o facto de  Ventura pretender rever a Constituição, reputando essa atitude de anti-democrática. Ora todas as Constituições podem ser revistas e as propostas mais contundentes do Chega nunca alcançariam a maioria de «dois terços dos deputados em efectividade de funções» (artigo 286º-1), exigida pela actual CRP, respeitando os limites fixados no artigo 288º.

Mas até os limites materiais de revisão podem, em algumas circunstâncias, ser alterados. Recordo que a CRP de 1976, no seu texto original, estabelecia como limites materiais de revisão, no seu artigo 290º-f), «O princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e dos latifúndios», implicando isto naturalmente a irreversibilidade das nacionalizações de 1975. Ora esta disposição, hoje inexistente no texto fundamental, desapareceu, por conjugação de vontades do PSD e do PS, na altura em que era secretário-geral deste último partido, se a memória não me falha, Vítor Constâncio. Assim, encontrou-se uma forma habilidosa de contornar juridicamente o impedimento da revisão material e depois procedeu-se à revisão do que interessava. 

Os nossos políticos actuais têm a memória fraca, ou fazem por tê-la, e também não se dão muito ao cuidado de respeitar o Direito.

Não sou jurista e limito-me a relembrar factos e disposições legais. O assunto merecia ser desenvolvido por especialistas na matéria.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom. Pena que tantos políticos, gerados nos aviários partidários, não saibam ler, nem tenham vergonha.