sexta-feira, 28 de junho de 2019

RODHES III - O MUSEU ARQUEOLÓGICO


O Museu Arqueológico de Rhodes está instalado, desde 1916, no edifício que serviu de hospital à Ordem dos Cavaleiros e que é um dos mais belos e mais bem conservados da época.


A concepção arquitectural deve muito aos caravanserais de Oriente e aos mosteiros bizantinos: uma galeria coberta de dois andares à volta de um pátio rectangular. Todavia, a grande sala dos doentes, toda em comprimento, é típica das salas de hospitais da Europa ocidental.


Duas inscrições gravadas em mármore esclarecem-nos quanto ao uso que era feito do edifício: o ano da fundação e os seus construtores. Na face exterior da abside da capela do Hospital, sobre a porta principal de entrada, dois anjos de mármore suportam o brasão do Grão-Mestre Antonius Fluvian. Uma inscrição menciona que este doou 10.000 florins de ouro para a sua construção e que esta se iniciou em 15 de Julho de 1440. A outra inscrição, sobre uma porta dando para a Rua Dos Cavaleiros, refere, em francês, que Pierre Clouet, dignitário da Ordem, levou a seu termo a construção do Hospital em 1489.

Cabeça do deus Helios

Como foi referido em post anterior, o bailio da "língua" de França era obrigatoriamente investido na dignidade de Grande Hospitalário.


No fundo do pátio pode ver-se um leão da época helenística.


No decorrer da visita encontram-se, entre salas de vária utilização, a cozinha, o refeitório e pequenas "celas" cuja exacta função se desconhece.


Anexo ao Museu existe um jardim e estão expostos pavimentos de mosaicos provenientes da basílica paleocristã de Aghia Anastasia de Arkassa de Karpathos.


Lamentavelmente não está disponível um catálogo do Museu nem são permitidas fotografias.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

RHODES II - IGREJA DE SÃO JOÃO BAPTISTA




A Igreja de São João Baptista (de Collachio - a zona do Castelo) de que hoje só restam ruínas, era a igreja dos Cavaleiros de Rhodes, situada ao lado do Palácio dos Grão-Mestres. Edifício gótico com três naves separadas por duas filas de colunas, coberta por um telhado de madeira, foi transformada em mesquita depois da ocupação otomana.


O edifício foi completamente destruído pela grande explosão ocorrida em 1856, devido, ao que se supõe, à existência de pólvora que se encontrava escondida no seu interior.

As ruínas vistas da janela do meu quarto do hotel

As pesquisas arqueológicas iniciaram-se em 1989, utilizando-se os arquivos dos Cavaleiros e as descrições e ilustrações de historiadores e viajantes.

Idem

Foi identificado nas ruínas o túmulo do Grão-Mestre Fabricius del Carretto.


segunda-feira, 24 de junho de 2019

RHODES I - O PALÁCIO DOS GRÃO-MESTRES



Não cabe aqui fazer a história da Ordem dos Cavaleiros de Rhodes, que começou por ser a Ordem de São João de Jerusalém e acabou com o nome de Ordem Soberana e Militar de Malta ou, de seu nome completo, Ordem de São João de Jerusalém, de Rhodes e de Malta.


No cumprimento de uma missão filantrópica, alguns mercadores de Amalfi obtiveram do Califa, em meados do século XI, autorização para construir, ao lado da igreja da Ressurreição, em Jerusalém, a igreja de Santa  Maria Latina e uma pousada para albergar e cuidar dos fiéis que se deslocavam em peregrinação à Terra Santa. A pousada-hospital era mantida por monges beneditinos e terá havido uma invocação a São João Esmoler antes da obra ter sido dedicada definitivamente a são João Baptista.


No começo do século XII, Pierre Gérard, ou Gérard de Tenque, pessoa de quem pouco ou nada se sabe, fez a sua aparição em Jerusalém. Todos os dados a seu respeito convergem no sentido de ter sido ele o fundador da Ordem do Cavaleiros, de que  a pousada dos mercadores de Amalfi foi precursora. Nesta altura, os Cavaleiros eram apenas hospitalários e não possuíam ainda um estatuto ou organização militar.


Em 1113, o papa Pascoal II constitui-a como ordem eclesiástica e dotou-a de estatutos, dedicando-a a São João Baptista e conferindo-lhe regra própria. Em 1120, o francês Raymond du Puy foi eleito grão-mestre da Ordem e em 1136 o papa Inocêncio II acrescentou-lhe a missão militar e o encargo de defender o Santo Sepulcro. Os Cavaleiros de São João, juntamente com os Templários, tornam-se, a partir do século XII, os representantes mais importantes da ideologia das Cruzadas, combatendo o adversário muçulmano no próprio coração do Oriente. Estabelecem assim importantes pontos de apoio na Palestina e na Síria, Mas com o ressurgimento da potência árabe perdem sucessivamente os centros urbanos bem como as fortalezas em seu poder. A perda definitiva de Jerusalém (Saladino já havia conquistado a cidade em 1187) e de Askalon em 1247, seguida da tomada do famoso Krak des Chevaliers (Qala'at al Husn, na Síria actual e que já visitei), em 1271 é fatal para os Cavaleiros. A fortaleza de são João d'Acre, na Palestina, última cidadela a permanecer em poder dos francos, cairá nas mãos dos árabes em 1291. Encontrando-se dizimados, e gravemente ferido o seu grão-mestre Jean de Villiers, os Cavaleiros retiram-se para a ilha de Chipre, onde já não se sentem mestres mas vassalos do rei franco da ilha, que não lhes permite agir em completa liberdade.


Em 1306, surge a oportunidade de encontrarem uma nova sede. O grão-mestre, Foulques de Villaret estabelece negociações com o genovês Vignolo de' Vignoli, que detinha feudos no Dodecaneso. O acordo previa que após a conquista de Rhodes os Cavaleiros ficassem com dois terços da ilha, revertendo o restante para o genovês. Com o auxílio dos reis de França e de Inglaterra e do papa, e apesar da enérgica resistência dos seus habitantes, os Cavaleiros acabam por conquistar a ilha em 1309, passando a designar-se Cavaleiros de Rhodes. Os primeiros tempos foram difíceis para a Ordem, pela dificuldade de adaptação à população grega local e pelos ataques dos turcos que viam com apreensão a instalação dos monges guerreiros na sua vizinhança imediata. Houve também problemas de natureza interna que não é possível aqui descrever, mas a situação permaneceu relativamente estável até ao primeiro grande cerco dos turcos (23 de Maio a 17 de Agosto de 1480), conduzido pelo grão-vizir Mechih Pasha, sendo sultão Mehmet II. Após porfiados esforços, os Cavaleiros conseguiram desbaratar as forças invasoras. Decorridas umas décadas, entre incidentes militares e contactos diplomáticos, os turcos, sendo agora sultão Solimão, o Magnífico, atacaram novamente a ilha, estabelecendo o segundo grande cerco (26 de Junho de 1522 a 2 de Janeiro de 1523), sob o comando de Mustafa Pasha, segundo vizir e genro do sultão. O próprio Solimão acabou por participar no cerco. Tendo-se tornado insustentável a situação local, mediante certas concessões otomanas uma delegação de latinos e gregos acabou por aceitar as condições da proposta turca de paz. Em 1 de Janeiro de 1523, os Cavaleiros, juntamente com o metropolita grego Clemente e cerca de 5.000 habitantes da ilha abandonaram Rhodes em direcção a Creta.


Após uma errância de alguns anos e muitas hesitações quanto ao local onde estabelecer a sua nova sede, os Cavaleiros acabaram por solicitar a Carlos Quinto a ilha de Malta, que finalmente lha concedeu em 1530. A Ordem passou a designar-se Ordem de Malta, nome que ainda mantém, apesar de a ilha ter sido conquistada por Napoleão Bonaparte em 1797. Derrotados pelos franceses e dispersos, nomeadamente por Itália, os Cavaleiros, na ânsia de reencontrar a glória perdida, chegaram a proclamar grão-mestre o tsar Paulo I da Rússia. Em 1830, a Ordem estabeleceu-se definitivamente em Roma, constituindo uma pessoa jurídica de direito internacional, com a prerrogativa de nomear e acreditar embaixadores.

Capela do Palácio

Como curiosidade, note-se que houve quatro portugueses que foram grão-mestres da ordem de Malta: D. Afonso (1203-1206), Luís Mendes de Vasconcelos (1622-1623), António Manoel de Vilhena (1722-1736) e Manuel Pinto da Fonseca (1741-1773), o primeiro que usou o título de Sua Alteza Eminentíssima.


A organização dos Cavaleiros de São João assentava numa hierarquia rígida, que não sofria violações. A Ordem era dividida em três classes: os irmãos cavaleiros, os irmãos capelães e os irmãos sargentos-de-armas. Esta separação correspondia à subdivisão da sociedade europeia medieval: nobreza, clero e povo. Sendo uma ordem internacional, era composta por membros de toda a Europa latina. A noção actual de nacionalidade era expressa pelo termo "língua". Quando a Ordem de São João se instalou em Rhodes era composta por sete "línguas", classificadas hierarquicamente segundo a sua antiguidade: Provença, Auvergne, França, Itália, Aragão (toda a Península Ibérica), Inglaterra e Alemanha. O governador de cada uma das facções territoriais tinha o título de bailio e exercia também funções na administração central. O bailio de Provença era o grão-comendador; o bailio de Auvergne, o marechal; o bailio de França o hospitalário; o bailio de Itália, o almirante; o bailio de Aragão, o grão-conservador; o bailio de Inglaterra, o grão-turcópolo; o bailio da Alemanha, o grão-bailio ou tesoureiro. Em 1461, o Capítulo Geral decidiu dividir a língua de Aragão em Aragão e Castela, incluindo a primeira a Catalunha e Navarra e a segunda Portugal, Castela e Leão. O bailio de Castela passou a exercer as funções de grão-chanceler. Os órgãos colectivos eram o Capítulo Geral e o Capítulo.


Ao longo dos tempos houve alterações nos cargos que não cabe aqui explicar.


Os Cavaleiros habitavam em pousadas que se situam na Rua dos Cavaleiros (Ippoton), que liga o Palácio dos Grãos-Mestres ao hoje chamado Largo do Museu, por nele estar instalado o Museu Arqueológico, no edifício que foi outrora o Hospital da Ordem. Descendo a Ippoton, encontravam-se do lado esquerdo a pousada de Provença, a capela da Aghia Triada (Santíssima Trindade) e as pousadas de França e de Itália. Do lado direito, a pousada de Espanha e o Hospital. Do outro lado do Largo, encontravam-se as pousadas de Auvergne e de Inglaterra.

Sala do Troféu

Em frente ao Palácio dos Grão-Mestres pode ver-se as ruínas da Igreja de São João de Collachium (Castelo), inicialmente igreja da Ordem, depois transformada em mesquita após a invasão otomana, e destruída em 1856 por uma inopinada explosão de pólvora (que se encontrava depositada no local) que também provocou sérios danos no Palácio, mais tarde restaurado pelos italianos.

Sala das Colunas

As informações relativas aos primeiros tempos da Ordem não são perfeitamente coincidentes, dependendo das fontes consultadas, mesmo as consideradas mais autorizadas. Há mesmo aspectos que permanecem envoltos em lenda. Por exemplo, o famoso Colosso de Rhodes, uma estátua humana gigantesca, servindo de farol, considerada uma das sete maravilhas do mundo, que estaria colocada à entrada do porto de Mandraki, com uma perna assente em cada um dos lados do porto (os navios passavam por baixo) seria de facto uma estátua do deus Hélio e existiria no local onde depois foi construído o palácio dos Grão-Mestres.


Não permite o espaço desenvolver mais pormenorizadamente a permanência em Rhodes dos Cavaleiros de São João. Para os interessados existe vasta bibliografia disponível.


Sala do Laocoonte








Segunda Sala dos Cadeirais


sábado, 15 de junho de 2019

O NAUFRÁGIO DAS CIVILIZAÇÕES



O escritor e jornalista franco-libanês Amin Maalouf (n. 1949), autor de livros bem conhecidos, como Leão, o Africano, Samarcanda, As Cruzadas vistas pelos Árabes, O Rochedo de Tanios (Prémio Goncourt 1993) ou As Identidades Assassinas, acabou de publicar um notável ensaio, talvez uma das suas melhores obras, Le naufrage des civilisations.

Neste livro, uma espécie de autobiografia, Maalouf traça o seu percurso pessoal e a evolução do mundo à sua volta, do mundo árabo-muçulmano em especial e do mundo em geral, desde o seu nascimento em Beirute, a infância no Cairo, o retorno ao Líbano, a instalação em França, e as suas viagens pelos inúmeros países que visitou.

Maalouf refere o apagamento da civilização islâmica, depois de séculos de esplendor e a esperança suscitada por Nasser, apesar da chegada dos "Oficiais Livres" ao poder no Egipto, pelas suas consequências, ter sido prejudicial aos interesses da família Maalouf. E salienta a Guerra dos Seis Dias (1967), como o grande trauma de que o mundo árabe ainda não conseguiu recuperar. É claro que refere a criação do Estado de Israel (1948), e a divisão do Médio Oriente (Acordos Sykes/Picot, que não menciona) contrária às promessas feitas pelos britânicos ao xerife de Meca e veiculadas pelo coronel Lawrence como causa do desespero árabe, mas remete para 5 de Junho de 1967 a grande frustração que permanece. Acompanhando sempre estes acontecimentos com as suas reflexões pessoais, lembra que outros povos ultrapassaram derrotas como os Estados Unidos com Pearl Harbor (este tema não é pacífico, mas Maalouf não o desenvolve) e a França com a invasão alemã, mas as circunstâncias são diferentes. Recorda a invasão do Líbano por Israel e depois pela Síria, a vida tranquila que se vivia anteriormente no Líbano, na convivência pacífica entre diferentes religiões e etnias, a instalação da OLP no país e a sua fuga final de Beirute em 1976, que determinou a fixação da sua residência em França.

Há, porém, alguns acontecimentos, que apenas a distância do tempo lhe permitiu avaliar na sua importância decisiva, que contribuíram para que o mundo evoluísse para a situação presente. Maalouf situa esses acontecimentos em 1979, com a designação de Margaret Thatcher para chefiar o governo britânico e iniciar uma revolução conservadora, seguida da eleição de Ronald Reagan, em 1980, perfilhando idênticas ideias. Ainda em 1979, a proclamação da República Islâmica do Irão pelo ayatollah Khomeiny, antecipada em 1978 com a eleição de Deng Xiaoping para chefe do Comité Central do Partido Comunista Chinês e a do cardeal Karol Wojtyla para papa, com o nome de João Paulo II, são acontecimentos que coincidem no tempo. Mas sendo tão díspares poderiam ter sido mais do que simples coincidência? Maalouf entende que eles permitiram alterar o Zeitgeist, na conhecida expressão da filosofia alemã, isto é, alterar o espírito do tempo. A juntar a tudo isto, o assassinato do chefe da Democracia Cristã italiana, Aldo Moro, em 1978, que impediu uma possível aliança do PCI e da DC, e, antes de tudo, o choque petrolífero de 1973, a Revolução portuguesa de 1974, a invasão do Afeganistão pelos soviéticos em 1979, que viria a determinar a própria desintegração da União, e muitos outros acontecimentos que não é possível aqui referir. Da conjunção de todos eles, Maalouf extrai as suas conclusões e permite articulações como a vitória de uma economia liberal sobre os preceitos do "socialismo científico". Ainda uma referência à execução do antigo presidente paquistanês Zulficar Ali Bhutto, em 1979, e, no mesmo ano, o assalto contra a Grande Mesquita de Meca, que levaria os dirigentes sauditas a intensificar, pelo mundo, a sua propaganda de um islão rigoroso, ou não sejam eles os Guardiões dos Lugares Santos e cuja ortodoxia estava a ser posta em causa pelos islamistas ainda mais radicais.

A queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da União Soviética, em 1991, seriam o coroar desta série de acontecimentos que modificaram por completo o panorama geral mundial. Subsiste, nesta revolução que liberta a economia e restringe os costumes, paradoxalmente ou talvez não, a União Europeia, com todos os problemas que se conhecem e que se vêm agravando ano após ano. Como escreveu recentemente Régis Debray, Jean Monnet, com uma ingenuidade de economista, não previu que uma união aduaneira não poderia criar a longo termo uma comunhão de corações e de espíritos e que para fazer um povo não bastava uma moeda única.

Nesta minuciosa análise dos acontecimentos, não deixa o autor de evidenciar as frustrações islâmicas, canalizadas primeiro contra os soviéticos no Afeganistão, com a participação de um então desconhecido tornado posteriormente célebre, Osama Ben Laden, e que viriam depois a causar estragos imensos não só nos países árabes (a Líbia, a Síria, o Iémen), como no mundo ocidental (o ataque às torres gémeas de Nova Iorque, os atentados em Madrid, Londres ou Paris). Em quase todos os eventos descritos, aparece os Estados Unidos, com as mais incríveis e reversíveis alianças, figurando-se que o único perigo residia no comunismo. Mas, caída a União Soviética, ignoraram que a sua anterior atitude de hostilidade deveria pautar-se agora por moderação (segundo a opinião do diplomata George F. Kennan) e não por integrar na NATO não só os países da antiga órbita soviética mas os próprios países da antiga União. Um erro estratégico norte-americano.

Por entre considerações morais e políticas, Amin Maalouf constata que se o progresso das últimas décadas permitiu a diminuição do número de pobres no mundo (e mesmo assim isto é discutível), ele aumentou inequivocamente e de forma gritante as desigualdades sociais.

Uma referencia é feita, e com ênfase, ao desmembramento da Índia, cujas consequências perduram. O erro clamoroso da divisão do país em dois Estados, a União Indiana e o Paquistão, e depois três, com o Bangladesh, a deslocação de populações inteiras, o acirrar de rivalidades entre muçulmanos e hindus e entre as próprias comunidades (e nem é referido o caso de Caxemira), demonstra a cegueira britânica que sempre orientou o Império colonial de Sua Majestade. Ao longo do livro, são evocadas algumas atitudes de um homem hoje muito incensado, Winston Churchill, responsável não só por Dresden, mas por atitudes criminosas em relação ao Egipto e ao Irão (o episódio Mossadegh). E a seu respeito muito mais haveria a dizer.

Perdoarão os leitores este comentário um pouco desordenado do livro, mas o autor é também responsável pela forma como vai expondo os acontecimentos, articulando-os com a sua "aventura" pessoal.

Já no fim, Maalouf convoca Orwell e evoca a vigilância a que todos estamos sujeitos no mundo em que hoje vivemos, vigilância das comunicações escritas e telefónicas, das transacções bancárias, dos sítios que visitamos, das compras que fazemos, das nossas próprias imagens registadas em câmaras um pouco por toda a parte. Além, evidentemente, dos drones. A tecnologia actual tal permite e certamente virá a permitir ainda muito mais. E há sempre um bom pretexto para um constante aumento dessa vigilância, fundamentada em razões que poucos se dispõem a contestar. A intromissão na vida íntima dos nossos contemporâneos, que pode conduzir - e conduz - a intoleráveis abusos, tornou-se uma das características mais visíveis das civilizações actuais. A ficção do Big Brother orwelliano de 1984 foi rapidamente ultrapassada pela própria realidade. Mas tudo nos é vendido em nome de superiores interesses comuns. Quem aceitaria, alguns anos atrás, ser revistado e quase despido para embarcar num aeroporto? Mas hoje, com um preocupante amolecimento do espírito, vamos cedendo às determinações das autoridades protectoras, e, em caso de manifesto exagero, até conseguimos encontrar-lhes desculpas. Escreve Maalouf: «"Le choix, pour l'humanité, est entre la liberté et le bonheur, et pour la grande majorité, le bonheur est le meilleur", faisait dire Orwell, avec cynisme, à l'un des personnages de 1984. Personne ne nous présentera les choses de manière aussi crue; mais, dans le contexte de ce siècle, un tel dilemme ne paraît plus complètement insensé.» (p. 313)

E a concluir: «Plus d'une fois, je me suis même arrêté, entre deux chapitres, pour m'assurer que je n'était pas victime d'une "illusion d'optique", que c'était vraiment le monde qui faisait naufrage, pas seulement mon monde à moi - l'Égypte de ma mère, le Liban de mon père, ma civilisation arabe, ma patrie adoptive, l'Europe, ainsi que mes vaillants idéaux universalistes. Mais à chaque fois je me suis remis à l'ouvrage, persuadé de n'être malheureusement pas dans l'erreur.» (p. 327)

«Je me dois d'ajouter, concernant ma civilisation d'origine, que si sa disparition est forcément une tragédie pour ceux qui ont grandi en son sein, elle l'est à peine moins pour le reste du monde. Je demeure convaincu, en effet, que si le Levant pluriel avait pu survivre et prospérer et s'épanouir, l'humanité dans son ensemble, toutes civilisations confondues, aurait su éviter la dérive que nous observons de nos jours. C'est à partir de ma terre natale que les ténèbres ont commencé à se répandre sur le monde.» (p. 328)

É claro que o que se escreveu não passa de uma pálida imagem da riqueza do livro.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

A TRAGÉDIA DO EURO

Transcreve-se pela sua relevância:


La tragédie de l'euro
 
En 2016, le Nobel d’économie Joseph Stiglitz publiait L’Euro, comment la monnaie unique menace l’Europe (Les Liens qui libèrent). Deux ans plus tard, il commentait en ces termes l’arrivée au pouvoir d’un gouvernement eurosceptique en Italie: «Ce n’est pas étonnant. Car c’est la répétition attendue du début d’un scénario déjà vu. Dans la longue histoire d’une monnaie commune mal conçue, la puissance dominante, l’Allemagne, bloque les réformes nécessaires et appelle à des mesures qui ne font qu’exacerber les problèmes.»

Pour illustrer la croissance étique que connaît l’Europe depuis l’introduction de l’euro en 1999, il observait qu’en 2000 la taille de l’économie américaine ne dépassait que de 13% celle de la zone euro; elle la dépassait de 26% en 2016. «Si un pays a de mauvais résultats économiques, c’est de sa faute; mais s’il n’est pas seul dans son cas, la responsabilité en incombe au système», ajoutait-il. Le problème est que «l’euro semble avoir été conçu pour échouer»: alors qu’il devait «apporter la prospérité à tous les pays membres, ce qui devait renforcer leur solidarité et faire avancer le projet d’intégration européenne», il s’est produit exactement le contraire, «car il a freiné la croissance et semé la discorde».

Le livre de l’économiste d’origine indienne Ashoka Mody, Euro Tragedy, était en cours d’impression au moment de la formation du gouvernement en Italie. Mais Mody prévoyait déjà que ce pays serait «la ligne de fracture» de l’euro. La menace de voir Rome quitter la monnaie unique s’est accentuée depuis, l’Italie étant entrée en récession.
Mody était directeur adjoint du département Europe au Fonds monétaire international (FMI) lors des crises grecque et irlandaise en 2010. Son verdict est impitoyable à plus d’un titre. Ce n’est pas seulement que l’euro a été mal conçu, écrit-il, c’est que tout au long de son histoire, politiques et technocrates ont joué la politique du pire au nom d’un raisonnement mi-naïf mi-cynique selon lequel les crises, inévitables, ne pourraient que faire du bien à l’Europe, qui «en sortirait plus forte, plus dynamique».

C’est bien sûr le contraire qui s’est produit. Mody raconte en détail une histoire biaisée dès le départ, puisque la décision de créer l’euro a été une concession faite par l’Allemagne de Helmut Kohl, qui n’en voulait pas, en échange de l’acceptation par la France de Mitterrand de la réunification allemande. «C’est une histoire d’avertissements ignorés, de pensée moutonnière, de tromperies et de dénis, de précipitation incon­sidérée et de prudence exagérée, de mythe, de pensée magique, d’illusionnisme technocratique et, enfin, de revanche impitoyable du réel», écrit Andrew Stuttaford dans la National Review.

Patrick Honohan, qui fut le gouverneur de la Banque centrale d’Irlande de 2009 à 2015, juge le récit de Mody tout à fait convaincant: une succession de «déclarations intempestives et incohérentes faites par les responsables politiques et d’autres» tant du côté des pays créanciers que des pays débiteurs de la zone euro, écrit-il dans The Irish Times. «Pacte de stabilité et de croissance» est le «titre orwellien» donné en 1997 à «un ensemble de règles budgétaires mal pensées et beaucoup trop mécaniques, qui risquaient fort de déstabiliser les économies et de ralentir la croissance».

Par ailleurs, «Mody a raison de dire que toutes les parties concernées auraient dû réaliser dès 2000 que la Grèce n’était pas prête et ne remplissait pas les critères pour entrer dans la zone euro».

L’économiste indien incrimine un homme en particulier: Wolfgang Schäuble, qui fut sans nul doute le plus influent des ministres des Finances de l’Eurogroupe de 2009 à 2017. Mody lui reproche toute une série d’erreurs, la principale, écrit Honohan, étant d’avoir insisté en 2010 pour que la Grèce rembourse sa dette, ce qu’elle n’avait pas les moyens de faire.

L’avenir? Que l’euro soit réservé aux pays du nord de l’Europe… ou que l’Allemagne revienne à son deutschemark.
Olivier Postel-Vinay




terça-feira, 4 de junho de 2019

NOS TRILHOS DA INQUISIÇÃO

Os "gays" mouros e cristãos perseguidos pela Inquisição

 


 

Mouros Sodomitas em Portugal e Cristãos Bardaxos na Berbéria


Para se resgatar o cotidiano dos mouriscos na Península Ibérica entre os séculos XVI e XVIII dispomos de riquíssima fonte documental - mais de mil processos e outros manuscritos do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição Portuguesa. Informam tais estudos que foram processados pelo Santo Ofício 349 mouros no século XVI e 376 no século XVII, número muitíssimo inferior se comparado com a perseguição aos cristãos-novos em Portugal e mesmo com os muçulmanos presos pelas Inquisições da Espanha e Itália. O crime dos mouriscos, na sua quase totalidade, consubstanciava-se na prática secreta do islamismo, sobretudo a observância de rituais determinados pelo Corão: a circuncisão, orações, jejuns e abluções, mas também blasfêmias contra o catolicismo, venda de armas para os infiéis, etc. Dentre estes documentos, localizamos dezenove processos de mouros e mouriscos envolvidos com o crime de sodomia, acrescidos de cinco denúncias registradas nos Cadernos do Nefando. Além destes, disponho de mais nove indicações de renegados “bardaxos” processados pelos Tribunais do Santo Ofício de Múrcia, Maiorca e Sardenha. É com base neste corpus documental relativo a 32 réus, que reconstruiremos o cotidiano dos mouros sodomitas no Reino de Portugal assim como as desventuras homoeróticas de uma dezena de cristãos sodomitas – chamados na época de “bardaxos” em terras do Islão. No imaginário popular da cristandade, da Ibéria à Germânia, refletido no discurso teológico e também na práxis inquisitorial, acreditava-se que “os mouros são mui dados a cometer o abominável crime de sodomia e na seita de Mofamede é concedido que possam usar desta abominável torpeza assim com os homens como com as mulheres.” O amor que não ousava dizer o nome era muito mais visível e tolerado do outro lado do Mediterrâneo do que nas terras dominadas pelo Tribunais do Santo Ofício. Ao tratarmos mais adiante dos “renegados” cristãos que no Levante adotaram os costumes e religião dos mouros, veremos diversos episódios confirmatórios dessa maior visibilidade e tolerância homoerótica nas sociedades islâmicas.


LUIZ MOTT *
Introdução
Os portugueses costumavam chamar de mouros não só aos naturais do noroeste da África, região identificada como Berbéria ou Mourama, mas também todos os seguidores da religião de Maomé, incluindo árabes ou convertidos de outras nações e etnias, assim como seus descendentes, que, a partir do século VIII, invadiram e ocuparam grande parte do que veio a se tornar o Reino de Portugal, território que foi sendo paulatinamente reconquistado pelos cristãos até a tomada final do Algarve por Afonso III em 1249. Encerra-se então o domínio islâmico em terras portuguesas, embora continue marcante apresença mourisca na Lusitânia, contribuindo de forma significativa na miscigenação e nas mais variadas manifestações socioculturais, como a inclusão de numerosos arabismos na língua portuguesa, influência significativa nas artes, arquitetura, culinária, agricultura, conhecimentos científicos, etc. (1)
Durante a Idade Média e início dos Tempos Modernos, mouros e mouriscos (2), assim como os judeus e cristãos-novos, padeciam de graves entraves discriminatórios, obrigados a portarem roupas e cortes de cabelo identificáveis e ao pagamento de numerosos e pesados impostos, proibidos de livre circulação e de união sexual/matrimonial com as cristãs. “Viviam em comunidades fechadas chamadas mourarias ou aljamas, governados por um alcaide de sua escolha que é também juiz. A mouraria de Lisboa dispunha de banhos, prisão, açougue, escola, curral, cemitério e duas mesquitas, existindo igualmente outras mourarias em mais de uma dezena de outras cidades, cujas portas eram fechadas à noite, proibindo-se e castigando-se até com pena de morte a permanência de mulheres cristãs em seu interior. Apesar de todas estas leis, a miscigenação é inevitável, em todos os estratos da sociedade e mesmo no que toca aos monarcas: D. Afonso Henriques tem um filho de uma moura, o mesmo acontecendo com D. Afonso II.” (3)
Os mouros exerciam variadas atividades produtivas e comerciais dentro da sociedade portuguesa, particularmente no setor secundário: sapateiros, ferreiros, oleiros, esparteiros, estribeiros, albardeiros, pedreiros, carpinteiros. A convivência relativamente pacífica entre mouros e cristãos no território português acaba abruptamente no reinado de D. Manuel, quando, em 1496, sob o pretexto religioso, são obrigados a escolher entre a expulsão ou o batismo. (4)
Para se resgatar o cotidiano dos mouriscos na Península Ibérica entre os séculos XVI e XVIII dispomos de riquíssima fonte documental: mais de mil processos e outros manuscritos do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição Portuguesa. Notadamente três importantes trabalhos já resgataram criteriosamente tais fontes: “Les Crypto-Musulmans d’origine marocaine et la société portugaise au XVIe siècle” (BOUCHARB,1987), “Mouriscos e cristãos no Portugal quinhentista: Duas culturas e duas concepções religiosas em choque” (BRAGA, 1999) e “Filhos de Mafoma: mouriscos, cripto-islamismo e Inquisição no Portugal quinhentista” (RIBAS, 2004). (5)
Informam tais estudos que foram processados pelo Santo Ofício 349 mouros no século XVI e 376 no século XVII, número muitíssimo inferior se comparado com a perseguição aos cristãos-novos em Portugal e mesmo com os muçulmanos presos pelas Inquisições da Espanha e Itália (6). O crime dos mouriscos, na sua quase totalidade, consubstanciava-se na prática secreta do islamismo, sobretudo a observância de rituais determinados pelo Corão: a circuncisão, orações, jejuns e abluções, mas também blasfêmias contra o catolicismo, venda de armas para os infiéis, etc.
Dentre estes documentos, localizamos dezenove processos de mouros e mouriscos envolvidos com o crime de sodomia, acrescidos de cinco denúncias registradas nos Cadernos do Nefando, tendo como datas limites 1547-1754. Além destes, disponho de mais nove indicações de renegados “bardaxos” processados pelos Tribunais do Santo Ofício de Múrcia, Maiorca e Sardenha entre 1576-1678. (7) É com base, portanto, neste corpus documental relativo a 32 réus, que reconstruiremos o cotidiano dos mouros sodomitas no Reino de Portugal assim como as desventuras homoeróticas de uma dezena de cristãos sodomitas – chamados na época de “bardaxos” em terras do Islão.
1. Sodomia, o vício dos árabes no imaginário cristão
Começamos com uma constatação: no imaginário popular da cristandade, da Ibéria à Germânia, refletido no discurso teológico e também na práxis inquisitorial, acreditava-se que “os mouros são mui dados a cometer o abominável crime de sodomia e na seita de Mofamede é concedido que possam usar desta abominável torpeza assim com os homens como com as mulheres.” (8)
Em diversos processos do Santo Ofício, os Inquisidores, quando perante um mourisco ou de cristãos que viveram na Berbéria, frequentemente insistem nessa mesma suspeita: em 1566, perguntaram ao mourisco forro, Gil (9), 20 anos, “se na lei de Mafoma é permitido cometer o pecado de sodomia dormindo com moços”, ao que respondeu, que “na sua terra não mas que nas terras dos turcos se permite”. Mais tarde retificou: “em sua terra, na Berbéria, sendo mouro, era costumado a dormir com moços por detrás porque disto na sua terra não tinha outra pena senão metê-lo na cadeia e pagar dinheiro e soltá-lo, mas que depois de cristão nunca mais cometera este pecado”. Em 1593, a mesma insistente pergunta feita a um tal Diogo Fernandes, 30 anos, lavrador da Ilha Graciosa, “se sentiu bem da lei dos mouros ou gentios por darem liberdade para pecar e particularmente no pecado da sodomia?” (10)
No processo de socialização das crianças católicas, ensinava-se a terem cautela "vis a vis" os muçulmanos, reputados como useiros na prática do “mau pecado”: em 1556, uma indiana que servia no Orfanato do Colégio da Companhia de Jesus em Lisboa, disse a um menino “que não dormisse perto do mourisco João de Távora, menor de 25 anos, porque na sua terra os turcos faziam ruindade com os meninos.” (11)
Foi recorrente e universal na cristandade, no processo de catequização dos gentios, a demonização dos bárbaros e selvagens, notadamente dos seguidores da lei de Mofamede, acusados exageradamente da prática de gravíssimos pecados mortais condenados pela moral católica: nudez, poligamia, incesto, mutilações genitais, mas sobretudo, “o mais torpe, sujo e desonesto pecado”, a abominável sodomia, cujo nome não podia sequer ser pronunciado (12). Pecado tão cabeludo que foi criminalizado e equiparado pela Justiça Real aos delitos de lesa majestade e traição nacional. E mais grave ainda: o amor entre pessoas do mesmo sexo foi considerado “peccatunt ad coelum clamans”, clamando pela ira divina que castiga a humanidade com terremotos, pestes, fomes... (13)
Assim sendo conjeturamos que a associação entre islamismo e homoerotismo teve seu "début" particularmente datado no imaginário cristão através de um episódio emblemático na luta de expulsão dos invasores sarracenos e reconquista dos territórios ibéricos: o martírio de São Paio – também conhecido por Sampaio ou São Pelágio, morto no ano do Senhor de 925 na Andaluzia. Paio era um virtuoso jovem cristão, nascido na Galícia, que entre seus 10 a 13 anos teve a desventura de ser cativo do califa Abd-ar-Rahmãn III, da dinastia dos Omíadas, governador de Córdoba, o qual torpemente atraído pela beleza desse efebo, representado na iconografia como alvinho e de olhos azuis, tentou converte-lo à lei de Maomé, tentando seduzi-lo, com muitas promessas de bens materiais, para ser mais um ganimedes em seu nefando harém. Paio, que era sobrinho do piedoso Bispo de Tui, indignado contra proposta tão imoral, teria respondido: “Afasta-te, cão! Pensas por acaso que sou um dos teus efeminados lacaios?” (14) Em represália por tamanha audácia, foi barbaramente torturado, tendo seus braços e pés arrancados, e por fim decapitado e lançado no rio Guadalquivir. Sua dramática e virtuosa história foi rápida e amplamente divulgada pela cristandade em três versões impressas em prosa e versos, ampliando e reforçando a associação pecaminosa dos mouros com o abominável pecado de sodomia. (15)
Certamente a maior convivência dos portugueses com mouros, turcos e magrebinos, tanto no Reino quanto na Berbéria, contribuiu igualmente para o reforço dessa visão de que os maometanos possuíam códigos sexuais mais licenciosos do que os impostos pelas leis del Rei e da Santa Madre Igreja: além da generalizada prática da poligamia poligínica e a despeito das condenações do Corão ao “pecado dos filhos de Lot” (16), na realidade, o amor que não ousava dizer o nome era muito mais visível e tolerado do outro lado do Mediterrâneo do que nas terras dominadas pelo Tribunais do Santo Ofício. (17) Ao tratarmos mais adiante dos “renegados”cristãos que no Levante adotaram os costumes e religião dos mouros, veremos diversos episódios confirmatórios dessa maior visibilidade e tolerância homoerótica nas sociedades islâmicas.
Um outro fator explicaria a persistente crença, sobretudo entre os teólogos e inquisidores, da maior permissividade da lei de Mafoma ao mau pecado: tinham conhecimento dos ensinamentos do destacado teólogo franciscano Alfonso de Spina (†1491), reitor da Universidade de Salamanca, confessor real, bispo de Orense, autor do celebrado tratado "Fortalitium fidei contra Judeos, Sarracenos aliosque christiane fidei inimicos", obra publicada originalmente em 1458, que teve quase uma dezena de reedições na Alemanha e França - a última data de 1525, em Lion. Embora não seja a primeira obra a acusar o Corão de ser “gay friendly” (18), foi, sem dúvida, o incunábulo teológico que teve maior expansão na cristandade. Nesse compêndio, dividido em quatro tratados, Spina refuta, com combativa veemência, os quatro principais inimigos da fé cristã: hereges, judeus, sarracenos e demônios. É, pois, no terceiro livro onde inclui, entre outras perversões dos seguidores da lei de Mafoma, sua anuente tolerância à cópula anal.
Não localizamos o "Fortalitium Fidei" na Livraria do Santo Ofício de Lisboa. Contudo, na Biblioteca Nacional Portuguesa há quatro volumes do mesmo tratado: três versões francesas impressas em Lion (1487, 1511 e 1525) e uma de Nurembergue (1494). Foi provavelmente baseado na leitura de uma destas edições que em 1579 o Promotor da Inquisição de Évora ao acusar de sodomia o mourisco João de Noronha, 40 anos, natural de Alcácer Quibir, cativo do bispo de Porto Alegre, assim alegou: “o réu tem contra si as cousas seguintes: primeiramente a presunção de sua nação, que foi mouro nascido na Berbéria e queira Deus que o não seja inda hoje, os quais são mui dados a cometer o abominável crime de sodomia e na seita de Mofamede é concedido que possam usar desta abominável torpeza, assim com os homens como com as mulheres, sicut diccitur in Fortalicio fidei de Bello Sarracenorum et de Erroribus legis Mahometi" (19).

2. Mouros Sodomitas em Portugal

Salvo erro, a primeira referência a um mourisco envolvido com a prática da sodomia em Portugal remete-nos a primavera de 1547, quando os inquisidores, mesmo ainda sem ordem papal expressa autorizando-lhes a perseguição ao abominável e nefando pecado, iniciam a perseguição aos “filhos da dissidência” (20). Foi o zeloso Arcebispo D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos (1540-1564) quem levantou o escândalo: denunciou ao Santo Oficio que “havia em Lisboa casa ou casas e pessoas tocadas do crime abominável de sodomia” (21). Feita a averiguação, desmantela-se então nefanda rede de uma dezena de intrépidos sodomitas, sobretudo serviçais e cativos de nobres e até da própria casa real, incluindo também gente graúda, jovens e adultos, entre eles “o mourisco, Fernando Castro, escravo do fidalgo Afonso d’Ataíde”, igualmente referido como “Fernão de Castro, mourisco de D.Felipa que dormia com Nicolau Peçanha, 20 anos e dizia que era seu rufião”. É citado também um mancebo por nome André Mouro, sem mais detalhes (22) Desta trintena de primeiros sodomitas denunciados ao Santo Tribunal em 1547, 17 foram efetivamente presos e sentenciados a degredo e galés, dos quais dois pretos e um mulato, nenhum mouro. Suas culpas não foram então julgadas suficientes para castigo.
Passados cinco anos, ocorre em 1552 a primeira prisão de um mouro sodomita em Portugal: Mestre Francisco Levantisco (23), meirinho da galé del Rey denominada Vitória, é acusado por um seu grumete, Luís, 13 anos, natural de Coimbra, de dormir com ele na mesma cama, por dois meses: “seu mestre pecava com ele, mandando que se calasse.” Consta em seu processo que esse levantino era natural de Corfu, ilha grega do mar Jônico situada na costa da Albânia, de um lugar chamado Grastados, filho de pai e mãe gregos, naturais de Egurna, então senhorio de Veneza. Ele próprio diz que fora “tomado em Argel pelos turcos, que o fizeram cativo”, remando anos seguidos em suas galés, até que foi capturado pelos portugueses nos mares dos Algarves. Sua prisão nos cárceres do Santo Ofício durou sete meses, sendo condenado por cinco anos a “remeiro com ferros” nas galés, além das costumeiras penitências espirituais, obrigado a se confessar e comungar nas três páscoas do calendário litúrgico.
No ano seguinte, 1553, ocorre a prisão do segundo mouro, Alle (24), 30 anos, cativo do Provedor Fernão Rois Castelo Branco, “há quatro anos na terra de cristãos”, morador então em Lisboa, denunciado por um serviçal do mesmo senhor de tê-lo flagrado na estrebaria por cima de “um mancebo amulatado que jazia de bruços, descoberto, com as ceroulas derribadas abaixo, praticando o mau pecado”. Acrescenta que o dito mouro “tinha muita má fama” e tentara comprar com dinheiro, o silêncio dos delatores. Em sua sentença, proferida oito meses após sua prisão, considera-se que “cometeu muitas vezes e continuação de tempo o abominável e nefando pecado de sodomia contra natura, sendo agente, mas como disse que quer se fazer cristão e receber o santo batismo, depois de bem instruído nas cousas da nossa santa fé e necessárias para sua salvação, que seja condenado a dez anos de degredo nas galés.”
Estes dois primeiros mouros processados antecipam, mutatis mutandis, uma tendência presente na interação homoerótica de diversos outros ismaelitas denunciados e ou processados pelo Santo Ofício de Portugal entre 1547-1754, dos quais dezesseis no século XVI, seis no XVII e dois no XVIII: a preferência por meninos e rapazes bastante jovens, assim como condutas autoritárias, quiçá violentas, permeando tais interações libidinosas.
Comecemos pela identificação nominal desta minoria étnica: apenas sete, do total de 24 mouriscos, mantinham seu onomástico original arábico: Alle, Osmam/Osmão, Barria, Salim/Celema, Ali de Bona, Hamet (dois casos).  Dentre todos, foi Francisco, mouro, 26 anos, natural do Marrocos, quem mais informou sobre seus antepassados: nomeou não apenas seu pai, Amed e sua mãe, Golizae, mas também seus avós, Amatamançor e Fátima. (25)
Alguns destes eram identificados por sua procedência ou condição de origem: Francisco Levantisco, Thomas Marunita, Felipe Mourisco, João Mourisco. A maior parte havia adotado nome de cristão, sem sobrenome: Gil, Joane, Francisco, João Batista. Um menor número já ostentava sobrenome, poucos até de boa estirpe, certamente apropriado dos donos da casa onde serviam: Antonio de Brito, Manuel de Menezes, Antonio José Noronha. O mouro João Távora informou que adotara o mesmo nome de seu padrinho. Dois possuíam dois onomásticos: João Mourisco ou de Noronha, Manoel de Menezes ou Ali de Bona. Nos processos, e certamente no seu meio social, eram referidos como mouros, mouriscos, mouros de nação; apenas dois são identificados como turcos. O citado Thomas Marunita era egípcio, tendo como sobrenome a Igreja Católica Maronita, originária do Líbano, sujeita à comunhão com o papado romano. Tais sodomitas provêm de extensa área mediterrânea, sendo citados como local de origem a Berbéria, notadamente o Reino do Marrocos: Ceuta, Alcacer Quibir, Tetuão, Fez, mas também Corfu, Cairo e Anatólia.
Variado é o fenótipo, assim como a aparência e indumentária destes sodomitas mouros provenientes de grupos étnicos tão diversos: Hamet, 17 anos, “mancebo que começa a barbear”, é descrito como “homem branco, grande de corpo”; já o mouro de nação, Joane, 30 anos, escravo do Cardeal Inquisidor D.Henrique, é “preto”. Alguns são imberbes: João Pereira, mourisco de 15 a 16 anos, “mancebo sem barba”; Francisco, mouro de 26 anos, natural do Marrocos, “tem boa estatura, pouca barba, cabelo preto e crespo”; Gil, 20, de meã estatura, “desbarbado, anda vestido de vermelho, com calças de pelote”, enquanto Manuel de Menezes, 35, mourisco de nação convertido cristão, morador em Leiria, “alto de corpo, tem barba preta e rosto largo”.
Dentre todos, o melhormente descrito foi Osmão, turco infiel da Anatólia, 55 anos: “alto e grosso, barba tosada e quase branca, bigodes compridos”, que não obstante sua condição de cativo do Marquês de Santa Cruz, se vestia com o esmero de um paxá: “traz sombreiro preto, capa de baeta e roupeta verde, meias calças pardas, usa meias e sapatos”. Foi o único mouro queimado na fogueira cujo nome consta na Lista dos Autos de Fé da Inquisição.
Alguns destes mouriscos sodomitas, antes de cair nas malhas do Tribunal da Fé, tiveram vida bastante atribulada - muitos, capturados por piratas e vendidos como cativos, como foi o caso de Manuel de Meneses, que ao ser preso em 1583, disse que “veio para Portugal no ano que os turcos cercaram Malta e a não tomaram”, sendo capturado na sua galeota pelos espanhóis do Capitão Conde de Altamira perto da Ilha de Sardenha, remando nas galés por 20 anos seguidos, chamando-se então Ali de Bona, até que há dois anos passados, estando no porto de Leiria, fugiu, ficando oito meses em casa de um clérigo, mudando-se dali para a casa do Marquês de Vila Real, onde foi batizado pelo Marquês e o Conde seu filho, recebendo então atestado de batismo, passando a trabalhar na sua estrebaria.(26)
Também teve história acidentada nosso já conhecido Levantisco, tomado em Argel por turcos, que o fizeram cativo, servindo ao remo nas frotas muçulmanas, capturado agora pelos portugueses nos mares algarvinos. Joao Pereira, 15 anos, disse ter vindo há dois anos de Tetuão onde tinha “bons parentes e pai cavaleiro”, o qual trouxera para o Reino dois cristãos cativos que o batizaram. (27)
Encontramos, portanto alguns mouros chegados há poucos anos em Portugal, como esse adolescente marroquino, outros vivendo há mais tempo, como Hamet, cativo de 42 anos, que disse estar vivendo em terra de cristãos há 4 anos. Infelizmente, faltam-nos mais informações sobre este quesito. Treze dos denunciados declararam viver em Lisboa, sendo também citado como local de residência Leiria, Porto Alegre e Angra na Ilha Terceira.
Desses 21 mouros cuja idade é revelada, seis tinham menos de 20 anos, cinco estavam na faixa dos 20, sete na dos 30, dois com quarenta e o mais velho com 51 anos, portanto, pouco mais da metade “menor de idade”, isto é, com menos de 25 anos, segundo a casuística demográfica inquisitorial. O que vale dizer, estavam na flor da idade e exuberância da testosterona... População bem mais jovem do que a média dos mouros presos por heresia, pois segundo dados de BOUCHARB(1987) e RIBAS(2004), por volta de 62% destes, ultrapassavam 40 anos.
No tocante à ocupação/profissão, aproximadamente 1/3 dos mouros envolvidos com o mau pecado eram cativos, perfazendo o total de sete, dos quais três vivendo nas galés reais, certamente tendo sido capturados no corso ou criminosos cumprindo sentença da justiça civil. Alguns eram escravos de gente graúda, como do Cardeal Inquisidor D.Henrique, do Marquês de Santa Cruz, do bispo de Porto Alegre (D.Amador Arrais?), cativo do Desembargador Simão Cunha, do Provedor Fernão Rodrigues, do Almoxarife da Casa da Índia.
Diversos trabalhavam em estrebarias de casas abastadas, como Joane, mouro de nação, 30 anos, que servia ao Cardeal Inquisidor em 1576 e o mourisco Francisco, “que cuida das estrebarias do Conde de Ribeira Grande”(1677) (28) sendo em tais espaços que vão ocorrer alguns encontros homoeróticos.(29) Há também um cozinheiro, um criado despenseiro do Marquês de Santa Cruz, um homem de pé do Governador do Brasil Alexandre de Sousa Freire e dois mouriscos ocupando funções de mando, seja como Meirinho da galé real, seja como carcereiro no Limoeiro, a principal prisão de Lisboa neste período.
Quanto às práticas homoeróticas destes mouros, encontramos grande diversidade de vivências, seja na frequência e morfologia dos atos libidinosos, seja na escolha do parceiro e convivência homossocial com outros amantes do mesmo sexo.
Alguns destes mouros parecem ser novatos na somitigaria: Gil (30),  forro de “menos de 20 anos”, teve a desdita de cair nas malhas da inquisição aparentemente logo no primeiro ato sodomítico: ao violentar um menino de 9-10 anos, Baltazar, “tirou-lhe muito sangue de modo que em dois ou três dias não podia fazer suas necessidades e por quatro ou cinco dias não podia sentar e no dia seguinte quis dar-lhe 20 réis para que dissesse ao seu patrão que o não fizera mal, apenas o batera com uma correia.” Depois dessa abominável violência, lançaram o pedófilo fora de casa.
Outro acusado, identificado simplesmente como “mourisco” 19 anos, repete em 1576 o mesmo padrão de assédio sexual contra um pré-adolescente: convertido há um ano e fugindo de sua pátria, cometeu sodomia com dois moços, um deles sendo encontrado pelas testemunhas com marcas de sangue. Ao ser preso, confirmou ter sodomisado os mancebos, dizendo que “assim costumava lá na sua terra fazer e se tinha por costume entre os mouros donde nascera fazer o mesmo”. Foi condenado a 5 anos de galés “por ser menor, por ter apenas um ano de convertido e esperança de emenda.” (31)
Diversos levantinos, como este último cristão novo "ex-muslim", confirmam que eram habituados ao homoerotismo desde quando viviam na Berbéria: em 1691 Thomas Marunita (32), 30 anos, filho de Aresque e Jitelbech, natural do Cairo onde foi batizado no rito maronita, exercendo em Lisboa a ocupação de sotacocheiro na casa do Embaixador da França. Disse que no Cairo, dos 15 anos aos 23 anos, relacionou-se sexualmente com muitos e vários homens, às vezes como agente [activo], outras, paciente [passivo], incluindo “alguns turcos de nação, outros egípcios, todos profitentes da seita de Mafoma, mas não pode numerar todos.” Disse que há oito anos embarcou para Veneza e em seis meses, lá cometeu somitigarias com um moço marinheiro filho de um capitão, sendo agente três ou quatro vezes; daí foi a Paris em companhia do Monsieur de Amelot de quem era criado e copulou várias vezes por dois meses, sempre agente, com um francês, cozinheiro da mãe de seu patrão. Há seis anos veio para Lisboa acompanhando o dito embaixador e por três anos, copulou três vezes com Charbam, francês de nação e vinte vezes, com Guilherme, 16 anos, filho de uma alemã, tendo atos libidinosos com um menino de 7-8 anos na casa do Embaixador. Sem saber que diferentemente das inquisições espanholas, o Santo Ofício lusitano não perseguia o bestialismo, confessou ainda: “com grande tentação do demônio, teve ajuntamento carnal duas vezes com uma cabra, pelo vaso natural, por fora derramou semente e também com uma burra na estrebaria”. Disse que há três anos servia o Embaixador, vivendo em casa do Marquês de Nizza em São Roque, onde teve vinte sodomias com Zeladon, francês de nação, criado do embaixador e com mais três criados franceses do Embaixador, um de 12 anos. Incluiu em sua crônica erótica algumas fornicações pelo vaso natural e pelo traseiro com uma mulher-dama moradora ao Lagar, castelhana de nação. Pede perdão por tantos pecados da carne! Misericordiosos e certamente para não criar problemas com a chancelaria do rei Luiz XIV, os Inquisidores deliberam, tout court, que esse fogoso egípcio afrancesado fosse degredado para sempre para fora do Reino, com leitura da sentença na mesa inquisitorial, o que sequer chegou a ser cumprido, posto que espertamente o Embaixador da França encarregara-se de embarcar seu sotacocheiro para fora do Reino.
Neste seu relato o egípcio frisa que na sua terra natal, cometeu com muitos e vários homens o nefando pecado, “as vezes como agente, outras, paciente”, embora ao identificar os parceiros em mais de meia centena de atos sodomíticos consumados nos últimos oito anos, insistiu sempre ter sido “agente”.
Também João de Távora, mourisco forro já citado, menor de 25 anos, batizado em Ceuta há sete, preso em 1556, declarou ter cometido diversas vezes o pecado com alguns moços em Lisboa, sendo “agente”. E por sua performance libidinal, revela ser bom "connoisseur" desse "métier": quando morava no Colégio da Companhia de Jesus aprendendo a doutrina, “apagou a lâmpada, cuspiu na mão e untou o vaso traseiro de João, 12 anos e meteu seu membro viril: o menino quis gritar, mas o réu impediu, ameaçando-o de morte, repetindo o ato muitas outras noites.”
Também Francisco (33), criado marroquino de 25 anos, preso em 1662, “homem de pé”, que disse já ter morado em Marzagão, Algarves, Vila Galega e Óbidos, batizado na igreja dos jesuítas de São Roque, foi ativo cinco vezes com o mulato João Róis e passados três meses, “levou-o para dentro da casa de seu amo e tentou pecar no nefando, recusando, meteu a mão na sua braguilha, mas também recusou.” O mouro Alle, flagrado cavalgando um mulato, foi sentenciado a 10 anos de galés “pois cometeu muitas vezes o mau pecado sendo agente.” (34)
Aliás, conforme veremos mais adiante, nos relatos de portugueses que viveram como bardaxos na Berbéria, há informação de que era valorizado e prova de masculinidade, o ativo-penetrador exibir-se publicamente como tal, tendência que parece ter se enfraquecido do lado cristão do Mediterrâneo, percebendo-se entre os mouriscos maior versatilidade libidinosa, vários tendo praticado sodomia "ad invicem", como se referiam os Inquisidores ao “troca-troca” entre ativo e passivo. O já citado João Pereira, marroquino de Tetuão, 16 anos, confessou ter sido passivo de Hamet e Gonçalo, enquanto com Felipe foi agente e paciente. O mouro Salim (35), feito cativo em Argel, confessa em 1552, que foi quatro vezes passivo do mouro cativo do Almoxarife da Casa da Índia, tendo igualmente “ajuntamento por detrás” com Hamet, 17 anos.
Diversos magrebinos presos pelo Santo Ofício revelam participar de extensa e diversificada rede social de praticantes do homoerotismo, incluindo outros levantinos, indianos e africanos, mas também fanchonos portugueses. Joane, o já citado mouro de nação, preto, 30 anos, escravo da estrebaria do Cardeal Inquisidor, tem um séquito de onze cúmplices nefandistas a quem assediou sexualmente, com alguns chegando a “meter sua natura no cuu”, quase todos jovens ligados a seu mesmo universo de trabalho: escravos mouriscos estribeiros e um cozinheiro indiano do dito Cardeal e com outro “escravo panasco meteu-lhe a natura e lhe deu 1 vintém”, mas também com homens brancos, com o criado de D. Jerônimo, na quinta da Companhia e com Belchior, criado do cozinheiro mor do cardeal.
João Antônio (36), turco de 18 anos, criado de D. Bartolomeu Veiga, preso em 1562, pela frequência e ousadia em assediar e aceitar os convites de outros homens, se enquadra na categoria que os Inquisidores nomeavam de “sodomita convicto e exercente”, e que entre os próprios homopraticantes e a população em geral chamavam de “fanchonos”. Certamente frequentava locais de encontros homoeróticos existentes na cena gay lisboeta (37), como sucedeu à véspera de sua detenção: disse que “ontem, nos alpendres de São Francisco, um estrangeiro de 40 anos que fala sete línguas, bem vestido, com chapéu, barbas, capa frisada, calções de sarja e adaga dourada, travou com ele práticas dizendo que era amigo de estrangeiros e mancebos do seu jeito e que tinha uma casa e havia medo de estar só e que queria que pousasse junto”. Certamente por estar habituado a tais encontros, industriou-o que se perguntado, dissesse que lhe trazia uma carta dos Algarves. E como estava muito quente, o homem desatacou-lhe os calções e começaram a se tocar, quando chegou um mourisco de cabelo branco e mais dois moços seus vizinhos, e ficando a sós, despiram-se, ele denunciante atemorizado, e abraçou-o e o beijou, tentando três vezes praticar sodomia, mas negou dizendo que “era pecado mortal e que não fizesse tal”, ao que respondeu o estrangeiro poliglota : “cala parvo, que não sabes o que dizes”.
Essa foi a confissão original do jovem turco, se passando por vítima, versão logo desacreditada devido às diversas acusações que contra ele já estavam registradas nos processos de outros sodomitas investigados pela Santa Inquisição: um jovem de nome Pero, 21 anos, disse que viveu seis meses com o citado turco, que por muitas vezes João Antônio dormiu com ele sem sua vontade e chamava também Mesquita para pecar e outros mancebos; Miguel, 16 anos, que conviveu por um ano com o réu e o convidara uma vez para dormir em sua casa, “pediu que lhe mostrasse suas vergonhas e ele por importunado lhe mostrou e lha apalpou” e isto repetiu outras vezes.
Informa detalhes sobre os encontros destes jovens de diferentes origens étnicas e sociais: “iam a sua casa moços desbarbados bem dispostos, entre estes, criados de fidalgos e também mulheres solteiras ”, e mandava buscar pão e vinho, e aí se abraçavam e beijavam, dormindo juntos duas vezes “e por esta causa saiu de sua casa”. Outro mancebo, Inácio Lopes Mesquita, 17 anos, de Guimarães, criado do Escrivão da Casa de Ceuta, disse que este turco o “apalpou e pegou nas suas vergonhas e com força dormiu com ele.” Em sua confissão, o réu disse ter provocado muitos moços para pecar e que alguns moços não consentiram, mas com tocamentos desonestos e polução (38) conseguia o desejado e que certa vez “se rapara o dito turco diante de um moço em suas partes desonestas e o mesmo fizera ao dito moço”. Diz que frequentava sua casa Francisco de Melo, fidalgo que foi na armada, e muitos estrangeiros, incluindo dois criados portugueses, cometendo com um tal de Pedro em sua casa na Mouraria, duas sodomias depois do jantar, contra a vontade do moço, três vezes com Mesquita e outros mais, “sempre o réu provocava, mas conhecera (39) fora de seu corpo no mais das vezes e sempre estava alegre de vinho quando pecava neste pecado”.
Diversos são referidos como useiros na prática do mau pecado: os já citados Alle, 30 anos, há quatro em terra de cristãos, “era muito infamado”; o mourisco João de Noronha, 40, cativo do Bispo de Porto Alegre era “infamado publicamente de somítigo” tanto que ao tentar beijar um menino de 10 anos, este fugiu, “porque era infamado de cometer os rapazes”.
Contou o forro Felipe Mourisco (40) que já depois de batizado, no dia de São João de 1557, “indo com outro moço pobre, Gonçalo, pelas quintas desta cidade procurar emprego e comer frutas, não tendo onde dormir foram a uma estrebaria onde havia outros mouros dormindo.” Trata-se da Estrebaria do mouro Hamet, sita à Rua Nova dos Ourives, o espaço lisboeta de maior concentração de sodomitas de origem muçulmana, sempre acompanhados de fanchonos cristãos. O marroquino João Pereira, de 15-16 anos, diz que também ele fora convidado por Felipe Mourisco para pousar na mesma estrebaria,  e num colchão, dormiram êle, Francisco de Argel que foi escravo do vice rei da Índia, Hamet e o dito Felipe e todos mantiveram cópula com Gonçalo, “que às vezes ria ou chorava e parece que consentia nisso”. Na mesma estrebaria somitigou com Hamet sendo paciente, mais duas vezes com Felipe sendo agente e com o dito Gonçalo, uma vez, também agente. Ao ser inquirido, o moço pobre Gonçalo, 15 anos, disse que três mouriscos seguraram-no pelas pernas e o sodomizaram “cada um a sua vez “ (41).
Tais relatos evidenciam, como padrão predominante, mouriscos assediando e relacionando-se sexualmente com seus próprios conterrâneos, em menor número fornicando com portugueses. Eram compulsoriamente levados a praticar uma espécie de “endogamia homoerótica”,  decorrente da apartação social a que estavam confinados e quiçá por ostentarem fenótipo depreciado no mercado libidinal europeu, onde a beleza estava fortemente ligada à raça branca. Raros são os mouros que assediavam aos cristãos brancos adultos, devido aos códigos tradicionais de distância estamental dominante que separava os cristãos velhos das pessoas de “sangue infecto de judeu, mouro, preto ou índio”, conforme previam os estatutos de limpeza de sangue vigentes na época.
Contudo, além do episódio há pouco citado em que o jovem turco relatou ter sido seduzido por um estrangeiro quarentão que lhe disse gostar de “mancebos do seu jeito”,  encontramos outro episódio de relação interétnica onde patenteia-se a técnica de sedução aplicada por um incorrigível sodomita branco "vis a vis" um mouro de cara escura: Mestre Felipe Correia (42), cirurgião, foi preso pela inquisição de Évora em 1553. Natural de Torres Vedras, casado, tinha pouca barba, meão, moreno, cabelo comprido. Assim foi denunciado pelo mourisco Domingos de Miranda: “mostrou um pedaço de seu peito tomando-o com a mão e dizendo que também tinha peito como Francisca e de noite, tomou sua mão e a pôs sobre seu peito enquanto alisava-lhe a barriga e coxa, chamando-o de mano, dizendo que tinha muitas formosas carnes e lá fora me vestirei de outros vestidos e de camisas perfumadas e farei unguentos para o rosto para parecer bem e vos farei uma mesinha, para vos crescer a barba e parecerdes mais alvo de rosto” e meteu a mão na natura do mouro, advertindo que se chegasse alguém, mudassem de assunto, prometendo dar-lhe 4 mil cruzados se o acompanhasse à sua terra. Disse mais: que o “mestre solorgião fazia mesura como as mulheres, que é puto e queria que o cavalgasse”.
Comparando essa vintena de sodomitas levantinos com mais de quinhentos processos relativos ao mau pecado, salta aos olhos a maior frequência de condutas sexuais violentas tendo crianças ou pré-adolescentes como vítimas. Violência, aliás, igualmente praticada nas relações heterossexuais, embora menos documentadas, posto que tais abusos entre homens adultos e meninas e adolescentes não pertenciam ao conhecimento do Santo Ofício. O mourisco Gil, 20 anos, já citado, “foi visto pegando um moço pobre no braço e levá-lo a um palheiro e conheceu-o como homem com mulher, chorando o moço, tinha sinais de sangue em suas partes vergonhosas” o que foi noticiado não só por uma “mourisca que vende cuscus”, mas pelo próprio menor, Baltazar, 9-10 anos, declarando que “lhe levantou as abas porque não trazia calças” e meteu-lhe no vaso traseiro, do qual “tirou-lhe muito sangue”.
O citado João de Noronha, 40 anos, casado com mourisca, copulou a força com dois meninos de 8 e 10 anos, um no forno de Beatriz, do qual diziam: “este coitadinho não se pode sentar porque João, mourisco do Bispo, dormiu com ele por detrás tirou-lhe uma tripa que trás fora” e a mãe do menino foi à casa do Bispo que estava ausente e como não quiseram abrir a porta de noite, ajuntou muita gente e em altas vozes bradou e lho fez botar fora da cama onde dormia. Um dos meninos disse que tentou beijá-lo e fugiu porque era infamado de cometer os rapazes; outro, de 13 anos, disse que o réu levou-o para trás do mosteiro e “assentou na palma da mão e o levantou do chão e lhe disse que se lhe queria dar de carregar” e dizendo que não, o soltou (43). O mouro de nação Antonio José de Noronha (44) é denunciado em 1754 que na enxovia da cadeia comete “sedomia” com um rapaz, Marcelino, colocando-lhe uma navalha no peito que se gritasse, morria.
À guisa de conclusão dessa primeira análise relativa aos mouros sodomitas em Portugal, restam ser feitas algumas considerações sobre a repressão inquisitorial a tal minoria étnica. Dos 19 mouros presos e processados por sodomia, 5 foram açoitados nos cárceres ou publicamente pelas ruas de Lisboa, 3 foram torturados sob suspeita que ocultavam suas culpas, 13 foram condenados a remar nas galés, variando de dois a dez anos, a maioria por cinco anos, apenas um, o turco João Antonio, foi condenado a galés perpétuas, assim justificada sua condenação: “em grande detrimento de sua consciência e dano da república, praticou o abominável pecado de sodomia durante muito tempo, com muitas pessoas em diversos lugares”. Todos que já eram batizados tiveram de cumprir as penitências espirituais de praxe, incluindo orações diárias, confissão e comunhão nas principais festas litúrgicas, e no caso dos renegados ou suspeitos de apostasia, assinaram termo de abjuração, comprometendo-se a seguir fielmente os ensinamentos católicos, devendo trazer o hábito penitencial e ser instruídos no Colégio dos Jesuítas.
Apenas um foi condenado à morte na fogueira, o turco Osmão, 55 anos, e de todos esses réus, o que mais sofreu, estando entre os raros sodomitas a purgar dois tipos de castigos: “levado à casa do tormento, foi despido e posto deitado no potro, se lhe deu uma volta de cordel e por ele réu não confessar cousa alguma, o ministro lhe deitou água pela boca coada por um pano de linho, de licença do Sr. Inquisidor, tomadas primeiramente informação do ministro que o réu não corria perigo algum em lhe darem a beber água e depois de lhe darem alguns púcaros de água disse o réu que queria falar a verdade...” Como havia diminuído a confissão de suas culpas, o Conselho Geral foi inclemente, considerando-o incorrigível, assim declarando no Acórdão: “cometeu o horrendo crime de sodomia com muitos moços cristãos, por muitas vezes, com muito atrevimento”, sendo entregue ao auditor Geral das Galés para fazer cumprimento da justiça, determinando que “seja executado do modo que se faz nos relaxados pelo crime de heresia por ordem de S. Majestade.” (45) Sua execução entrou na casuística inquisitorial, pois de acordo com os regimentos, não se aplicava a pena capital a culpados de primeiro lapso, “salvo de um turco Osmão, que como era este de seita e nação, não convinha nem era razão que gozasse desse privilégio”. Xenofobia e homofobia se dão as mãos.
Embora não haja registro nas Listas dos Autos de Fé das Inquisições, nem referência na História dos principais actos e procedimentos da Inquisição em Portugal (46), há informação na obra "Monstruosidades do tempo e da fortuna: Diario de factos mais interessantes que succederam no reino de 1662 a 1680, até hoje" (47), de autoria de J.A.Graça Barreto, que aos 22 de agosto de 1679, foram presos pela justiça secular cinco mouros que mantinham relação orgiástica com um ex-pajem do Tesoureiro Mor da Sé de Lisboa. Examinados pelo Santo Ofício, foram devolvidos ao juízo civil. O pajem, por ser menor, foi açoitado e obrigado a passar três vezes pelo fogo, sendo desterrado para Cabo Verde por toda a vida. Quanto aos mouros, três se converteram sendo batizados em um altar adrede preparado no Cais do Carvão, local onde cometeram o delito. Consta ter concorrido muito povo para assistir à queima, sucedendo edificante sinal dos céus: os mouriscos cristianizados “ficaram com seus rostos, outros, depois do batismo, pois neles se via a graça que haviam recebido”, enquanto os dois não conversos, “se foram em companhia para o inferno.”
Verdade seja dita,em muitos desses processos de maometanos envolvidos com práticas homoeróticas, prevaleceu por parte dos juízes inquisitoriais,mais a misericórdia do que a justiça no castigo dos réus. Por exemplo, em 1582, o mourisco de nação Manuel de Menezes (48), 35 anos, é acusado de ter sido visto beijando e abraçando um menino de 12 anos. O Inquisidor manda “averiguar extra judicialmente e com toda cautela para confirmar se é verdade, pois é só uma testemunha que disse ter visto e ouvido: que se vá ao local do crime conferir se era possível ver e ouvir”. Após a investigação, concluemos Deputados do Santo Ofício que não há culpa de sodomia, posto ter sido só uma testemunha, mas que sejam os suspeitos separados, sem prisão, seja absoluto por falta de prova, mas que volte para as galés de onde fugiu, para evitar reencontrar o cúmplice.” Algumas vezes os Inquisidores atribuíram penas mais leves levando em conta que o mouro tinha se convertido fazia pouco tempo, ou que estava tomado do vinho quando cometeu o mau pecado, que era de menor idade, ou ainda, que havia esperança de emenda, alguns dos apenados alegando que queriam mudar de vida: o citado turco João Antonio, condenado a galés perpétuas, após cinco anos preso, recebendo1 tostão por dia del Rey para seu mantimento, diz que construiu muitas galés que estão nos Algarves defendendo o reino e nelas não foi embarcado porque se fosse preso por turcos ou mouros “lhe fariam muito mal se o tomassem e mais não sendo sua vontade senão casar e assentar sua terra e servir a Deus”. Misericordiosos, revogam a perpetuidade do castigo, libertando-o com o recado: “Que se case e não torne a pecar.”Uma quase paráfrase do dogma paulino: “Melhor se casar do que se abrasar!”
3. Cristãos bardaxos na Berbéria
“Terra do mau pecado” era como os inquisidores se referiam à Berbéria, refletindo o imaginário homofóbico e a xenofobia dominantes na cristandade, desde a Idade Média,mas,sobretudo, durante a Reconquista e nos tempos modernos. A mais de um réu, os Inquisidores questionaram os réusse sentiam bem da lei dos mouros por darem liberdade para pecar no pecado da sodomia.
Viajantes europeus, como o inglês Joseph Pitts, que viveu quinze anos como cativo em Argel nos meados do século XVII, confirmaram a sôfrega visibilidade do homoerotismo no mundo islâmico: “o horrível pecado de sodomia está tão longe de ser punido entre os árabes, que faz parte de seu discurso ordinário e se vangloriam dessa detestável ação. É tão comum para um homem de Alger estar apaixonado por um rapaz, como na Inglaterra estar apaixonado por uma mulher.” (49) Também o escritor francês C.S. Sonnini, que visitou o Egito em 1777, declarou que “a paixão contra natureza, este inconcebível apetite que desonrou os gregos e persas na antiguidade, constitui o deleite e a infâmia dos egípcios. Não é para as mulheres que escrevem seus versos amorosos nem dirigem suas carícias lascívias: é outro o objeto distante que os inflama.” (50) GREENBERG (1990), ao analisar comparativamente a presença dos amores unissexuais no mundo antigo, conclui que a homossexualidade masculina foi “profunda e altamente visível” entre os árabes e no mundo islâmico (51) e BOSWELL (1980) lembra que a língua árabe possui vasta terminologia erótica, com uma dezena de palavras só para descrever prostitutos masculinos.” (52) Entre tais termos homoeróticos, vale destacar o étimo “bardaxo”, citado quando menos em cinco processos de renegados do século XVI do Marrocos e Argélia, conforme veremos mais adiante, comprovando a amplidão de seu uso não só no mundo mediterrâneo, como no Novo Mundo. Segundo DYNES (1985:20) e COUROUVE (1985), bardaxo provem da língua persa, bardag, significando originalmente “jovem escravo passivo sexual”, divulgado no mediterrâneo através do árabe vulgar, bardaj: جَُدرْبلاَ, “cativo, capturado”, grafado bardaxo-bardacho em português, bardaje/bardaxe em espanhol, bardasse/bardascia em italiano, berdache/bardache/bredache/bredaixe em francês e bardashe em inglês. Salvo erro, data de 1537 a primeira vez que “bredaiche” é grafado em francês, citado na década seguinte por Rabelais “bredache” (1548) e curiosamente já em 1575 escrito pelo missionário francês André Thevet, “bardache”, para se referir aos índios Tupinambá do Brasil praticantes do abominável pecado de sodomia. (53)
Foi notadamente a partir da conquista da Praça de Ceuta no Marrocos, em 1415 (54), que os portugueses depararam-se com a chocante presença de amantes do mesmo sexo por toda a Berbéria, tanto nos estamentos populares, nos banhos públicos, como dentro das mansões. Aliás, cenário assaz semelhante ao que existiu por séculos na Andaluzia e demais reinos cristãos dominados pelos sarracenos. (55)
Na documentação inquisitorial, tanto em Portugal, quanto na Espanha e Itália, há centenas de processos de católicos “renegados”, a quem Bartolomé Bennassar chamou de “Cristãos de Alá” (56), alguns, além de converterem-se sincera ou oportunisticamente ao maometanismo, adotaram trajes, costumes e práticas sexuais islâmicas, inclusive o “vício dos persas” ou “vício dos árabes”, expressões usadas pelos cristãos desde a idade Média para se referir ao “pecado cujo nome não pode ser pronunciado”. (57) Tais renegados eram punidos como hereges por terem vilipendiado o sacramento do batismo, arrenegando a verdadeira religião ao adotarem a doutrina e as cerimônias do Corão. Ao serem presos pelo Tribunal do Santo Ofício, muitos deles já tinham sido denunciados, alguns confessando ter praticado o mau pecado na terra dos infiéis.
A partir dos relatos destes apóstatas, nota-se a existência de quando menos duas categorias de homoeróticos na Berbéria: cristãos livres ou cativos que espontaneamente mantinham relações sexuais com nativos do mundo islâmico e cativos cristãos que eram usados sexualmente por seus senhores como faziam costumeiramente com os bardaxos nativos. (58)
Localizamos na Torre do Tombo nove notícias sobre renegados homoeróticos, entre 1557-1657, sendo cinco no século XVI e quatro no XVII, incluindo sete portugueses, um francês e um catalão. Além destes, dispomos de mais oito indicações de renegados “bardajas” e “putos” processados pelos Tribunais do Santo Ofício de Múrcia, Maiorca e Sardenha entre 1576-1678, incluindo dois espanhóis, dois portugueses e um grego, sardo, maltês e corso.
Semelhantemente aos mouros presos em Portugal por sodomia, também estes renegados estavam na flor da idade, entre 21-33 anos, quando se envolveram com práticas sodômicas, notadamente em Argel, Tanger e Fez, mas também nas distantes franjas do mundo islâmico, como ocorreu com Pedro Medina (59), 30 anos, preso nos Estaus do Santo Ofício de Lisboa em 1657, filho de pai português, nascido no México. Como soldado navegou por distantes reinos então pertencentes às coroas de Portugal e Espanha, em todas estas terras mantendo relações homoeróticas, sendo islamitas alguns de seus parceiros: “na vila de Mogor, na Pérsia”, no Ceilão, em Malaca, nas Filipinas, em Jacatará na Índia. Foi na Pérsia que negou a fé em Cristo. Preso pelos holandeses no Ceilão há dois anos, tentou fugir com os portugueses, mas foi pego e acantonado por seis meses num navio sem descer à terra, praticando então quinze atos de sodomia.
Também marinheiro, o catalão Salvador (60), 25 anos, natural de Mosteros, termo de Barcelona, processado em 1557, disse que foi capturado pelos mouros em Cartagena, convertendo-se à religião dos turcos, observando seus jejuns e preces, chegando a perseguir e açoitar os cristãos cativos. Acusou-se de ter praticado o “mao pecado, sendo paciente”. Como em outras confissões quejandas, os Inquisidores fizeram ouvido mouco deste desvio libidinoso, constando em sua sentença apenas o crime de heresia e apostasia, nenhuma referência à sodomia.
No Reino de Fez, consta que havia um mulato “que por nome de cristão se chama Clemente e por nome de mouro Cara Mustafa, que cometia o pecado de sodomia com um judeu moço de 18 anos, chamado Jacob, que era usado como mulher no pecado contra natura”. (61) Também o mercador Gonçalo Pires (62), cristão novo, natural de Ponte do Lima, 23 anos, cujos pais eram “judeus em Selanique, Judéia de Turquia”, donde ele fugiu para Roma e de lá para Lisboa, confessou que na Turquia manteve cinco cópulas sodomíticas, com turcos e judeus, ora agente, ora paciente, o mesmo repetindo em num banho em Roma, Veneza, São Tomé e na Bahia.
Dentre os cristãos que livremente mantinham relações sexuais com nativos do mundo árabe, Jorge Mendes Morato (63), 25 anos, natural de Estremoz, preso nos Cárceres do Santo Ofício em 1576, é o renegado de quem possuímos mais detalhes relativamente a suaspráticas homoeróticas. Declarou que quando rapazote de 14 anos foi para a cidade de Tanger, “de sua própria e livre vontade”, permanecendo por 15 anos nos reinos do Marrocos e Fez, onde “se deitou com os mouros de África e se apartou de nossa santa Fé católica, passando-se à maldita seita de Mafamede”, circuncidando-se, frequentando mesquitas, cumprindo todos os lavatórios rituais, orações e jejuns, pelejando contra os cristãos, lá chegando a casar-se duas vezes. Devido a sua valentia, recebeu o título de “Erche” (64), tornando-se um dos mais valorosos capitães, muito estimado do Xerife (65), que o cumulou de mercês e rendas, seguindo religiosamente a Lei de Mafoma. Por motivo ignorado, fugiu para Tanger levando consigo quatro cativos cristãos, retornando ao Reino de Portugal munido de elogiosa carta de apresentação do Governador do Marrocos, D. Duarte de Menezes e do Deão do Cabido local, que atesta sua reconciliação cristã e dos demais acompanhantes com a Igreja.
A despeito destas credenciais, foi encarcerado no Tribunal do Santo Ofício, suspeito de continuar cripto-muçulmano. Entre seus delatores, o mulato Antônio Esperança, igualmente retornado do Marrocos, informou que no tempo em que esteve em casa do Xerife e em poder seu Alcaide Morato, o mesmo “tinha dois moços bardaxos com os quais dormia por detrás e o sabe porque o dito Morato vinha por diante dele dormir com os ditos moços por detrás e tinham isto lá por galanteria e que isto é publico e notório e trazia sempre por atrás de si dois bardaxos a cavalo, e que disso pode saber o cocheiro que era seu criado e também Antonio Froes, por ser seu soldado e por ser esta a verdade.”
Outra testemunha João Cordeiro, é perguntado se “estando em Berbéria viu ou ouviu dizer que alguns Erches usassem de moços em lugar de mulheres e com eles fizessem o nefando pecado de sodomia e como se chamam os tais Erches e onde residem agora; respondeu que estando em Berbéria ouviu dizer que Jorge Mendes Morato, Erche, o qual reside agora nesta cidade de Lisboa, usava de moços como se fossem mulheres e que tinha em sua casa dois moços erches, um dos quais se chamava Amet, pelo nome dos mouros, de idade de 16 anos, e o outro se chamava Morato, de 20 anos, o qual morreu nesta guerra que teve o Maluco (sic) com o xerife e o outro Amet ficou ao tempo de sua jornada em casa do Maluco e com estes dois era público entre os Erches que usava Jorge Mendes deles como mulheres e que com eles cometia o pecado nefando de sodomia mas que ele, testemunha, sabe pelo ver que quando o dito Morato entrava na casa dos banhos pera se banhar, mandava algumas vezes a um destes e outras vezes, ambos, que lhe levassem à dita casa algumas cousas necessárias pera se banhar e que depois de os ter lá dentro, fechava a porta e ficava lá a sós e que não sabe se seria isto pera algum outro efeito mais que pera os ir ver nos banhos. E perguntado mais se depois de cada um destes moços saírem da dita casa lhe fizeram a ele testemunha, queixume, ou ouviu dizer que se queixassem à alguma outra pessoa de se cometer com eles o pecado de sodomia, disse que nunca os dois moços lhe fizeram e ele queixume do mesmo”.
O antigo Erche Morato tentou desqualificar tais acusações, alegando que o xerife o escolhera para cuidar de suas duas mulheres, filhas e moços bardaxos “por ser casto e se tivesse praticado sodomia, teria sido morto pelo xerife”. Posteriormente, contudo, assume “que todos os renegados têm por costume em lugar de mulheres, terem moços para suas sensualidades com os quais cometem o pecado de sodomia e que disto se gabam”. Acrescenta que seu denunciante Antônio Esperança também se gabava, mas ele réu “se gabava só para os mouros não cuidarem que ele era cristão, mas não cometia-o e que o xerife lhes encarregava todos os moços por ter confiança nele e aborrecer muito todas as pessoas que o cometiam, daí entregar-lhe todos os moços e mulheres para que cuidasse.” Desculpa difícil de acreditar, convenhamos.
A documentação inquisitorial sugere a existência de uma segunda categoria de homopraticantes na Berbéria: cativos cristãos que eram usados sexualmente por seus senhores como faziam costumeiramente com os bardaxos nativos. Diversos renegados afirmaram categoricamente terem sido vítimas do abuso sexual de seus proprietários muçulmanos. Francisco Francês (66), 25 anos, preso em 1558, natural do Languedoc, capturado pelos turcos aos 12 anos num campo de Marselha e levado para Argel, onde por três anos seguiu os preceitos de Mafoma, assegurando porém que “nunca teve coração de mouro”. Servia de lavadeiro na galé de seu senhor, o qual “o usava no mau pecado”, até ser resgatado nas costas dos Algarves. Francisco Freitas, cativo em Argel em 1619, diz que seu amo, o turco Mustafá o sodomizou durante os oito meses de seu cativeiro,“consentindo por ser seu cativo” (67). Juan Carbonell, 33 anos, natural de Palma de Maiorca, residente em Alexandria, preso em 1644 no Tribunal do Santo Ofício desta ilha, “cometeu o pecado contra natura com seu senhor ao mesmo tempo como agente epaciente.” (68) Neste caso parece que houve certa cumplicidade do cativo cristão, pois ser ativo na cópula anal implica em consentimento no ato venéreo.
Dois renegados se auto-nomearam “bardaje”: Antonio Vello, português de 22 anos, capturado quando tinha 15 anos, renegado que vestia roupas de turco, processado pela Inquisição de Múrcia em 1587, disse que foi “bardaje de seu senhor” (69), assim como Clemente Saura, aragonês da Maiorca, réu da Inquisição da Sardenha (1585), “serviu de bardajo a seu senhor durante quatro anos” até que fugiu e foi se reconciliar na Córsega. (70)
Somente um, dentre esta quinzena de renegados disse não ter consentido e reagido contra o assédio homoerótico de seu dono: Valério Alum, natural da ilha de Malta, 35 anos, preso pelo Tribunal da Sardenha em 1670, quando ainda era escravo, seu dono, Ali Mustafá quis faze-lo “puto e usar dele pela traseira” e por resistir, foi amarrado a um cepo.” (71)
É trágica a história de Manoel Ribeiro (72), reunindo numa só personagem, ter sido abusado por seu senhor, mas também ser useiro em nefandar com rapazes mouros: 22 anos, “de baixa estatura, olho azul, claro, cabelo castanho”, é denunciado que lá pelos idos de 1647, “andava amigado com um turco de quem era escravo e usava dele como sua mulher”. Foi, contudo, largado pelo amo, que o mandou ganhar pela cidade o seu jornal enquanto não se resgatasse. Era infamado de ser “sodomita agente com rapazes mouros, e outros cristãos cativos se enfezaram do escândalo que dava de nossa nação e religião e por o verem deitado com um mouro, o amarraram, dando-lhe muitas pancadas e o afrontaram com imundícies dizendo injuriosas palavras contra seu vício e pecado”. Revoltado com tantos insultos e violência, o jovem sodomita é mais um a renegar sua fé em Cristo, dizendo as palavras de praxe dos que aceitam a lei de Mofamede. A infeliz mãe do réu, igualmente cativa com mais sete filhos, sabendo desse seu desatino, declarou sem efeito o resgate e seu patrão ex-amante deu muita pancada no galeguinho, quebrando-lhe um braço, dizendo que devia ter renegado em praça pública entre mouros e não entre cristãos, metendo-o na cadeia para que se tornasse cristão, mandando-o para Tetuão. Consta ter ficado aleijado, mas dando sinais de cristão praticante, trazendo o cabelo comprido e dizendo desejoso de ir para terra de cristãos. Era bissexual, posto que se amigara com mouras e “fizera o costume dos mouros galantes e namorados, dando um corte em seu braço esquerdo na frente de uma enamorada e derramando o sangue no vinho o bebera, fazendo demonstração de seu amor”, repetindo esse gesto algumas vezes, “cortando do pulso até o lombo, sendo visto repetir as mesmas feridas seis ou sete vezes.” Não obstante tais gestos de galanteria, seu denunciante fornece-nos curiosa estimativa: “mais de 2 ou 3 mil cativos sabiam de sua fama de sodomita.” Outras testemunhas asseveram que Manoel Ribeiro cometia o nefando com mouros, turcos e com um cativo napolitano, sendo muito amigo dos mouros, comendo e bebendo com eles, sendo tratado com largueza pelo seu patrão amante. Carregava esta mesma má fama outro cativo português, “João Batista que arrenegou a fé e vestia-se de mouro, e hoje tornou-se carmelita no Maranhão após confessar-se na Inquisição”.
Estoutro episódio, tão insólito quanto o anterior, confirma que Gaspar Barreto (73), devia ser tão encantador, que se tornou “mignon” de dois potentados marroquinos da dinastia Saadiana. Era nativo de Marzagão e morador em Betlem, confessando em 1630 que há 35 anos passados, na cidade de Marrocos, “foi cativo do xerife Muley Abet-el-Medeo, que quer dizer Anjo de Deus, o qual o mandou chamar à sua câmara e de ilharga o xerife lhe meteu o membro viril no traseiro e seminou, obrigando-o depois a se porsobre o xerife, mas não derramou semente nem se lhe levantou a natura”, repetindo o nefando ato por seis vezes. Morrendo seu dono, sucedeu-lhe o irmão, Muley Amet e “deitando-o numa alcatifa e despindo-lhe por força os calções, de bruços,” o sodomizou. Disse mais que o Alcaide do Marrocos, o português arrenegado, Roduão, também o penetrou à força, igualmente usando dele na estrebaria de seu senhor. Acrescentou que manteve relação com uma burra, uma ovelha e com sete burras carregadas de comida do xerife.
Três destes sodomitas portugueses declararam ter sido soldados na histórica armada de Dom Sebastião, sendo capturados pelos marroquinos após a trágica derrota e desaparecimento del rei em Alcacer Quibir, em 1578: Bartolomé Corro (74), natural de Santarém, processado pelo Tribunal de Murcia em 1588, esteve cinco anos engajado como soldado, e aos 20 foi feito cativo; Antonio Vello, originário de Cascais, tinha apenas 10 anos quando alistou-se na armada sebastianista, sendo capturado aos 13, igualmente processado pela Inquisição de Múrcia, inculpado, além de praticar a religião de Maomé, de ter sido “bardaje de seus senhores”. O terceiro participante da batalha de Alcacer Quibir denunciado por sodomia remete-nos a um colono do Brasil, confirmando a fantástica mobilidade transcontinental destes portugueses quinhentistas, numa época em que a travessia do Atlântico levava de dois a três meses, dependendo das moções e calmarias. Gaspar Róis (75), “homem baixo do corpo e magro”, nascido em Torres Novas, tinha 30 anos quando em 1591 foi denunciado ao Visitador do Santo Ofício em Salvador: um negro da Guiné, Matias, 18 anos, disse que “dormira com ele por detrás à força e o amarrava para tanto”. A história deste jovem do médio Tejo é rocambolesca: quando tinha por volta de 17 anos, engajou-se como “fiel” na armada portuguesa de D.Sebastião e após sua derrota nas areias do deserto, foi capturado pelos mouros e vendido para remar nas galés dos Turcos de Argel, navegando pelos mares de Constantinopla e Grécia. Passados quatro anos, “per si adquiriu cento e tantos escudos espanhóis de ouro, com que se resgatou e se tornou para Portugal, depois tornou à Ilha Terceira na armada do Marquês de Santa Cruz, daí vindo para o Brasil”, pelo ano de 1586. Em Salvador estabeleceu-se como feitor na propriedade de Manuel de Mello, irmão do Cônego Bartolomeu de Vasconcelos, seu denunciante, tendo recentemente se retirado primeiro para a recém-conquistadaouvidoria de Sergipe Del Rey, encontrando-seentão na Cidade de Cuzco, no Vice-Reino do Peru, quando do início da Visita Inquisitorial na Bahia. Um incansável globetrotter! Consta que por causa do nefando episódio com o negro guiné, foram feitos autos de denúncia contra ele, o qual, astutamente, pagou dez cruzados para o escrivão para queimar os autos,deixando-se por conseguinte de se proceder contra o delato. Dentre seus oito acusantes, o relato do Padre Baltazar Lopes, 35 anos, é-nos particularmente interessante: “ouvia dizer que estando cativo em terras de mouros, Gaspar Róis usava no dito pecado de sodomia e trazia os cabelos do toutiço depenado”.
Certamente fora algum outro remanescente da fatídica armada real, seu parceiro de infortúnio, quem espalhara pelo Novo Mundo detalhe tão comprometedor: que antes do suposto assédio sodomítico ao negro na Bahia, o feitor Gaspar Róisjá “usava no dito pecado de sodomia”, acrescentando detalhe etnográfico revelador: “trazia os cabelos do toutiço depenado”. Toutiço é termo antigo pouco usado no Brasil e refere-se “a parte traseira e inferior da cabeça, nuca”. Depenado significa, tirar penas ou arrancar pelos ou cabelos. Investigando imagens de homens com cabelos cortados na nuca, deparamo-nos com fantástica gravura dos finais do século XVIII onde se vê um massagista de um banho turco com a parte inferior da cabeça depenada. Consta que tais jovens “rotineiramente prestavam serviços sexuais”. (76) Seria tal corte de cabelo um sinal diacrítico identificador dos berdaxos, como que simbolizando sua passividade quando deitados com a nuca à vista para os homens que os cavalgavam pela traseira? Ainda hoje no Brasil contemporâneo, usam-se as expressões “comer carne de pescoço”, ou “fungar no cangote” para se referir à posição assumida pelo “agente”, deitando-se sobre as costas do “paciente”, como diziam os Inquisidores. Localizamos outro documento onde novamente raspar os pelos parece fazer parte dos fetiches exercitados pelos homoeróticos de cultura islâmica: o já citado João Antônio, 18 anos, criado de um nobre em Lisboa, preso em 1552, “que foi turco”, confessou perante o Santo Ofício ter mantido uma dezena de encontros homoeróticos com estrangeiros, mouros e portugueses, e que certa feita “se rapara diante de um moço em suas partes desonestas e o mesmo fizera ao dito moço”. Em aproximadamente 600 processos de sodomia, envolvendo mais de cinco mil “cúmplices”, foram estas as únicas duas vezes que encontramos referência a depenar o toutiço ou rapar as partes desonestas, em ambas, envolvendo homoeróticos ligados ao Islão. Uma pista a ser aprofundada pelos estudiosos do mundo islâmico e da homossexualidade.

 Luiz Mott é docente da Universidade Federal da Bahia (Brasil)
1 MARQUES, A. H. de Oliveira. “A persistência do elemento muçulmano na história de Portugal após a Reconquista: o exemplo da cidade de Lisboa”, in Novos ensaios de história medieval portuguesa, Lisboa, Presença, 1988.
2 Nem BLUTEAU (1728), nem MORAES (1789) fazem distinção entre mouro e mourisco, embora certos autores identifiquem mouriscos como mouros batizados. BLUTTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Lisboa/Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 10 vols., 1712-1728; SILVA, António de Moraes. Diccionário da Língua Portuguesa. 2ª ed. Lisboa, Typographia Lacérdina, 1813, v.
3 “Cristãos e Muçulmanos em Portugal”, Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia, http://blog.lusofonias.net/?p=1001; RIBAS, Rogério de Oliveira. Ser Mourisco em Portugal durante o Século XVI. Anais do XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ, 2006; ORTIZ, Antonio Domínguez & VINCENT, Bernard. Historia de los moriscos, Madrid, Alianza Editorial, 1978.
4 M. VIEGAS GUERREIRO, « Mouro », inJ. SERRÃO, dir., Dicionário de história de Portugal, Lisboa, s. d.
5 BOUCHARB, Ahmed. Les Crypto-Musulmans d’origine marocaine et la société portugaise au XVIe siècle.Thèse du Doctorat d’Etat ès-Lettres. Montpellier, 3 vols., 1987; BRAGA, Isabel M. R. Drumond.
“Mouriscos e cristãos no Portugal quinhentista, duas culturas e duas concepções religiosas em choque”,
Lisboa, Hugin,1999; RIBAS, Rogério de Oliveira. Filhos de Mafoma: mouriscos, cripto-islamismo e Inquisição no Portugal Tese de doutorado. Lisboa, Vol. I e II, 2004.
6 CYSNEIROS, Marcus Vinícius de Macedo. “A Questão Mourisca”. Em Tempo de Histórias - Publicação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília PPG-HIS, nº. 17, Brasília, ago/dez. 2010; ECHEVARRIA, Ana. The Fortress of Faith.The Attitude towards Muslims in Fifteenth Century Spain, Leiden, Brill, 1999.
7 Agradeço ao Prof. Bartolomé Bennassar, da Université de Toulouse, a generosa indicação destes documentos. (1987)
8 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição Évora, Processo 8056, 1580, (doravante ANTT).
9 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 2033.
10 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 3208.
11 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 6018. Sobre o Colégio dos Catecúmenos de Lisboa, cf. TAVIM, José Alberto R. Silva. “Educating the Infidels within:Some Remarks on the College of the Catechumen of
12 D. Sebastião “Rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar em África, Senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia etc...”, ao promulgar a “Lei sobre o pecado nefando de sodomia”, sugeria claramente que esses maus costumes presenciados no Reino teriam vindo do além-mar: "Vendo eu como de algum tempo a esta parte foram algumas pessoas de meus reinos e senhorios culpadas no pecado nefando, de que eu recebi grande sentimento pela graveza de pecado tão abominável e de que meus reinos pela bondade de Deus tanto tempo estiveram limpos..." Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Livro 2º da Chancela”ia (1571)
13 MOTT, Luiz. "Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais”. Ciência e Cultura, SBPC, v. 40, p. 120-139, fev. 1980; BUNES IBARRA, Miguel Angel de. La imagen de los musulmanes y del Norte de Africa en la España de los siglos XVI y XVII: los caracteres de una hostilidad. Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1989; Los moriscos en el pensamiento histórico: historiografia de un grupo marginado. Madrid. Cátedra, 1983.
14 São  Pelágio,  Martir:  http://editorasantuario.com.br/santo-do-dia/06/26;  COOPE,Jessica.  Martyrs  of Cordoba: Community and Family Conflict in an Age of Mass Conversion.Lincoln, University of Nebraska Press, 1995; JORDAN, Mark D.The Invention of Sodomy in Christian Theology, Chicago, 1997; KOLVE, V. A. "Ganymede/Son of Getron: Medieval Monasticism and the Drama of Same-Sex Desire". inSpeculum, Vol. 73, No. 4 (Oct., 1998), pp. 1014-67;HUTCHEON, Greg. "The Sodomitic Moor: Queerness in the Narrative of the Reconquista" in Glen Burger and Stephen Kruger (eds.) Queering the Middle Ages: Minneapolis: University of Minnesota Press, 2001.
15 WAILES, Stephen L. Spirituality and Politics in the Works of Hrotsvit of Gandersheim, Rosemont Publ. &Print.Corp., 2006; WOLF,Kenneth. Christian Martyrs in Muslim Spain. Cambridge: Cambridge University Press: 1988.
16 WAFFER,Jim “Muhammad and Male Homosexuality”, in MURRAY, Stephen O. &ROSCOE, Will. Islamic Homosexualities: Culture, History, and Literature. NYU Press,1997, pp. 87-96.
17 SCHMITT,  Arno  &  SOFER,  Jehoeda,  editors.Sexuality  and  Eroticism  among  Males  in  Moslem Societies. New York, Haworth Press, 1992; MURRAY, Stephen O. &ROSCOE, Will.IslamicHomosexualities: Culture, History, and Literature. NYU Press,1997; EL ROUAHEB, Khaled. Before Homosexuality in the Arab Slamic World, 1500-1800.The University of Chicago Press, 2005; KUGLE, Scott Alan.Homosexuality in Islam: Critical Reflection on Gay, Lesbian, and Transgender Muslims. Oneworld Publications, 2010.
18 PAIS, Álvaro. Colírio da Fé contra os Hereges (1348). Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 19 54/1956, tradução de Miguel Pinto de Meneses
19 ANTT, Inquisição Évora, Proc. 8056.
20 MOTT, Luiz. “Os filhos da dissidência: o pecado da sodomia e sua nefanda matéria”. Revista Tempo, Universidade Federal Fluminense, vol.6, n. 11, Julho 2001:189-20.
21 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 4170. Agradeço ao Dr. Ahmed Boucharb, da Faculté des Lettres Fès, a indicação deste documento. (1983)
22 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 6614; Proc. 4030.
23 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 9677
24ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 6636
25 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 10469
26 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 1728
27 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 1617
28 ANTT, 14º Caderno do Nefando, 143-6-39, fl. 160.
29 Sobre a importância das estrebarias como local de encontro de mouriscos em Lisboa, inclusive como espaço para celebrações religiosas, cf. RIBAS, 2004.
30 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 3592.
31 ANTT, Manuscritos da Livraria, nº 1238.
32 ANTT, 15º Caderno do Nefando, 143-6-40, fl. 4.
33ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 10469.
34 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 6636.
35 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 10872.
36 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 1600.
37Sobre a antiguidade e propriedade do termo gay para descrever os homoeróticos de outras eras, cf.
BOSWELL (1989) e MOTT (1980).
38“Polução”, nalguns processos de sodomia significava ejaculação, mas também sinônimo de “punhetas” ou “fazer as sacanas”, i.e., masturbação individual ou recíproca.
39 “Conhecer” aqui usado no sentido de consumar, cumprir, ejacular. Detalhe fundamental no casuísmo inquisitorial, pois somente a ejaculação intra-vas, dentro do vaso traseiro, se configurava como crime de sodomia perfeita. JOHNSON, Harold B. & DUTRA, Francis A.Pelovasotraseiro: sodomy and sodomites in Luso-Brazilian history. Fenestra Books, 2007.
40 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 12108.
41 Também em Espanha, em Cox, 1587, há o relato de um mourisco jovem que foi sodomizado por nove homens da mesma nação. CARRASCO, Rafael. Inquisición y represión sexual en Valencia. Historia de lossodomitas (1565-1785). Barcelona, 1985, Editorial Laertes.
42 ANTT, Inquisição Évora, Proc. 8874.
43 ANTT, Inquisição Évora, Proc. 8056. “Dar de carregar” certamente é um modismo relacionado à copula anal ativa.
44 ANTT, Inquisição de Lisboa, 20º Caderno do Nefando, 149-7-698, fl. 257
45 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 312.
46 MENDONÇA, José Lourenço & MOREIRA, Antonio Joaquim. História dos principais actos e procedimentos da Inquisição em Portugal. Lisboa, Imprensa Nacional, 1980
47 BARRETO, J.A.Graça. Monstruosidades do tempo e da fortuna: Diario de factos mais interessantes que succederam no reino de 1662 a 1680, até hoje. Lisboa,Tipografia Viúva Sousa Neves, 1888:316.
48 ANTT, Inquisição de Lisboa, Proc. 1728.
49 LONGMAN, Joseph Pitts. A Faithful Account of the Religion and Manners of the Mahometans (1738) apudKHALED, op.cit. 2005:3.
50 SONNINI,C.S. Travels to Upper and Lower Egypt, 1799, apudKHALED, op.cit.2005:3.
51GREENBERG, David F. The Construction of Homosexuality. Chicago, University of Chicago Press, 1990:175.
52 BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality.Gay People in Western Europe from the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth.Chicago UniversityPress, Chicago, 1980:195.
53 COUROUVE, Claude. Vocabulaire de l’homosexualité masculine. Paris, Payot, 1985:59. A partir dos meados do século XIX “berdache” tornou-se conceito amplamente divulgado pelos antropólogos para descrever sobretudo aos transexuais nativos da América do Norte.
54 ROSENBERGER, Bernard. “Le Portugal et l’Islam maghrebin: XVe - XVIe siècles”, in Histoire du Portugal, Histoire Européenne, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, vol. II, 1987, pp. 57-83; “Mouriscos et elches - conversions au Maroc au début du XIVe. Siècle “, in: Relaciones de la Península Ibérica con el Magreb siglos XIII-XVI: actas del coloquio (Madrid, 1987). GARCÍA-ARENAL, Mercedes & VIGUERA, María J. (eds.) Madrid, 1988.
55 BLACKMORE, Josiah & HUTHCESON, Gregory S. Queer Iberia: Sexualities, Cultures and Crossings from the Middle Ages to the Renaissance.DukeUniversityPress, Durham, 1999.
56 BENNASSAR B., BENNASSAR L. Les Chrétiens d'Allah: L'histoire extraordinaire des renégats. Perrin, 1989; PIERONI,Geraldo. “Renegados e excluídos: cristãos islamizados perseguidos pela Inquisição portuguesa”. ANPUH, Anais do XXII Simpósio Nacional de História, Londrina, 2005.
57 Para a monja alemã Roswitha de Gandersheim (935-975), autora da citada biografia sobre o mártir São Paio de Córdoba, a sodomia era vício próprio dos sarracenos, o qual os verdadeiros cristãos deviam evitar”. BOSWELL, op.cit., 1980:200.
58 “Sodomisar seus escravos ou um cristão era sancionado pela opinião pública no mundo islâmico, assim como por certos juristas, baseando-se na sutra IX,120 do Corão”. SCHMITT & SOFER, op.cit.,1992:3.
59ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 3710.
60ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 13192.
61ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 6465 e 6465-1.
62ANTT, Inquisição Lisboa nº 4307.
63ANTT, Inquisição Lisboa nº 6465; 6465-1.
64 Para os citados dicionaristas BLUTEAU e MORAES “elche é o cristão que se fez mouro e que passando para a lei de Mafoma, é trânsfuga da Sagrada milícia de Cristo.” Segundo MAÍLLO SALGADO “elche provem do árabe, sinônimo de bárbaro, não árabe, não muçulmano. Os elches desempenharam postos importantes, como artilheiros dos exércitos norteafricanos, alcançando alguns o posto de notáveis, capitães e grandes homens.” MAÍLLO SALGADO, Felipe. Vocabulario de Historia Árabe e Islámica. Madrid, Ediciones Akal. 1997.
65 FARINHA, António Dias. “Os xarifes de Marrocos: notas sobre a expansão portuguesa no Norte de África”, in Estudos de História de Portugal, Lisboa, Estampa, vol. II, 1983:59-68.
66 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 9682.
67ANTT, 5º Caderno do Nefando, 143-6-32, fl. 399.
68Arquivo Histórico Nacional, Madrid, Sección Inquisición, Mallorca, Lib.864, fol.62 v. (1664).
69Arquivo Histórico Nacional, Madrid, Sección Inquisición, Murcia, Leg.2022, Exp.19 (1587).
70Arquivo Histórico Nacional, Madrid, Sección Inquisición, Cerdeña, Lib. 782, fol.381 (1585).
71Arquivo Histórico Nacional, Madrid, Sección Inquisición, Cerdeña, Lib. 783, fol.330 (1670).
72 ANTT, 12º Caderno do Nefando, 143-6-37, fl. 158.
73 ANTT, 5º Caderno do Nefando, 143-6-32, fl. 180.
74Arquivo Histórico Nacional, Madrid, Sección Inquisición, Murcia, Leg.2022, Exp.20 (1588).
75 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 11061; MOTT, Luiz.Homossexuais da Bahia. Dicionário Biográfico: Século XVI-XIX. Salvador:EditoraGrupo Gay da Bahia, 1999.
76 “Masseur at the hamanbaths, tellaak, scrubber with massage mitt. Illustration from the Hubanname (The Book of the Handsome Ones &ÇenginameBook on Cross-dressed Male Dancers), an 18th century homoerotic work by the Turkish poet FAZYL BIN TAHIR ENDERUNI (1759-1810).http://www.gay-art-history.org/gay-history/gay-art/turkey-gay-art/hubanname-gay/scrubberA.html; PARLAK, Fatih.On Syphilis in the Ottoman Empire and Turkish History Writing. Thesis (M.A.), Eastern Mediterranean University, Institute of Graduate Studies and Research, Dept. of Arts, Humanities & Social Sciences, Famagusta, North Cyprus, 2012.
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Foto: "Audição perante a Inquisição", do pintor mexicano Constantino Escalante