segunda-feira, 18 de março de 2019

O ANEL DO NIBELUNGO



Os Nibelungos, esses anões habitantes das profundezas da terra, são o tema de uma velha lenda medieval germânica e escandinava, que os coloca na região da Borgonha, próximo de Worms.

A estória tem sido abordada ao longo do tempo na literatura e mesmo no cinema, e proporcionou a Richard Wagner a composição de quatro óperas famosas, um conjunto que é hoje considerado uma das obras-primas musicais do século XIX.

Vem o presente texto a propósito de um livro que adquiri em 1985 (alguns meses após a sua publicação em 1984) e que, por caprichos do destino, permanecera por ler, até hoje, na minha biblioteca: La Chanson des Nibelungen, de Claude Mettra. Li-o agora, pelo facto de ter visto nos últimos dias mais uma gravação DVD de O Anel, desta vez a produção de Valência, dirigida por Zubin Mehta e encenada por La Furia dels Baus, que comprei na liquidação de uma loja, e que se acrescentou às outras gravações que possuo da Tetralogia wagneriana.

A saga reconstituída por Claude Mettra, baseada nas várias descrições da lenda e a que não faltou alguma fantasia pessoal, não coincide em absoluto com o argumento que o próprio Wagner escreveu para utilizar nas suas óperas, mas segue muito de perto a acção sequencial de O Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O Crepúsculo dos Deuses.

Começa pela evocação das sete Ondinas, as Filhas do Reno, e dos Nibelungos, esses seres saídos das entranhas da terra, de que Albéric é o chefe. Elas guardam o ouro do Reno, que poderá servir para forjar um anel que dará ao seu possuidor poder sobre todas as coisas, mas igualmente um destino funesto. Além de que nunca conhecerá o amor. É, aliás, o Amor, o leitmotiv de toda esta estória. Com um estratagema, Albéric apodera-se do ouro, para grande desgosto das Ondinas.

Surge depois Odin, o "pai" dos deuses, e sua esposa Fricka. Claro que Odin é o Wotan wagneriano. As três Nornas tecem o destino dos homens junto ao freixo da sabedoria, ao lado do qual está a fonte do conhecimento. Para beber a água da fonte, as Nornas exigem a Odin um dos seus olhos, ao que ele acede. Depois, arrancando um dos ramos do freixo Yggdrasil, repositório da sabedoria, faz dele uma lança.

É a vez dos gigantes Fafner e Otr pretenderem Freia, a irmã de Fricka, como paga de terem construído o Walhalla, a sumptuosa habitação dos deuses. Mas Fricka exige a Odin que altere o mercado estabelecido com os gigantes, pois está disposta a impedir a entrega da irmã. Até porque esta cuida do jardim das maçãs de ouro,  que só ela pode colher, as quais renovam indefinidamente a juventude e mantêm vivos os deuses.

Loge, o velho guardião do fogo, sabe donde vêm os gigantes e sugere a Odin uma artimanha. Dirigem-se ambos à forja onde Mime (o irmão de Albéric) está a fabricar o anel e o elmo que permite a quem o usar assumir a forma que entender. Odin convence Albéric a metamorfosear-se em sapo e consegue assim prendê-lo e levá-lo para o seu castelo. Exige também que os anões lhe tragam o ouro roubado às Filhas do Reno, ficando igualmente com o elmo e com o anel, instrumento de maldição.

Entretanto, regressam os gigantes, acompanhados de Freia. Pretendem ficar com ela, ou com o ouro que Odin lhes propôs. Debaixo da terra aparece uma mulher desconhecida (Erda, em Wagner) que insta Odin a entregar o anel aos gigantes, já que este acarreta desgraça. Otr apodera-se do anel e Fafner mata-o para lho tirar. Confirma-se a maldição.

Odin inicia um longo passeio por montes e vales e encontra uma Vidente que lhe prediz o futuro e o aconselha a encontrar uma mulher. Odin, prossegue a sua viagem, e admira-se com o amor existente nas casas dos humanos. Guiado por dois corvos (Hugine e Munine), chega ao pé de duas casas. Uma de aspecto miserável, a outra uma vasta mansão. Nesta, recorda-se de um sonho, da relação com uma jovem. Finalmente, regressa ao seu castelo. O autor tenta recolher neste capítulo todos os elementos da lenda. Vasto programa. Há zonas de penumbra como o aparecimento de Sieglinde e Siegmund (gémeos filhos de Odin) que deverão engendrar Siegfried [O incesto é uma paixão de Wagner]. Também obscuro o aparecimento de Brunehilde (igualmente filha de Odin, cuja mãe terá sido uma das criaturas da abóbada celeste que vigiam o movimento das estrelas cujos fluxos e impulsos marcam o ritmo dos destinos humanos), mencionada pela primeira vez na corte de Worms. Segundo as crónicas, esta filha de Odin estava encarregada de guiar as almas dos guerreiros mortos até ao seu último reino, e era pintada sob os traços de uma virgem temerária, movimentando-se sobre os campos de batalha e assistindo ao último suspiro dos soldados feridos. Numa etapa da genealogia, aparece o rei Woelsung, em cujo palácio permanecia a rainha que tivera dez filhos, os últimos dos quais, gémeos, Siegmund e Sieglinde, se amavam desde crianças. A rainha ocupava o seu tempo a ouvir os seus músicos, enquanto o rei andava quase sempre em guerras.

Siegmund e Sieglinde, que cresceram juntos, fogem do palácio por ocasião de uma epidemia de peste. Percorrem os campos. Sieglinde desaparece. Siegmund vai no seu encalço mas não consegue encontrá-la. Acaba por entrar numa habitação onde está reunida uma assembleia mas nenhum dos presentes sabe do seu paradeiro. A sala era construída em volta de um grande carvalho, sobre o qual repousava o telhado. Já de noite, surge um homem velho, cego de uma vista, com um chapéu negro na cabeça e os pés nus. Trazia consigo uma espada e sob o olhar fascinado dos homens e das mulheres, dirige-se à árvore e crava a espada no tronco nodoso do carvalho, dizendo simplesmente: "O que arrancar a espada desta árvore está destinado a grandes alegrias nos tempos futuros". Após o que se retira a passos lentos sem nada acrescentar. Todos os homens presentes tentam em vão retirar a espada. Chegada a vez de Siegmund, este arranca-a com a maior facilidade. Permanece ainda algum tempo com aquela gente, continuando depois a sua digressão em busca de Sieglinde. Finalmente encontra uma cabana onde está um casal. Não reconhece a mulher que, de noite, o conduz a outra cabana, abandonada, onde ela se dá a conhecer. E onde aproveitam a cumplicidade da noite. Ela conta-lhe que se perdeu e que acabou por encontrar Hunding que a obrigou a segui-lo. Entretanto, os irmãos são encontrados por Hunding. Siegmund puxa da espada mas a mulher diz-lhe que não é ainda "o tempo do sangue, pelo menos do nosso sangue". Partilham um salmão pescado por Hunding, que entretanto tivera um sonho. E este diz à mulher: "Sieglinde, na terceira lua, no dia do solstício, matarei este homem, foi o que o salmão me inspirou". Sieglinde responde-lhe que Siegmund é seu irmão, mas este desaparece na noite. Dias mais tarde Siegmund reaparece e Sieglinde prepara uma bebida (um filtro) que dá a beber a Hunding e que o mergulha no sono. No meio da noite, com a lua em toda a sua sumptuosidade, os irmãos acariciam-se. Estreitam os seus corpos e os seus sangues confundem-se. E abandonam-se à música profunda dos seus corpos. E assim se passou a longa noite de Verão.

Decorreram duas luas e os irmãos continuaram na floresta. No seu domínio imperial, Odin debate-se com o seu problema pessoal. O que está em causa é o seu sangue, a aliança de duas genealogias saídas da sua carne. Pacientemente, esforçou-se por afastar Hunding do caminho dos dois amantes, mas este enviou os seus homens a fim de que no dia do solstício pudesse enfrentar Siegmund. Na véspera do solstício, Odin regressa ao castelo, mais fatigado do que nunca. Espera-o Fricka, encarregada de velar pela ordem das coisas e pelas leis que regem a sociedade dos homens. No segredo do seu coração, ela jurou a perda de Siegmund e de Sieglinde, que violaram o pacto de sangue e engendraram uma vida interdita. Mais do que a sua cólera, ela receia que essa chama de vida conduza ao enfraquecimento e à aniquilação da vida de Odin e da sua, já que toda a existência se alimenta da destruição de uma outra existência. Exige então a Odin que, no combate, ele tome o partido de Hunding. O rei zarolho está mergulhado em grande angústia. Não só pelo desejo de Fricka mas porque esta lhe recordou todas as suas infidelidades conjugais. Odin dirige-se à floresta, onde há grande tumulto e pensa na sua filha bem-amada, Brunehilde, que repousa no seu leito virginal. É para lá que dirige os seus passos. Brunehilde não dorme, foi despertada pelos ruídos da noite. Odin conta-lhe a lamentável história de Siegmund e de Sieglinde e o grande desejo de vingança que habita em Hunding e Fricka. A virgem guerreira compreende que todos desejam a morte de Siegmund e que Odin pretende que ela seja cúmplice. E contesta veementemente a a vontade de Odin. Este desculpa-se, assegurando-lhe que nada mais lhe resta do que cumprir as ordens de Fricka. Brunehilde olha-o furiosa e diz-lhe que jamais tomará partido contra os dois amantes. Odin amaldiçoa-a e toda a claridade da noite desaparece e as estrelas morrem no vasto espaço celeste. 



Siegmund e Hunding encontram-se numa clareira, aparentemente sós. Mas Sieglinde, angustiada, está nas proximidades e Brunehilde contempla-o, do alto do seu cavalo. Hunding precipita-se sobre Siegmund que maneja habilmente a espada que lhe foi concedida por graça de Odin. Mas esta quebra-se contra a lança de Odin, que se interpôs entre os dois contendores. Então, Hunding enterra a sua espada no flanco de Siegmund.  Nesse momento, Odin, com um olhar terrível, diz a Hunding: "Sê maldito, tu que tornaste a terra vermelha com o sangue de um dos meus. Vai-te, vai dizer a Fricka que tudo se passou segundo a sua vontade". Mas, fulminado pelo olhar de Odin, Hunding, tremente, cai morto sobre o cadáver do seu inimigo.

Brunhilde desceu do seu cavalo e limpa as lágrimas de Sieglinde. Recomenda-lhe cuidado com o fruto que traz no seu ventre e diz-lhe que recolha os pedaços da espada quebrada de Siegmund, pois virá um artista mágico que lhe devolverá a glória. E empresta-lhe o seu próprio cavalo para que desapareça na floresta. Entretanto, ouvem-se vozes. São as Valquírias que vêm tomar conta das almas que a morte expulsou do corpo. Mas a voz de Fricka ressoa pelas terras. Furiosa, reclama o castigo de Brunhilde, porque encorajou Siegmund e semeou a perturbação no coração de Odin, que acabou por amaldiçoar Hunding. E também por aquela ter protegido a mulher culpada de se unir ao irmão contra as leis do céu e da terra. Perante a ira de Fricka, Odin vê-se obrigado a condenar também Brunehilde, a sua preferida. Assim, aplica a Brunehilde um castigo, que será também a sua salvação, pelo menos provisória. Ela repousará, adormecida, numa ilha longínqua, até que algum viajante lhe venha impor a sua lei e arrancar a virgindade que é a fonte da sua magia. [As Valquírias eram virgens guerreiras]. Brunehuilde contesta a decisão do pai, de ficar exposta a qualquer aventureiro. E pede-lhe para rodear o seu rochedo por uma muralha de chamas que só possa ser atravessada por um navegador bastante temerário para não ter medo de atravessá-la. Só assim reconhecerá nele um homem à sua medida e capaz de lhe conceder um amor tão violento e fecundo como o fogo de que nasceu o Sol.

E assim se fez.

Nas suas deambulações, Sieglinde encontra numa gruta um anão, Regin, irmão de Albéric. que roubara o ouro às Filhas do Reno e que vivia agora na solidão e na pobreza. Regin odiava o irmão, que, no tempo do seu esplendor, o obrigara a trabalhar com uma ferocidade só comparável à que empregava com os outros anões. Por isso, enquanto Albéric estava em disputa com Odin e Loge, deixara a grande caverna para viver a vida dos homens, tornando-se ferreiro de armas para reis e joias para rainhas. Quando Sieglinde deu à luz aquele que veio a chamar-se Siegfried, foi Regin que passou a cuidar dele. Já crescido, Siegfried pretendeu um cavalo e Regin mandou-o apoderar-se de um cavalo do rei. O rapaz ter-se-ia perdido no caminho, mas encontrou na viagem um homem velho e zarolho com um grande chapéu preto que se propôs acompanhá-lo e ajudá-lo a escolher o cavalo que mais lhe conviria. Siegfried chamou-lhe Grani e montou-o, ficando surpreendido que o cavalo se dirigisse sem hesitação para a caverna de Regin. Desinteressado do trabalho da forja, quando um dia regressava da floresta, onde ouvira o canto dos pássaros, Regin contou-lhe a história: como Odin e Loge entregaram aos gigantes o tesouro do Nibelungo, o anel de ouro e o elmo que confere a invisibilidade, como os dois irmãos gigantes se disputaram, e como Fafner, depois do fratricídio, se retirara para uma terra chamada Gniteheide e aí se transformara em dragão, repousando sobre um tesouro do qual ninguém alguma vez se havia aproximado.

Quer Siegfried, quer Regin passaram noites a pensar no dragão, e o anão alimentou a esperança de, com a ajuda de Siegfried, alcançar os seus propósitos. Regin levou longos dias a forjar uma espada mas como amava Siegfried e que no seu coração não desejava verdadeiramente que o rapaz afrontasse o monstro, trabalhou-a desajeitadamente, de forma que esta se quebrasse. Então, resolveu revelar-lhe um segredo. Mandou-o deslocar uma pedra ao fundo da gruta e estender o braço par encontrar ao fundo três formas metálicas. E disse-lhe: «Estes são os fragmentos da espada de teu pai Siegmund que se quebrou contra a lança de Odin, onde estão inscritas as runas contra as quais a vontade humana é impotente. Foi a tua mãe que os trouxe para aqui». E nessa noite, com os três fragmentos Regin forjou uma nova espada.

Depois, Regin convence Siegfried a atacarem Fafner (transformado em dragão), quando ele for beber a uma lagoa. Por detrás do rosto de Regin, Fafner apercebe-se do de Albéric, seu irmão e seu duplo. Fafner, vive fatigado do seu ouro, da sua vida de dragão, da maldição que pesa sobre si. Transformou-se em dragão porque acreditava que fossem oferecidas ao dragão, periodicamente,  jovens virgens de que ele faria esposas antes de as devorar. Mas nada disso aconteceu. Antes de atacar Siegfried, Fafner contemplou-se nas águas e constatou a sua fealdade. Depois dirigiu os olhos para Regin, que tentou fugir mas ficou petrificado. Fafner expeliu então fogo da sua boca e transformou Regin numa tocha. Depois, fê-lo voltear no ar e reduziu-o a cinzas. A seguir, voltou-se para Siegfried, que empunhava a sua nova espada, e disse-lhe: «Ó Siegfried, és portanto aquele que vai acabar comigo. Que centelha habita a tua espada para que ela me reduza a nada? Vamos bater-nos e talvez encontres o caminho que te assegurará uma nova vida. Mas se assim for, fica a saber que deverás regressar sem tocar no tesouro de que eu sou o guardião. Porque o anel e o elmo são fonte de maldição. É por causa deles que vem o assassínio, o sofrimento e a solidão sem limites. Desde que Albéric renunciou ao amor das filhas do Reno para se apoderar do ouro, tudo o que nasceu do ouro foi atingido pela abjecção e quem quer que negoceie com o anel ou com o elmo é rejeitado pelas terras do amor. O amor, não sei o que seja, nunca me foi concedido, mas sei que a sua ausência é o inferno.» Depois o dragão ergueu-se sobre as patas e dirigiu-se para Siegfried mas a lâmina da sua espada incendiava-o com os seus reflexos e Fafner foi possuído por violentas convulsões. Depois ergueu as patas no ar e Siegfried enterrou-lhe a espada no coração. Debruçou-se sobre o cadáver e extirpou-lhe o coração. A seguir, inteiramente nu, banhou o seu corpo no sangue de Fafner. E à medida que se lavava na humidade nascido do assassínio, sentia a pele endurecer como uma couraça. Ao mesmo tempo que as palavras dos pássaros se lhe tornaram intelegíveis. Não se apercebeu, todavia, que uma folha de tília trazida pelo vento se colocara entre os seus ombros, pelo que nesse sítio o sangue do dragão não colorira a sua carne.  E os pássaros disseram-lhe que no centro de uma ilha havia uma montanha e que no flanco da montanha estava um grande rochedo cercado de chamas. A quem atravessasse essas chamas estava prometido um grande destino. Era aí que repousava Brunehilde.

Siegfried empreende então a caminhada em busca de Brunehilde. Um cavalo negro anda vertiginosamente à volta do rochedo. Então, descobre a virgem, retira-lhe o capacete e o escudo, e acorda-a com um beijo. E passam juntos longos dias na clareira, guardados pelo cavalo. Mais tarde, junto a um lago, onde ambos se despem, nasce o amor. Brunehilde torna-se a mulher de Siegfried. Durante este período, muitas vezes Siegfried tentou meter o anel no dedo de Brunehilde, mas esta sempre o rejeitou, dizendo-lhe o seguinte: «Fica a saber que o anel de que és o depositário, depois de o teres arrancado a Fafner, não te trará qualquer felicidade a menos que tu mesmo sejas um dia capaz de o forjar novamente, com o amor no coração. Porque se o anel é perigoso, imprevisível, é porque Albéric o conquistou contra o amor.» Entretanto, Siegfried começa a sonhar com a barca que o esperava junto às dunas, a sonhar com a espada que repousava na floresta e com o elmo, instrumento do invisível. Surgiu-lhe o desejo de novas aventuras, e a própria Brunehilde o guiou em direcção ao mar. Nesta altura, Siegfried entrega o anel a Brunehilde.

Vai agora Siegfried navegando no Reno, num barco construído por Albéric e os seus anões, com o anel de ouro fixado à proa. Antes da sua chegada ao castelo de Worms, a rainha Houte mandou  chamar o seu poeta. Kriemhilde, a filha da rainha, tinha tido um estranho sonho e Houte pretendia que ele o interpretasse. O poeta respondeu-lhe: Kriemhilde apaixonar-se-ia em breve por um homem de nobreza mas dois seres cúmplices ameaçariam a sua felicidade. Mas o sonho da filha escondia uma preocupação da rainha. Tendo ficado viúva, os seus três filhos, Gunter, Gernot e Giselher serviam-na fielmente e não disputavam os seus poderes. Mas havia Hagen, e era este que provocava a sua angústia, Sendo seu filho, não o era do falecido rei, não tendo por isso um lugar na corte comparável aos dos seus meio-irmãos, embora mais inteligente e valente do que eles, ainda que imprevisível. Em certa altura, a rainha apercebera-se de que Hagen tinha uma paixão pela sua meia-irmã. Não que o tivesse manifestado abertamente mas Houte sabia o que era o amor desde o dia em que tinha cedido àquele ser da noite, génio das florestas, de quem Hagen era filho. Isto quando a rainha tinha já dado dois filhos ao rei Gibich e a carne não a atormentava excessivamente. E não fora o elfo vagabundo que a perseguira mas ela que caminhara para ele. É então que se verifica a chegada de Siegfried e da sua comitiva. A rainha enviou-lhes um mensageiro para saber quem eram e este, na volta, informou-a de que Siegfried lhe pretendia falar em particular pois tinha uma importante revelação a fazer-lhe sobre o passado e o futuro do reino.



E Siegfried contou à rainha: «No passado, havia nas águas do Reno, a pouca distância deste castelo, sete Ondinas que guardavam o ouro outrora aí depositado pelo destino que governa todas as coisas deste mundo. Ora esse ouro foi roubado por um nibelungo, um descendente dos anões que antigamente reinavam neste país que se chamava o reino dos Nibelungos. Certamente que nenhum dos borguinhões se apercebeu do desaparecimento do ouro. Há muito tempo que os homens desta terra já não dominavam os segredos da natureza porque se tornaram indiferentes à vida escondida nas águas e nas pedras. Ninguém reparou que as Ondinas tinham deixado o rio sobre o qual velavam constantemente para se dirigirem para um local desconhecido que se tornou talvez o seu túmulo. Ao perderem este ouro e as suas guardiãs, as gentes do país, sem disso terem consciência, tinham rompido o pacto que liga o céu à terra. Herdeiros dos Nibelungos, os borguinhões tinham, já que estavam unicamente preocupados com a sua glória e a sua riqueza, traído o mais antigo tesouro do rio, a aliança dos homens com as estrelas que estão no céu e os minerais que estão na natureza. E só tu, rainha Houte, pudeste ter o pressentimento desta traição, tu que ao procurares confusamente o amor de um elfo, renovaste à tua maneira o velho laço que unia o Reno às divindades de cima e de baixo. Isto no passado!»

«Mas aquele que está diante de ti, rainha Houte, após muitas provações e confrontos, encontrou o ouro do Reno e arrancou-o ao monstro que dele se tinha apropriado. Sim, Houte, esse ouro magicamente metamorfoseado em anel, está hoje à  minha guarda e antes de empreender perigosas viagens, confiei-o àquela que é tudo para mim, a Brunehilde, que reside numa longínqua ilha dos países do Norte e com quem fiz uma aliança para a eternidade.»

«E eis-me aqui porque eu, Siegfried, quero devolver o ouro às Filhas do Reno. E venho pedir a tua ajuda para me guiares até elas. A obra do anão Albéric conduziu-as ao exílio, a menos que tenham desaparecido para sempre nas profundezas inacessíveis.»

A rainha ouviu, comoveu-se e pediu a Siegfried tempo para meditar. Mas quis saber coisas do anel e da mulher que o esperava na ilha. Depois ofereceu um banquete a Siegfried e aos companheiros. No dia seguinte disse a Hagen que levasse Siegfried e os companheiros aos estábulos para que eles escolhessem os cavalos que desejassem. Siegfried escolheu um negro considerado indomável mas após uma verdadeira luta conseguiu domá-lo. Kriemhilde que assistiu ao espectáculo com a mãe logo se apaixonou por Siegfried. Entretanto, a rainha enviou a filha para uma propriedade a alguma distância de Worms, donde ela regressou, alguns dias mais tarde, com as pessoas que a acompanharam, trazendo ervas, flores e raízes. Com elas preparou uma bebida com reflexos azuis e deu-a a Siegfried, dizendo-lhe que as ervas que a compunham, colhidas à beira do rio, poderiam fornecer-lhe em sonho elementos úteis para a sua pesquisa. Mas a bebida não era um licor profético mas uma água de esquecimento semelhante àquela que, segundo os gregos, corre no rio Léthé (Letes). As imagens que povoaram a existência de Siegfried foram-se dissipando, especialmente as mais recentes, logo as da ilha do fogo e da bem-amada Brunehilde. Era o que Houte pretendia. Só nesse dia Siegfried e Kriemhilde se encontraram pela primeira vez, manifestando amor recíproco. Perante esta nova situação, Hagen resolveu afastar-se da corte por um tempo. E não mais houve conversas entre Houte e Siegfried sobre as filhas do Reno. O poeta do palácio, que assistira à chegada de Siegfried e que ficara intrigada com todas as suas histórias, resolveu perscrutar a floresta e o rio para encontrar traços das Ondinas e obter informações de camponeses e pescadores. Disseram-lhe que elas tinham sido expulsas do Reno por uma razão misteriosa e que tinham encontrado abrigo num lago da montanha.

O casamento de Kriemhilde e Siegfried foi ocasião de uma grande festa no castelo de Worms. Muitos reis e príncipes foram convidados mas ninguém conhecia o reino de Siegfried. Talvez o seu reino fosse do outro lado da terra, onde brilha outro sol e outra lua, murmurava sorrateiramente Hagen. Seduzidos por um reino do além, Siegfried e Gunter, o filho primogénito da rainha, resolveram partir à sua descoberta e também de uma vaga figura feminina que habitava a imaginação de ambos. Mas antes celebraram um pacto, o ritual do salgueiro, pelo qual davam um ao outro a palavra de se pertencerem por um tempo que não poderia ultrapassar doze luas. E Siegfried, que até aí tinha afirmado o seu domínio sobre os seres e as coisas, que se tinha livrado de Regin, do dragão e da própria Brunehilde, estava pela primeira vez na dependência de um homem cujo desejo lhe permanecia estranho. E partiram, cada um no seu barco, ao longo do Reno. Finalmente chegaram a uma ilha. Num canto errava um cavalo negro. Gunter pediu a ajuda de Siegfried para capturar o cavalo e lá foram os dois através das colinas. Até que chegaram a uma muralha de fogo. Gunter viu que Siegfried ultrapassava impunemente as chamas e interpelou-o: «Siegfried, esqueceste o rito do salgueiro?» Siegfried deteve-se. «Prometeste-me devoção e assistência. Como as chamas apenas se inclinam perante o teu rosto, vais emprestar-mo.» «Mas eu sou eu e tu és tu, como será possível confundir-nos?«, replicou Siegfried. Então Gunter tirou do peito um pequeno frasco contendo um licor destilado pela mãe, com o poder de metamorfosear os que partilharam o rito do salgueiro. Siegfried bebeu-o e tomou a forma de Gunter. Então, atravessou tranquilamente as chamas e viu Brunehilde e mais três raparigas que lhe tinham vindo fazer companhia. E estavam a tecer uma tapeçaria com a pele de um carneiro. Para poder levar consigo Brunehilde teria de enfrentar o misterioso carneiro que aparecera após esta ter perdido a virgindade. As raparigas, filhas do rio, deram-lhe um punhal e Siegfried avançou para o carneiro que disse saber quem ele era mas nada poder contra ele porque o coração de Brunehilde lhe pertencia. Siegfried matou o carneiro, houve um grande clarão, e depois tudo mergulhou no silêncio. Então Siegfried aproximou-se de Brunehilde e viu brilhar o anel no seu dedo. Não sabia o que era mas uma força súbita levou-o a apoderar-se dele, contra a vontade de Brunehilde que o segurava com todas as forças. Enfiou-o no seu dedo e verifica que o anel sangrava. Brunehilde estava assim submetida e as três raparigas haviam desaparecido. Também as chamas desapareceram e a paisagem transformou-se. Brunehilde foi conduzida para o barco e Gunter sentou-se a seu lado. Como a ordem antiga fora restabelecida, Gunter voltou ao seu próprio corpo e Siegfried ao dele. O navio partiu e Siegfried ficou a ver a embarcação dirigir-se em direcção a Worms.

Siegfried recordou-se então do que se tinha passado, e com a habilidade mágica aprendida com Regin confeccionou uma embarcação ligeira e fez-se ao Reno para se antecipar à chegada a Worms de Gunter e Brunehilde. No castelo, surpreendeu Kriemhilde, deu-lhe uma rápida explicação e propôs-lhe que saíssem do reino, fazendo dizer à rainha Houte que só regressariam para o casamento de Gunter e de Brunehilde. Kriemhilde, depois da ausência do esposo, pretendia que Siegfried a acariciasse mas este não possuía agora qualquer vontade e só desejava partir. E foram pois a cavalo até aos domínios onde a rainha Houte colhia as suas ervas mágicas. Kriemhilde não conseguia perceber a atitude de Siegfried e ao ver o anel interrogou-o sobre a proveniência mas o marido iludiu a resposta. No entretanto, Hagen encontrou-os e pediu-lhes que regressassem ao palácio para a festa de casamento de Gunter e Brunehilde. No grande salão do palácio desenrolava-se a cerimónia perante toda a corte. Ao ver Siegfried, a quem o ligavam profundas recordações e ao constatar a sua indiferença, Brunehilde exclamou: "Siegfried, que grande traição a tua!"


Gunter, que desejava ardentemente possuir Brunehilde, retirou-se com ela para a câmara nupcial, mas esta recusou-se-lhe com cólera: "Não me tereis a vosso lado sem que compreenda o que se passou com Siegfried e sem que obtenha dele uma reparação". E tirando a correia de seda tecida a ouro que trazia à cintura atou os pulsos e os pés do príncipe e suspendeu-o numa ferragem fixada na parede e onde Gunter costumava pendurar a espada. Apesar das súplicas deste para que o libertasse, Brunehilde manteve-se indiferente e adormeceu. De manhã, desprendeu-o e deixou-o entrar no leito mas proibiu-lhe que a tocasse. E a rainha Houte decidiu confiar a coroa ao filho, mas não foi para Gunter um dia de glória. Este confiou a sua dor a Siegfried e lembrou-lhe o rito do salgueiro: «Como me ajudaste junto à montanha deves fazer agora com que Brunehilde responda ao meu amor». Siegfried aquiesceu, dizendo-lhe que penetraria de noite na câmara nupcial e obrigaria Brunehilde a curvar-se aos seus desejos mas comprometendo-se a não lhe tocar. Quando a escuridão foi total, Siegfried penetrou nos aposentos e Brunehilde, julgando ser Gunter, recusou-se-lhe como na noite anterior. Então Siegfried tentou dominá-la e houve uma luta entre ambos. Depois, Siegfried conseguiu encostá-la a si e ela acabou por aceitar aquele que a tinha revelado a si mesma. E também Siegfried reviveu por um momento a graça que tinha conhecido na montanha. E ambos sonharam com o êxtase. A seguir, Siegfried saiu e Gunter entrou no quarto, dirigiu-se ao leito de Brunehilde e obteve o seu prazer.

Nos dias seguintes a vida voltou à normalidade, mas houve depois uma grande disputa entre Kriemhilde e Brunehilde. E esta contou-lhe os juramentos que trocara com Siegfried e como este a conhecera carnalmente no leito de núpcias de Gunter. Kriemhilde falou-lhe do licor maléfico de Houte que provocara o esquecimento no coração de Siegfried. E disse-lhe também como Gunter confiara a Siegfried o cuidado de atravessar a muralha de fogo. Ambas compreenderam então a extensão do desastre que o destino lhes tinha reservado.

Voltando Gunter para junto de Brunehilde, esta contou-lhe como Siegfried a despertara do sono e a quem jurara pertencer para sempre. E revelou-lhe também a astúcia da rainha Houte e a traição de Siegfried, agora casado com outra mulher. Ela, a virgem selvagem, pertencia agora simultaneamente a dois homens. Perguntando-lhe Gunter como poderia aliviar o seu mal, Brunehilde foi directa: «Não posso pertencer a dois homens ao mesmo tempo; se me queres conservar, faz morrer Siegfried.» Gunter fugiu apavorado e foi contar tudo a Kriemhilde e a Siegfried, que foi procurar a rainha. Depois, Brunehilde dirigiu-se a Siegfried: «Tudo o que fizeste desde que estás neste mundo, ainda que não o saibas, foi feito por minha causa. Por isso, triunfaste do dragão, apoderaste-te das riquezas dos Nibelungos, atravessaste a muralha de fogo porque por trás da muralha foste chamado a libertar a minha própria palavra e a dar forma à palavra que vem do céu. Os deuses fizeram parte do meu nascimento, como fizeram parte do teu. O nosso destino não podia confundir-se com o dos homens que nada compreendem da linguagem das estrelas. Não foi uma mulher que traíste, Siegfried, mas através de uma mulher abandonaste o céu. Agora, que o teu amor me foi retirado, o meu destino já não tem sentido e não me resta senão a morte para estar à altura do que foram Brunehilde e Siegfried.»

Siegfried repetiu-lhe que fora enganado por Houte e que estava pronto a abandonar Kriemhilde, mas Brunehilde respondeu-lhe: «É tarde, já não te quero, nem a qualquer outro homem. » E à noite disse a Gunter: «O rosto de Siegfried lembra-me incessantemente a minha vergonha e o meu abandono. É preciso que um de nós morra, ou que tu e Kriemhilde desapareçam.» Desesperado, Gunter foi confiar o seu desespero a Hagen, que andava a espiar cuidadosamente toda a gente. E este garantiu a Brunehilde que a vingaria da traição de Siegfried. E a seguir disse a Kriemhilde: «Sei que há uma conspiração contra Siegfried e que gentes do rei procuram matá-lo invejosos do lugar que ele ocupa no reino e da glória que conquistou ao desposar-te. Mas, por amor de ti, vigiarei para que nada lhe aconteça, já que ele é temerário.» Kriemhilde revelou-lhe então precisamente aquilo que ele desejava saber: «No dia em Siegfried matou o dragão, banhou-se no sangue ainda quente do monstro, mas uma folha de tília tombou-lhe nas costas, e esse é o único sítio onde ele é vulnerável.» Hagen recomendou-lhe que cosesse na sua roupa um sinal a indicar exactamente o lugar da sua fragilidade para o poder proteger.» E Kriemhilde retorquiu que marcaria o sítio com uma cruz.

No dia seguinte, aquele em que deviam partir em guerra contra dois príncipes vizinhos que, segundo Hagen, cobiçavam as terras de Gunter, o rei anunciou que os príncipes renunciavam às suas pretensões e que assim, em lugar de irem para a guerra iriam para a floresta caçar os ursos e os javalis. E deu ordem apara se preparar a grande batida.

Tendo feito uma paragem na sua caminhada para descansar, e estando todos a dormir, Siegfried, preocupado com os sonhos de Kriemhilde, resolveu embrenhar-se na floresta. Apercebeu-se então de um estranho urso que parecia banhar-se na claridade da lua. O urso encarou-o como se o convidasse a segui-lo mas depois desapareceu. E Siegfried voltou ao acampamento sem que tivessem dado pela sua falta. Tendo os cães dado pela pista do urso, Siegfried pediu a Gunter que o deixassem enfrentar sozinho o urso porque é no combate com o urso que o cavaleiro mostra o seu valor. Mas Hagen interpôs-se dizendo que tinham sido os seus cães que tinham descoberto o urso, que este lhe pertencia e que faria dom da sua pele a Brunehilde, porque esta era a mulher do seu rei. Gunter deu razão a Hagen e disse a Siegfried que não era ainda chegado o tempo de ele fazer semelhante oferta a Kriemhilde. As palavras de Gunter perturbaram Siegfried que gritou a Hagen: «Não persigam esse  animal porque não é um animal vulgar mas o protector e guardião desta floresta e se o matarem atrairão a maldição sobre o país.» Hagen retorquiu dizendo a Siegfried que queria ser ele o primeiro a caçá-lo e portanto era ele o primeiro culpado e que se houvesse maldição seria para ele. Houve um combate terrível, até que uma lança foi cravada no flanco do urso. Este caiu, e quando Hagen se preparava para lhe dar o golpe de misericórdia, deitou ao seu assassino um olhar terrível, com lágrimas e sangue nos olhos. Siegfried desviou-se e os criados pegaram no animal levaram-no para a clareira, assaram-lhe a carne e Hagen conservou a pele. Siegfried não quis comer da carne do urso e foi censurado por Gunter, mas respondeu-lhe que o urso era a alma daquela montanha e que agora a floresta estava silenciosa e os pássaros tinham-se calado. Hagen insistiu que Siegfried não quis comer a carne porque deveria lavar-se na água pura de uma fonte na sua terra natal de que nunca falava, mas que ele, Hagen, conhecia uma fonte na proximidade onde se poderia refrescar. Então resolveram ir à fonte. Siegfried à frente, tendo deixado a espada e o escudo na tenda, Gunter segue-o, também desarmado, Hagen caminha atrás. Gunter bebe em primeiro lugar, depois Siegfried ajoelha-se e bebe. Então, fixando o sinal marcado com uma cruz na roupa, Hagen enfia a lança com tanta violência que o sangue espirra por todos os lados. Deixando a lança espetada na carne de Siegfried Hagen foge. Gunter fica branco de terror. Siegfried ergue-se, solta um grito que ecoa por toda a floresta, deixa-se cair sobre as ervas e lentamente morre. Quando os cavaleiros se aperceberam que Siegfried estava morto, deitaram-no sobre um escudo de ouro e concertaram-se para saber como dissimular o crime de Hagen. Acharam que poderiam atribuir a morte a um acidente de caça, mas Hagen confessou que isso lhe era indiferente. O essencial era ter libertado Brunehilde do homem que lhe tinha causado tanta dor. Hagen ordenou que colocassem o cadáver de Siegfried em frente ao quarto de Kriemhilde. De manhã, esta descobriu o corpo e vestiu-o com os trajes mais sumptuosos. Mas no palácio elevaram-se as lamentações dos que gostavam de Siegfried, e estas chegaram até Brunehilde que estava adormecida mas compreendeu que Siegfried estava morto. Esta acordou Gunter, que dormia a seu lado, e disse-lhe: «Agora, aquele que tu traíste mas que te fora sempre fiel, abandonaste-o ao coração infiel de Hagen. Só eu, desde o meu despertar no castelo de fogo, soube amá-lo como ele devia ser amado. Agora, que ele já não existe, que faço eu entre vós? É preciso que eu morra também.» Houte não disse palavra quando soube da morte de Siegfried. Ela partilhava a angústia da filha, mas o seu apego  especial, quase mórbido, a Hagen, obscurecia-lhe a razão. Mais tarde, Brunehilde chamou Gunter e disse-lhe que Siegfried morrera por sua causa mas fora também por sua causa que ele conhecera o amor e penetrado nos grandes mistérios da vida. E que lhe competia a ela ordenar a sua passagem para o outro mundo. Assim, mandou construir uma grande pira funerária diante do palácio. Mandou matar quatro escravos que seriam queimados à cabeça e aos pés de Siegfried. E que dois falcões fossem degolados e colocados sobre o coração do homem, pois ajudariam na sua viagem a alma do morto. Quando a pira ficou a arder, Brunehilde saltou pelo meio das chamas e deitou-se ao lado de Siegfried, unindo-se-lhe eternamente na morte.



Enquanto ainda estava no seu quarto, Kriemhilde roubara a Siegfried o anel que fora o símbolo do seu destino. Um gesto funesto como o demonstraram os acontecimentos futuros, porque também Hagen cobiçava o anel, mas nem ela nem ele tinham compreendido ainda que o anel trazia consigo o desastre a maldição. Durante a partida de caça, Siegfried afastara-se dos seus companheiros e dirigira-se à beira de um ribeiro que ia desaguar no grande rio. Era aí que se encontravam as sete filhas do Reno.  Tinham perdido a sua frescura mas ainda conservavam os traços da sua antiga graça. E pediram a Siegfried para lhes restituir o anel: «Esse anel de ouro, arrancado pela astúcia e pela força ao espírito do rio, ficará para sempre marcado pelo pelo signo da infelicidade. Albéric renunciara ao amor para conquistar esse ouro e todo o possuidor do anel terá interditas as portas do verdadeiro amor. Siegfried já o experimentara. Todas as pessoas do palácio estavam em guerra umas com as outras porque o amor não poderia ter lugar no sítio onde residia o anel.» Mas Siegfried não escutara as filhas do Reno. Algum tempo depois da morte de Siegfried, Kriemhilde teve três sonhos consecutivos. No primeiro, havia sete Ondinas que eram quase mulheres velhas. Inclinaram-se sobre Kriemhilde adormecida e juntaram as mãos sobre o seu peito, formando um grande anel resplandecente que se elevava lentamente no ar e depois caía sobre os seios da jovem. No segundo sonho havia apenas duas ondinas que se enrolavam como serpentes em volta do corpo de Kriemhilde. No terceiro sonho, Kriemhilde num canto do parque onde costumava passear. Apareceu-lhe apenas uma filha do Reno, descarnada e embranquecida e abanou a mão da jovem, a mão onde estava o anel, e depois tornando-se negra, desapareceu. Kriemhilde foi então procurar as Filhas do Reno, mas em vão. Hagen acreditava que através do anel conseguiria encontrar a pista do anão Albéric e adquirir os poderes misteriosos graças aos quais pudera acumular as riquezas e os saberes. Para se apoderar do anel, esgotadas todas as astúcias, amordaçou Kriemhilde no quarto e arrancou-lhe o anel. Depois, fez constar que Kriemhilde fora visitada de noite pelos génios das florestas que tinham levado o anel. Nem Gunter nem os irmãos acreditaram na história e Kriemhilde nada disse. Mas no seu coração, à medida que passavam as estações e que a imagem de Siegfried não cessava de se engrandecer, o seu ódio cresceu. 

Tendo ficado viúvo,  Etzel, rei dos hunos, enviou Rudiger à corte de Worms para pedir a mão de Kriemhilde, que ficara sem esposo, devido à morte de Siegfried. Gunter recebeu o enviado, reuniu a corte e todos acharam bem que se realizasse essa união que reforçaria os laços de amizade entre borguinhões e hunos. Apenas Hagen se opusera ferozmente ao projecto. que Kriemhilde também rejeitou. Pressionada por Rudiger, cuja imagem lhe recordava Siegfried, Kriemhilde acabou por condescender, acompanhando-o à corte de Etzel. E a nova esposa acabou por entrar nos corações dos hunos, porque lhes recordava a falecida Erka. Ao fim de sete anos, desejosa de rever os irmãos, Kriemhilde convenceu Etzel a organizar uma festa para os borguinhões. Os mensageiros entregaram uma carta a Gunter, onde o rei Etzel, cujo filho nascido da sua união com Kriemhilde era ainda uma criança, o convidava para o ajudar a governar o reino até à maioridade do filho. Hagen e a rainha Houte tentaram dissuadi-lo pressagiando uma cilada. Mas a expedição organizou-se, guiada por Hagen, que conhecia o caminho. Num recanto, nas margens do Danúbio, Hagen ouviu uma melodia estranha e dirigiu-se ao local donde vinha o canto. Numa fonte, banhavam-se duas Ondinas, que tanto pareciam cisnes como raparigas. Tinham deixado a roupa à beira da fonte e ao verem Hagen esconderam-se no bosque. Hagen apoderou-se da roupa mas uma das Ondinas veio ter com ele, pediu-lhe as vestes e prometeu-lhe dizer-lhe como seria a viagem até aos hunos, já que elas tinham o poder de desvendar o futuro. A Ondina disse-lhe que a viagem seria feliz e Hagen devolveu-lhes a roupa. Mas a segunda Ondina veio ter com ele para o prevenir de que a irmã tinha mentido e que era a infelicidade que os esperava. E Hagen conseguiu obter dela a indicação de um passador em cuja barca a comitiva pudesse atravessar o rio. Quando a barca chegou junto de Hagen, o passador atingiu-o com um remo, esperando apoderar-se dos seus bens, mas Hagen, mais rápido, conseguiu cortar-lhe a cabeça e lançá-la ao rio. Finalmente, os cavaleiros e os cavalos puderam passar para a outra margem, e depois Hagen desfez a barca e atirou os destroços ao rio. Chegaram, por fim, aos domínios de Rudiger que os recebeu com sua mulher Gotelinde e sua filha Elianore. No final do jantar Gotelinde disse a Hagen: «Seria melhor que acabasse aqui a vossa viagem, porque Kriemhilde continua a lamentar a morte de Siegfried e receio que vos tenha feiro vir por desejo de vingança.» Respondeu-lhe Hagen que Siegfried continuava a assombrar as suas noites e as de Kriemhilde e que só a união de ambos poderia esconjurar o fantasma de Siegfried. Mas Gotelinde retorquiu-lhe em soluços que estavam os três sob a maldição do anel, o anel que Hagen trazia debaixo da luva, e que este deveria lançá-lo às águas do Danúbio, já que, quando era tempo, não o restituíra às águas do Reno. Hagen então disse: «Não depende de Kriemhilde nem de mim ficarmos livres da maldição do anel. Foi através do anel que nos tornámos Nibelungos e é sob esse nome que a história nos conhecerá; ma a herança dos Nibelungos foi pervertida desde que o anão Albéric roubou o ouro do Reno. Competia a Siegfried e a Brunehilde reparar essa falta, mas nós, borguinhões, enganados pela magia da rainha Houte, separámos Siegfried de Brunehilde. E é o seu sofrimento no país dos mortos que é a causa do nosso sofrimento.» Então Gotelinde pediu-lhe o anel e disse-lhe para regressar tranquilamente a Worms. Mas Hagen respondeu-lhe: «Não serve para nada livrarmo-nos do anel já que não há ninguém para o recolher. As Filhas do Reno desapareceram para sempre e com elas desapareceu a frescura e a virgindade do mundo, como desapareceu o velho homem zarolho, de chapéu preto, que velava, de longe, por Siegfried e Brunehilde.» E separaram-se.

Quando repousava num quarto do castelo, Hagen ouviu uma voz e viu ao pé da muralha uma graciosa forma que se aproximava e que era Elianore. Esta disse que vinha ajudá-lo e pediu-lhe para acariciar o anel, fazendo-o deslizar do dedo de Hagen sem que este opusesse resistência. Depois, desapareceu no escuro. Não se afastou muito e Hagen viu-a a alguns passos, na alvura do seu vestido erguer a mão onde brilhava o anel. E disse-lhe: «Não te mexas. Olha apenas para o anel e para a sua luz e talvez ele te diga o seu segredo como o disse a mim.» E avançou na lagoa até meio-corpo, fazendo sempre brilhar o anel. Hagen foi no seu encalço mas enterrou-se na lama da lagoa e teve dificuldade em regressar a terra firme. E  Elianore desapareceu nas águas.

Hagen regressou ao castelo, nada contou do incidente, e pressionou Gunter e os outros a partir rapidamente para o seu destino. Só a Gunter confiou que tivera um mau sonho. Toda a comitiva ficou decepcionada com tão apressada partida. O rei Etzel enviara Dietrich de Berne, um príncipe que vivia na sua corte, ao encontro dos convidados. Este informou Hagen para não se preocupar com Kriemhilde, já que esta, embora não esquecesse Siegfried, amava Etzel, a quem dera um belo filho. E que ela nada faria para perturbar o espírito do rei dos hunos. Hagen observou: «Nem ela nem eu podemos mudar a nossa sorte. O amor transforma-se em ódio quando não encontra a sua casa. Nunca houve na minha existência outra mulher senão Kriemhilde. Como não me foi dada na vida, deve-me ser dada  na morte. Assim o decidiram os que nas profundezas desconhecidas do céu traçam os nossos obscuros caminhos. » Dietrich olhou-o demoradamente e retorquiu: « Dá-me o anel que lhe tiraste outrora, esse anel que era o duplo da alma de Siegfried, e por meio do anel ela reencontrará a paz.» Hagen mostrou-lhe a mão nua e contou-lhe a história. E seguiram para o palácio, de cuja torre Kriemhilde os viu aproximar-se.

Na manhã seguinte Hagen sentou-se num banco do jardim e Kriemhilde veio ter com ele, e viu que ele trazia consigo a espada de Siegfried. Disse-lhe: «Como pudeste vir a estas terras ofender-me uma segunda vez depois de me teres martirizado?» Hagen respondeu-lhe ironicamente: «É verdade que te fiz mal vingando Brunehilde, não renego nada do que fiz e quem quiser e puder que se vingue.» O rei Etzel ofereceu um banquete aos convidados borguinhões no jardim murado do palácio. Antes da festa, Kriemhilde chamou um dos preferidos do rei, de nome Iring, e disse-lhe: «Se me ajudares a vingar-me dos borguinhões dar-te-ei todo o meu ouro e ficarei ao teu serviço.» Iring respondeu-lhe: «Não necessito de ouro, mas por amor de vós farei o que vos agradar.» Kriemhilde dirigiu-se para o seu lugar ao lado de Etzel e mandou buscar o filho de seis anos, Ortlieb. O rei voltou-se para Gunter e os irmãos e apresentou-lhes a criança que estava destinada a suceder-lhe e pediu aos borguinhões para o levarem para as margens do Reno, para o educarem. Mas Hagen declarou, para espanto de todos, que o príncipe não estava destinado a uma longa vida. A criança correu para a mãe para a abraçar e esta disse-lhe para se dirigir a Hagen e lhe enfiar um punhal no peito quando este se debruçasse para comer. O menino assim fez mas Hagen desembaraçou-se, puxou da espada e cortou-lhe a cabeça que lançou para o regaço de Kriemhilde. Houve grande clamor e Etzel chamou os seus em socorro. Os Nibelungos quiseram fugir mas as portas estavam tapadas com peles frescas de porco mandadas colocar por Kriemhilde. Houve grande combate. O rei Etzel refugiou-se  uma torre e reuniu as suas tropas. Gunter e os seus conseguiram abrir caminho pelo meio dos cadáveres e alcançaram a sala grande do palácio onde estavam os criados borguinhões, a maioria mortos. Hagen disse então ao rei: «Um chefe como tu deveria bater-se em primeiro lugar.» Etzel avançou mas a um sinal de Kriemhilde os seus detiveram-no. Então Iring avançou para Hagen e enfrentaram-se cruelmente até que Iring caiu atingido por um dardo entre os olhos. Gunter e os irmãos (Gernot e Giselher) dirigiram-se a Etzel e pediram-lhe, já que havia decidido da sua morte, que os deixasse sair e morrer contemplando o céu. Kriemhilde, com o rosto iluminado, gritou: «Entreguem-me Hagen e far-vos-ei graça.» Mas Gunter respondeu-lhe que não abandonariam qualquer dos seus. Depois Kriemhilde ordenou aos criados que não deixassem escapar ninguém da sala e mandou largar fogo ao palácio. Nem todos os borguinhões morreram no braseiro mas os que restaram decidiram vender  cara a pele. De manhã, os hunos ficaram espantados ao ver ainda tantos homens de pé. Rudiger, que fora o enviado a Worms, pediu a Etzel para poupar os sobreviventes, tal fora a sua bravura, mas Kriemhilde lembrou-lhe que era do rei que ele possuía toda a glória e bens e que por isso deveria combatê-los. Rudiger enfrentou Gunter, mas tombou atingido por um dardo, depois de fender o crânio de Gernot. Também Giselher, o terceiro filho da rainha Houte sucumbiu. Dietrich de Berne chorou ao ver tantos homens mortos. E marchou ao encontro a Hagen. Mas a armadura de Hagen tornou-se escaldante com a duração do combate e este pediu a Dietrich que lha retirasse depondo a espada a seus pés. Hagen foi atado com correias e levado à presença da rainha Kriemhilde. Esta ordenou que o levassem para um calabouço. Gunter também foi derrotado por Dietrich e igualmente levado à presença de Kriemilde que o remeteu para outro calabouço. 



Depois, Kriemhilde dirigiu-se ao calabouço onde se encontrava Hagen e disse-lhe: «Se me revelares onde se encontra o anel dos Nibelungos que outrora me arrancaste deixo-te regressar são e salvo às margens do Reno. Hagen respondeu-lhe que havia só um homem a quem ele poderia revelar o lugar do anel, Gunter, e que enquanto ele fosse vivo nada diria. Então Kriemhilde mandou cortar a cabeça de Gunter e levou-a à prisão de Hagen. Este tentou desembainhar a espada que não lhe fora retirada e erguê-la contra Kriemhilde, mas hesitou. Nesse momento a rainha encostou a cabeça decepada de Gunter à cabeça, horrorizada de Hagen e disse-lhe para ouvir a mensagem. Depois, agarrou na espada, que fora a de Siegfried, e cortou a cabeça de Hagen. Nesse momento, chegou Etzel, acompanhado do velho sábio da corte, Hildebrand, que se dirigiu à rainha: «Acontece por vezes que o sangue do inimigo clama por vingança.» E avançando para Kriemhilde, petrificada, levantou a sua espada e cortou-lhe a cabeça, que rolou para junto da de Hagen. Depois, Etzel e Hildebrand, com as duas cabeças, entranharam-se nos subterrâneos do palácio. 

E a velha rainha Houte morreu também no seu palácio. Assim foram todos, crianças, mulheres e homens, que pelo seu encantamento foram misturados à história do anel dos Nibelungos.


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NOTA: Este post foi redigido durante vários meses, a partir do livro supracitado. Por essa razão, pelas longas e sucessivas interrupções, não terá ficado tão convenientemente estruturado como seria desejável. Mas entendi preferível concluí-lo a desistir da sua publicação.


2 comentários:

beatriz j.a. disse...

Este post é notável e gostei imenso de o ler.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Muito obrigado, beatriz j.a.