domingo, 25 de novembro de 2018

O PROBLEMA DELON



Foi recentemente editado o livro Un problème avec la beauté – Delon dans les yeux, de Jean-Marc Parisis, autor que desconhecia mas que tem alguma obra publicada.

Pretende este livro salientar o problema com que Alain Delon sempre se confrontou, a sua beleza, unanimemente apreciada por homens e mulheres. Segundo o autor, a extraordinária beleza de Delon terá de alguma forma condicionado a sua vida pessoal e profissional.

Existem diversos livros sobre Alain Delon, alguns controversos, e o visado tentou mesmo impedir a publicação de uma sua biografia. [Averiguei que se tratou de Les Mystères Delon, de Bernard Violet. A Justiça atendeu o seu pedido, um facto inédito na democracia francesa, mas o autor exigiu uma revisão do processo em nome da liberdade de expressão e o livro acabou por ser publicado, ainda que trucado, em 2000]. Por isso, não compreendo a necessidade desta obra, que nada de especial acrescenta ao que já é sabido ou verdadeiramente intuído do percurso da personagem.

É claro que Un problème avec la beauté – Delon dans les yeux, não é propriamente uma biografia, nem tão pouco um livro sobre as interpretações do actor ou a sua carreira cinematográfica. Trata-se de uma colectânea de instantâneos em que Jean-Marc Parisis regista episódios significativos da vida de Delon e das figuras que, na vida real e/ou artística, com ele contracenaram.

Conhecida uma proverbial rebeldia de Delon, insinua o autor, desde a primeira página, que nele se instilou a figura de Jean Genet, detido na prisão de Fresnes, quando ainda criança, Delon brincava no pátio daquela instituição, onde o seu “pai adoptivo” exercia funções de vigilante. Aventa mesmo Parisis que é muito possível que os olhos do autor de Notre-Dame des Fleurs possam ter cruzado alguma vez os do futuro intérprete de Rocco e i suoi fratelli.

 
Alain Delon em jovem

Desfilam ao longo da obra as inúmeras personagens com quem Delon contactou na sua vida, de gente dos bas-fonds, dos bandos de gangsters e do mundo do crime a figuras do meio artístico, especialmente cinematográfico, e do meio político e social. Dada a estrutura do livro e porque essas pessoas não são, na generalidade, devidamente apresentadas, e estando quase todas mortas, elas são hoje desconhecidas do grande público. E não sendo os referidos instantâneos cronologicamente ordenados, e primando o autor por uma total ausência de datas, difícil se torna seguir a trajectória do sedutor (seduzido) e de compreender os relacionamentos que Parisis entende demonstrar. É pois um livro só verdadeiramente acessível aos felizes “iniciados”.

Também é um facto que esta teia, casual ou intencionalmente urdida, se presta a confusões, a meias verdades ou até a inverdades, pelo que se ignora o propósito do autor ao escrever a obra.

Sabemos todos que Alain Delon interpretou alguns filmes que constituíram marcos na história do Cinema. Dois deles, Rocco e i suoi fratelli e Il Gattopardo, em especial este último, são obras-primas da cinematografia. Ambos foram dirigidos por Luchino Visconti, esse realizador famoso que é, porventura, o maior de todos os tempos. Sendo Alain Delon indubitavelmente lindo e sedutor (apesar do seu mau feitio) e sendo Visconti um apreciador declarado da beleza masculina, é universalmente consensual que os dois mantiveram muito tempo, uma relação íntima. Nem outra coisa justificaria que Visconti tivesse, durante a sua vida, a fotografia de Delon sobre a mesa-de-cabeceira. É por isso estranho que Parisis enfatize (p. 52) a seguinte declaração atribuída a Romy Schneider, que viveu com Delon alguns anos: «Je crois qu’il n’y a jamais rien eu d’autre à voir dans leur rapport que ceci: Luchino aimait Alain parce qu’il flairait en lui la matière brute du grand acteur. Il entendait donner forme à cette matière, et ce, de façon tyrannique, avec une prétention à la exclusivité.»

Também é estranha estoutra afirmação de Parisis: «Delon préférait travailler avec Visconti qu’avec Malle, mais ne tounerait pas L’Étranger. Le producteur refusait son prix. Était-ce seulement affaire d’argent? Retrouver, travailler avec Visconti ne valait-il pas tout l’or du monde? Une rencontre avait changé la vie de Visconti en la compliquant. Après Le Guépard, il s’était épris d’un blondin d’une beauté diaphane, un peu molle, morbida. Affolé par celle plus tranchante de Delon, qu’il haïssait, Helmut Berger craignait que l’autre n’accapare son amant. Visconti avait-il cédé aux crises de Berger? Delon refusait-il de les essuyer? Mastroianni jouerait Meursault, à la Mastroianni, trop légèrement pour incarner le sombre héros de Camus, et Visconti désavouerait son film.» (p. 103). Não me lembro agora, exactamente, das peripécias para a escolha do protagonista de Lo Straniero, mas não creio que Delon tivesse recusado o papel, fosse por dinheiro, fosse pela eventual concorrência de Berger. Acho que Delon pretendia antes afastar-se do Mestre, pois era voz corrente que eram, ou tinham sido, amantes. E Delon, que desde a sua mais tenra juventude deve ter passado pela cama de inúmeros homens (a sua biografia permite sustentar esta convicção), estando agora no estrelato entendia distanciar-se de uma relação quiçá comprometedora. Recordo-me de ter assistido, há anos, na televisão, a uma entrevista a Alain Delon, em que este desvalorizava o que teria aprendido com Visconti, enaltecendo como seu grande mestre o realizador francês René Clément (que não era homossexual) e com quem fizera um filme também de sucesso, Plein Soleil, a partir do romance de Patricia Highsmith, The Talented Mr. Ripley. Aliás, a carreira de Delon teve sempre cruzamentos homossexuais. O seu segundo filme, tinha ele 23 anos, foi dirigido por Marc Allégret, que fora, aos 17 anos, amante oficial de André Gide. Mas, nos últimos anos, Delon tem-se caracterizado por declarações homofóbicas (ele lá saberá porquê) e reaccionárias, como o seu apoio ao Front National, que entretanto já não deve ser suficientemente de direita para o seu gosto. É evidente que René Clément foi um importante cineasta, mas não se pode comparar a Visconti, cujo rigor profissional, vastíssima cultura, gosto requintado e paixão pelos actores (característica que nunca se pode ou deve menosprezar), transportava ao sublime os filmes que realizou e, também, as peças de teatro e óperas que encenou, entre as quais uma célebre La Traviata, no Scala, cantada por Maria Callas. Ainda sobre Lo Straniero, que o próprio Visconti descartaria da sua filmografia, é evidente que Marcello Mastroianni, embora grande actor, não era, de alguma forma, o intérprete conveniente para encarnar o protagonista da imortal obra de Albert Camus.

Desde muito jovem, Alain Delon frequentou meios problemáticos e conviveu com pessoas de duvidosa reputação. Expulso de sucessivas escolas por mau comportamento, alimentou a ideia de ir com um amigo para os Estados Unidos, mas foram impedidos pelas autoridades. Aos 14 anos foi trabalhar para a loja do padrasto, aos 17 alistou-se na Marinha francesa e aos 18 embarcou para a Indochina como fuzileiro naval, tendo estado vários meses preso por indisciplina durante os quatro anos de serviço militar. De regresso a França, e sem dinheiro, trabalhou como criado, porteiro, assistente de vendas, secretário e prestou outros serviços ocasionais, para os quais não lhe faltariam clientes, actividades que lhe terão permitido estabelecer uma rede de contactos com algumas pessoas influentes. A relação com os irmãos Allégret possibilitou-lhe entrar nos seus dois primeiros filmes (1967), o que o tornou conhecido do público. Começava a ascensão ao estrelato. Em 1968, conheceu Romy Schneider, com quem viveu alguns anos. Mas a sua reputação internacional consagra-se com Plein Soleil, em 1960, e com a inestimável colaboração com Visconti. Esteve para interpretar Lawrence of Arabia, mas o papel foi dado a Peter O’Toole.

 
François Marcantoni

A sua carreira artística no cinema (e também ocasionalmente no teatro), como actor e também como produtor, foi longa (até há cerca de dez anos) e não cabe aqui descrevê-la. O proprietário corso de um bar (Delon tinha ascendência corsa) apresentou-lhe um dia, era ele muito jovem, o seu irmão, François Marcantoni, gangster corso que combateu na Resistência. Ficaram amigos. Mais tarde, Marcantoni apresentou-lhe um outro corso, Barthélemy Guérini, o “Mémé”, “padrinho” de Marselha e próximo de Gaston Defferre, o maire da cidade, e seu conhecido dos tempos da oposição ao regime de Vichy. Posteriormente, numa filmagem em Belgrado, Delon travou conhecimento com um bonito rapaz da rua, Milos Milosevic (1941-1966), que vivia de expedientes, queria fugir do regime de Tito e sonhava com o cinema. Sempre aberto para com as gentes da sua laia, Delon empregou-o como “doublure lumière” (actor complementar que substitui o actor principal durante a afinação da iluminação) e como guarda-costas. Atrás de Milosevic, veio outro jugoslavo, Stefan Markovic (1937-1968), que Delon se comprometeu também a ajudar, ficando igualmente como guarda-costas. Como era muito bonito (apanágio frequente dos sérvios), durante o seu período em França Markovic entrou em contacto com o jet-set francês, entregando-se também à prostituição. E Delon acabou por ficar rodeado pela rede jugoslava de Paris.


Milos Milosevic

Por razões que não vêm agora ao caso, Markovic tornou-se o sérvio mais próximo de Delon, passando a viver em sua casa e gozando de um estatuto especial. A ligação a Markovic viria, contudo, a trazer os maiores dissabores a Delon e provocou um escândalo em França. Em 1968, o corpo de Stefan Markovic foi encontrado morto nos arredores de Paris. As relações de Markovic com Delon tinham entretanto esfriado, até porque este suspeitava de que, durante uma ausência, aquele mantivera um caso com a sua mulher Nathalie. Acontece que Stefan Markovic, antes de ser abatido, enviara uma carta, que foi presente à Justiça, a seu irmão Alexandre Markovic afirmando que se fosse morto seria 100% da responsabilidade de Alain Delon e de François Marcantoni. Entretanto, começaram também a circular em França rumores e fotos que envolviam Markovic em orgias, designadamente com Claude Pompidou, mulher do ex-primeiro-ministro e candidato à presidência da República Georges Pompidou. Parece que Markovic, além das suas funções junto de Delon e do tráfico de droga, tinha por hábito fotografar cenas íntimas das festas sexuais em que participava com mulheres e homens. Foi um escândalo nacional, que o casal Pompidou foi o último a conhecer, e que ficou conhecido como o Caso Markovic. A figura apresentada nas fotos como sendo Claude Pompidou seria afinal a de uma sósia. Supõe-se que os meios policiais franceses tenham estado envolvidos nesta mistificação, já que os gaullistas, apesar de De Gaulle, não gostavam de Georges Pompidou, que achavam demasiado mundano, muito dado a frequentar espectáculos, exposições, jantares e a conviver com artistas, literatos e, pelo meio, gente menos conveniente. E é um facto que o casal Pompidou conheceu pessoalmente Markovic e Delon, tendo mesmo sido convidado para casa deste último.
 
Stefan Markovic e Nathalie Delon

Marcantoni foi preso e Delon longamente interrogado, chegando a estar detido. Marcantoni foi libertado posteriormente e em 1976 obteve um “non-lieu” da Justiça. Chegou a aventar-se que a morte de Markovic fora ordenada por Pompidou para se vingar do ultraje. Mas poderia ter sido um ajuste de contas por negócios de droga ou de qualquer outro género, nomeadamente chantagem.

A morte de Stefan Markovic nunca foi esclarecida.

Em 1970, Alain Delon interpretou The Assassination of Trotsky, dirigido por Joseph Losey e contracenando com Richard Burton. Desempenhava o papel do assassino, Ramon Mercader, no filme Jackson, pois Mercader ainda estava vivo. Escreve Parisis (p. 170) com ironia: «En Mercader qui vivait encore, Delon voyait plutôt un “exécutant” qu’un “assassin” – il n’aimait pas ce mot de sinistre et récente mémoire. Assassin ou “héros”, au plan de l’Histoire les limites étaient floues selon lui, c’était une “question de timing”, tout dépendait des circonstances, du côté où l’on se plaçait.»

Em 1984, Delon interpretaria a figura do Barão de Charlus (a célebre personagem homossexual de Marcel Proust) no filme Un amour de Swann, realizado por Volker Schlöndorff. Um filme sobre uma adaptação de À la recherche du temps perdu, de Proust, fora um desejo nunca concretizado de Visconti. Também René Clément e Joseph Losey sonharam com a obra, cuja imensidão e complexidade tornavam muito difícil a passagem ao cinema. Coube a Schlöndorff a graça de a fazer, mas o filme não deu do livro senão uma pálida imagem.

Informa-nos Parisis que Delon utilizava a terceira pessoa para se referir a si mesmo. E adianta as justificações do próprio. Lembrei-me, de repente, de um jogador brasileiro que se tornou famoso em Portugal, Jardel, que também usava a mesma fórmula.

Além de Violet, também Henri Rode e Stéphane Guibourgé escreveram biografias sobre Delon, que não li e por isso não comento. Um capítulo da biografia de Rode intitula-se “Le danger d’être beau”.

Ao longo das 270 páginas deste livro, Jean-Marc Parisis faz desfilar perante os nossos olhos uma quantidade não negligenciável de pessoas, situações, comentários e acontecimentos relativos a Alain Delon, assinalando os aspectos positivos e negativos da sua carreira, mais os primeiros do que os segundos, não omitindo, obviamente, as pouco recomendáveis frequentações do actor, mas insinuando que elas constituíram o contraponto do seu enorme talento, e que os sarilhos em que esteve envolvido foram o preço que teve de pagar à sociedade pela sua indiscutível beleza. Não conheço as outras biografias de Delon, mas não encontro no livro qualquer revelação sensacional sobre o percurso pouco ortodoxo do actor, salvo talvez alguns pormenores semeados aleatoriamente. Neste apontamento, limitei-me a referir apenas certos aspectos que se me afiguraram mais relevantes, acrescentando algumas informações que não constam do texto: não constitui propriamente uma crítica da obra.

 
Alain Delon actualmente

Alain Delon nasceu em Sceaux (Seine) em 8 de Novembro de 1935, e tem hoje 83 anos. Entre 1959 e 1963 manteve uma relação com a actriz Romy Schneider. Em 1964 casou com Nathalie Barthélemy (Francise Canovas, de nascimento), de quem teve um filho, Anthony Delon. Divorciaram-se em 1969. De 1968 a 1982 manteve uma relação com a actriz Mireille Darc. De 1987 a 2002 manteve uma relação com o modelo Rosalie van Breeman, de quem teve dois filhos, Anouchka e Alain-Fabien. Durante a sua vida interpretou 87 filmes. Vive em Génève (Suiça), país de que possui a nacionalidade.


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