segunda-feira, 18 de junho de 2018

O RAPTO DE SÃO MARCOS




São Marcos (10 AC? - 65 DC?), discípulo de São Paulo, considerado como um dos quatro autores dos Evangelhos, foi, segundo a tradição, o primeiro bispo (ou patriarca, no caso vertente) de Alexandria, diocese de que foi fundador. É o santo mais importante da Igreja Copta, igualmente venerado por católicos e ortodoxos.

Catedral Copta de São Marcos (Alexandria)

O seu corpo foi sepultado na igreja (hoje a Catedral Patriarcal Copta) de Alexandria, mas em 828 os supostos restos mortais foram roubados por dois mercadores venezianos (Rustico da Torcello e Buono da Malamocco) e transportados para Veneza, a pedido do doge Giustiniano Participazio (Particiacus, em latim). Entendia o duque que, para contrariar a preponderância de Roma, que possuía as relíquias de São Pedro (e também de Aquileia e Ravenna), era necessário à República um símbolo poderoso, tanto mais que as relações de Constantinopla com Roma se tinham deteriorado e se caminhava a passos largos para o primeiro Cisma do Oriente. Para isso, nada melhor do que uma relíquia de São Marcos, que fora o evangelizador de Veneza.

Catedral Copta de São Marcos (Cairo)

Os dois venezianos e seus acompanhantes aproveitaram-se da confusão então reinante em Alexandria, já ocupada pelo Poder Califal, subornaram os guardiões do esqueleto e usaram de um estratagema para iludir os guardas "alfandegários" do porto de Alexandria: colocaram no cesto que continha a preciosa encomenda, cobrindo-a, pedaços de porcos recém-abatidos. Sendo o porco um animal impuro para os muçulmanos, o espectáculo dos animais mortos afugentou rapidamente os guardas e a mercadoria pôde passar sem mais vistorias para o barco que a aguardava no porto.

Saída do corpo de São Marcos de Alexandria (Mosaico na Basílica de Veneza)

Chegados os restos mortais a Veneza, foram depositados na capela do então palácio ducal de Rialto e depois transferidos para a igreja que a seguir se construiu e que é hoje a Basílica de São Marcos. Nestas coisas de relíquias sagradas deve manter-se sempre uma atitude prudente. Há santos cujas relíquias estão espalhadas por esse mundo fora, e o tráfico de relíquias foi comum durante séculos. Posso testemunhar, pessoalmente, que visitei na Basílica de Veneza o túmulo de são Marcos. Já tinha visitado, e voltei posteriormente a visitar, o relicário de São Marcos na Catedral Copta de Alexandria. E há também relíquias de São Marcos na Catedral Copta do Cairo (Abbassiyya), que visitei numa das minhas deslocações à capital egípcia. Todos estes bocados do santo (e porventura há mais) são independentes do presente concedido em 1968 ao papa Cirilo VI de Alexandria (os patriarcas de Alexandria usam o título de papa) pelo papa Paulo VI: um pequeno pedaço de osso de São Marcos que fora oferecido àquele pontífice pelo cardeal Giovanni Urbani, patriarca de Veneza.


Vem isto a propósito do livro que acabei de ler, Quand Dieu apprenait le dessin, um romance de Patrick Rambaud (n. 1946), publicado no princípio deste ano e supostamente sobre o mesmo tema. Mas quase nada do que escrevi vem lá. É Rambaud um escritor prolífico, autor de vasta e variada obra, galardoado com o Prémio Goncourt em 1997, também notabilizado pelas obras satíricas escritas sobre vários políticos, nomeadamente Nicolas Sarkozy e François Hollande.

Chegada do corpo de São Marcos a Veneza (Mosaico na Basílica de Veneza)

Foi o primeiro livro dele que li (e provavelmente o último). Esperava não propriamente um romance histórico, muito menos um ensaio, mas, pelo menos, uma ficção que incidisse directamente sobre o tema. Ora o que Rambaud nos propõe é um texto sobre costumes medievais, usando como pretexto o roubo dos restos mortais de São Marcos. Não se pode negar a ironia que perpassa ao longo das cerca de 300 páginas, mas os hábitos na corte de Luís, o Pio, soberano do Sacro Império Romano Germânico e filho de Carlos Magno e a vida na Alemanha da época, inseridos no roteiro da viagem dos venezianos e que ocupa a quase totalidade do livro, não justifica a publicitação do mesmo como tendo por tema o resgate do corpo do santo. É verdade que o título do livro remete para a capacidade de Deus para desenhar, recorrendo à designação da 6ª novela da 6ª jornada do Decameron, de Bocaccio, comparando essa inabilidade divina referida no conto com a inabilidade de Deus em desenhar a Veneza emergente no século IX, não comparável à delicadeza das posteriores pinturas de um Guardi ou de um Canaletto. Nesta perspectiva, a descrição dos venezianos e dos bárbaros que os assolavam não necessitava do episódio "São Marcos", mas foi essa a vontade do escritor.

Altar e Túmulo de São Marcos (Basílica de Veneza)

O humor característico de Rambaud está, todavia, presente ao longo do livro. Traduzo da página 50: «Em Bizâncio veneram-se os cueiros do Menino Jesus, a toalha de mesa da Última Ceia e a cana que deram como cetro a Jesus. Existe lá uma confusão de objectos piedosos, incluindo o pénis mumificado de Moisés, o cesto da Multiplicação dos Pães, o topo do crânio de João Baptista ou a esponja envinagrada com que os romanos molharam os lábios de Cristo quando ele pediu água. Afinal, dizia para si Rustico, os espartanos tinham conseguido recuperar o cadáver de Leónidas e os atenienses pretendiam deter os ossos de Teseu. Arron, rei dos Persas, oferecera o Santo Umbigo de Jesus a Carlos Magno, que por sua vez o deu ao papa Leão III. Mesmo em Rialto, no meia da laguna principal, no sítio do palácio ducal, os venezianos recolhem-se perante a relíquia de São Teodoro...».

Eu mesmo vi, há alguns anos, na capela de São Paulo, incrustada na muralha da Cidade Velha de Damasco, junto a Bab Kisan (Porta de Kisan), a réplica do cesto em que o santo foi descido para fugir da perseguição de que era alvo.

É pena que Rambaud não tenha abordado o tema de outra forma.

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