domingo, 27 de maio de 2018

A FRANÇA CONTRA MACRON




Emmanuel Macron foi eleito presidente da República Francesa, em 2017, por falta de comparência de um candidato verdadeiramente credível.

Na lª volta das Presidenciais, os candidatos dos dois grandes partidos obtiveram resultados que não lhes permitiram sequer passar à 2ª volta. Os mais votados foram os seguintes:

- Emmanuel Macron (En Marche) - 24,01 %
- Marine Le Pen (Front National) - 21,30%
- François Fillon (Les Républicains) - 20,01 %
- Jean-Luc Mélenchon (France Insoumise) - 19,58%
- Benoît Hamon (Parti Socialiste) - 6,36%

Tais resultados significaram que a França se encontrou dividida em cinco partes praticamente iguais, uma das quais aglutinando os 6,36% de Benoît Hamon e os votos despiciendos de todos os outros candidatos.

A votação de François Fillon, "herdeiro" de Sarkozy, representando o partido que fora de Charles de Gaulle e de Jacques Chirac, é explicada não só pelos escândalos em que Fillon se viu envolvido mas pelo seu programa político, indesejado pela maioria dos franceses.

Benoît Hamon, que vencera nas primárias socialistas o inqualificável Manuel Valls (uma criatura hedionda), obteve um resultado irrisório para um candidato do PSF, devido não só à decadência que vem afectando os diversos partidos socialistas e sociais-democratas europeus, mas também pela política errática e estúpida prosseguida por François Hollande, que de socialista nada tinha e foi altamente prejudicial para a França e para os franceses no plano interno e internacional.

Sendo Marine Le Pen classificada de extrema-direita e Jean-Luc Mélenchon de extrema-esquerda, o que parece ainda provocar uma certa alergia à maioria dos franceses, estes, por exclusão de partes, elegeram Emmanuel Macron, ainda que Marine Le Pen lograsse passar à 2ª volta:

- Emmanuel Macron - 66,10%
- Marine Le Pen - 33,90%


Refere "L'Obs" (nº 2793, 17 a 23 Maio 2018) que na 1ª volta 30% dos eleitores dos 18 aos 25 anos votaram assim:

- Mélenchon - 30%
- Le Pen - 21%
- Macron - 18%

Isto demonstra a desafecção dos jovens em relação ao presidente eleito, que declarou não querer ser Júpiter, como se alguém pudesse alguma vez compará-lo ao pai dos deuses da mitologia romana.

Emmanuel Macron é suposto ter sido colaborador de Paul Ricoeur, mas afigura-se que o seu pensamento está mais próximo de Jürgen Habermas, que terá sido seu precursor mental, na medida em que este considera que as antigas clivagens direita-esquerda estão mais ou menos apagadas e que os tempos vão no sentido de uma aproximação desapaixonada, "instrumental", da gestão (e da reforma) das nossas sociedades. Esta maneira de ver as coisas tem a vantagem de ser construtiva e racional mas padece de dois tipos de objecções. Em primeiro lugar, diminui a conflitualidade de base, intrínseca, das nossas sociedades, embora um dos obstáculos com que Macron se depara seja exactamente o desprezo pelo conflito de classes, porque gerir uma sociedade, sobretudo quando se pretende reformá-la de alto a baixo, não é propriamente um jogo de Meccano racional mas uma acção política, com a "arte" que ela implica. Em segundo lugar, vem a noção subjacente da "era pós-metafísica", que supõe o o fim das ideologias, o que não está provado, e que coloca a questão do rearmamento actual das religiões, com uma dimensão suplementar, geopolítica, como a reacção a uma globalização que se encontra centrada muito "ocidentalmente". Seguindo Habermas, Macron sonha com o "patriotismo constitucional" (ideia apresentada pelo filósofo em 1986), o que garantiria o respeito dos particularismos, a República e a Pátria, mas esta síntese é tudo menos estável. Que fazer dos particularismos não liberais, ou de um liberalismo diferente? Tudo matéria complexa que Macron teorizou, pretende aplicar de cima do seu pedestal, mas não se compadece com a realidade nacional que lhe incumbe administrar em nome de todos os franceses.

Num livro recente, Un ministre ne devrait pas dire ça..., Christian Eckert, que foi secretário de Estado do Orçamento, quando Macron era ministro da Economia de François Hollande, conta como Macron preparou meticulosamente e em segredo a sua candidatura ao Eliseu, utilizando o Hotel de Bercy (Ministério da Economia e Finanças) como plataforma aglutinadora de influências que seriam determinantes na constituição do partido "La République en Marche". Na realidade, em marcha atrás!
Através de um mecanismo implacável, Macron preparou a atomização do que chama o Mundo Antigo, num governo do Partido Socialista, e procedeu à "uberização" da vida económica, reprivatizando autoestradas, tentando a venda da Française des Jeux, privatizando estádios de futebol, aeroportos e preparando a vinda dos auto-empreendedores,  tudo discretamente realizado na sombra dos corredores governamentais onde sempre exerceu a sua influência liberal. Escreve Christian Eckert: «Recuando alguns meses, compreendo ter assistido ao nascimento do primeiro presidente cujo coração é um "algoritmo". Por trás de um sorriso lisonjeiro, sob aparente improvisação, há um cálculo frio e metódico: aproveitar todas as ocasiões para considerar obsoleta a esquerda - sem atacar frontalmente François Hollande - e acarinhar a direita, cujos próprios votos foram transferidos para a extrema-direita mais os negócios.»

Todavia, a tranquilidade não reina no Eliseu. E a contestação do "macronismo" invadiu a França, pela esquerda e pela direita. Não me refiro já aos partidos que se inserem institucionalmente na República, nas suas extremidades, o Front National e a France Insoumise, mas às franjas mais radicais que crescem diariamente e perturbam a paz social que Macron supunha adquirida para que o país, em sossego, continuasse "em marcha".

Nas últimas semanas, sem que a imprensa portuguesa escrita e falada dê conta da dimensão dos acontecimentos, têm-se repetido sucessivamente graves incidentes, que Macron procura disfarçar, distraindo os franceses com as suas visitas ao estrangeiro e outros fait-divers para o povo se entreter.

Centenas de jovens da "Génération Identitaire" promoveram, em Abril, uma excursão anti-imigrantes e bloquearam a fronteira franco-italiana no Col de L'Échelle (Alpes), a que se seguiu outra incursão de militantes antifascistas para "libertar a fronteira". Nas ruas de Nantes, os membros da ZAD (Zone à Défendre), os zadistas, que se opõem à construção do aeroporto de Notre-Dame-des-Landes, confrontaram as forças da ordem, encarregadas de os obrigar a dispersar, o que criou grande tensão na cidade. Ainda em Abril, militantes e simpatizantes da Action Française foram detidos para evitar uma batalha com os "antifas", em Saint-Étienne, por causa da abertura de uma delegação daquele movimento, comemorando o 150º aniversário do nascimento de Charles Maurras. Em Maio, os estudantes ocuparam a Universidade de Nanterre e manifestantes encapuçados (Black Blocs e anarquistas) do "Cortège de Tête" atacaram 31 estabelecimentos e incendiaram 6 veículos.

Estes acontecimentos (prelúdio de uma repetição do Maio de 68?) têm como denominador comum a contestação das políticas de Emmanuel Macron, decididas apenas por ele, numa postura olímpica que não se coaduna com a pluralidade da República.

Segundo o politólogo Jean-Yves Camus, estamos a assistir a um regresso da chama do radicalismo, em que se distinguem fundamentalmente seis movimentos, três de esquerda e três de direita. Verdade se diga que em alguns aspectos os extremos se tocam. Não é em vão que muitos elementos considerados antes de extrema-esquerda passaram a integrar o Front National. Porque há causas comuns e muitos, mas mesmo muitos franceses não se revêem nem na direita nem na esquerda clássicas, como o demonstraram os resultados das eleições presidenciais.

Aquele politólogo considera os seguintes movimentos de ultra-esquerda:

- Indigènes de la République - Contra o racismo e a homofobia; anti-colonialistas e anti-sionistas. Consideram a França um Estado colonial, criticaram as manifestações de apoio ao "Charlie Hebdo" e criaram o Parti des Indigenes de la République, que se insurge contra o tratamento racista aplicado ao islamólogo Tariq Ramadan.

- Comité Invisible - Colectivo anónimo que defende o comunismo utópico e insurreccional. Publicou em 2007 L'insurrection qui vient, best-seller da revolta anti-capitalista, atribuído a Julien Coupat, e em 2017 Maintenant, onde se criticava o movimento Nuit Debout.

- Cortège de Tête - Colectivo efémero defendendo o anarquismo amotinador. Esteve na primeira fila das manifestações contra a Lei El Khomri. Tem por objectivo atacar os símbolos do capitalismo. Como se escreveu acima, os seus mais de 14.000 "simpatizantes" participaram nas manifestações do 1º de Maio 2018, que atacaram estabelecimentos e veículos.

Na ultra-direita consideram-se:

- Bastion Social - De tendência neo-fascista. Em 2017 ocuparam um edifício em Lyon, para aí alojar os sem-abrigo "franceses 'de souche'", inspirando-se no movimento neo-fascista italiano CasaPound. Estão implantados em Paris, Lyon, Chambéry, Estrasburgo e Marselha.

- Action Française - Realista ultra-reaccionário. Participaram na "Manif pour tous, provocaram actos de violência em Marselha na manifestação contra a Lei El Khomri e foram detidos em Saint-Étienne, como se disse, por causa da celebração do 150º aniversário do nascimento do fundador da Action Française.

- Génération Identitaire - Racista anti-imigrantes. Em 2012 ocuparam o local de construção da mesquita de Poitiers, em 2017 organizaram-se para ajudar os sem-abrigo europeus e em 2018 pretenderam encerrar uma fronteira nos Alpes. A sua conta no Facebook foi suspensa em 3 de Maio, por "incitamento ao ódio".

Esta radicalização não nasceu com a eleição de Macron (veja-se os resultados de Mélenchon e de Marine Le Pen nas presidenciais) mas é um sinal de que grassa um profundo descontentamento na sociedade francesa. O discurso de Emmanuel Macron, explicando que não existe outro caminho possível que não seja a sua política, e que no campo político é apenas contestado por Le Pen e Mélenchon, provoca consideráveis danos. Tanto mais que os corpos intermédios estão enfraquecidos. Ao afirmar que pretende provocar um electrochoque para que o país saia do imobilismo, o presidente pode desencadear a adesão de alguns, é certo, mas origina principalmente uma enorme indignação e uma grande cólera.

Muito mais haveria a dizer, mas fiquemos por aqui. As oposições a Macron, à direita e à esquerda, demonstram que o caldo político centrista e europeísta que o presidente defende, aderindo aos postulados neoliberais, e uma disfarçada subserviência ao decadente imperialismo norte-americano, não são do agrado da maioria dos cidadãos. A "marcha" forçada a que Macron pretende obrigar os franceses poderá traduzir-se num recuo a breve trecho, correndo-se o risco de o país mergulhar num caos, para onde aliás se encaminha desde a eleição de Nicolas Sarkozy.

Macron está muito cheio de si-mesmo, mas talvez tenha de abandonar apressadamente o Olimpo para não deixar a França afundar-se irremediavelmente num pântano. Antes que seja demasiado tarde.


1 comentário:

Anónimo disse...

Como bons Escu/oteiros temos de trabalhar com o que temos.

Claro que o que temos é cada vez menos, e o que julgávamos ligado e estabelecido, com as convulsões deslaçou como a maionese.

Mas há quem as saiba salvar ...

Temos de aprender com o passado, com o fim do Império Romano do Ocidente e com a ascensão do sr Hitler.....