sexta-feira, 30 de março de 2018
A HOMOSSEXUALIDADE DE FERNANDO PESSOA
Comecei a ler o livro Homossexualidade e Homoerotismo em Fernando Pessoa, de Victor Correia. Quase 500 páginas compactas. A obra inclui uma introdução de 100 páginas e cerca de 400 páginas de transcrições dos livros hoje publicados de Pessoa (ortónimo, heterónimos, semi-heterónimo e pseudónimos) e de manuscritos existentes no espólio da Biblioteca Nacional.
Do pouco que já li, infiro que o autor está plenamente convencido da homossexualidade de Fernando Pessoa, ainda que o poeta possa não ter passado do pensamento ao acto. O que é duvidoso, ainda que possível.
Desde que mergulhei, há muitos anos, na obra de Pessoa, que, aliás, não conheço integralmente, sempre estive convicto de que o autor de Mensagem era homossexual. O trabalho exaustivo de Victor Correia, agora dado à estampa, vem confortar-me nessa convicção.
Não haverá, na infinidade de papéis de Pessoa, algum manuscrito que comprove uma prática homossexual? Ainda existem, hoje, centenas ou mesmo milhares de papéis por exumar. Ou dar-se-á o caso de se terem ocultado alguns escritos para "salvaguardar a sua imagem"! Tudo é possível.
Vou prosseguir a leitura do livro.
terça-feira, 27 de março de 2018
D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO OCASO DO ANTIGO REGIME (III)
Concluímos, com a publicação da 3ª parte, a apresentação do texto da conferência do embaixador Fernando Ramos Machado, na Sociedade de Geografia, em 20 de Março passado:
Na verdade,
a vida do Grão-Priorado do Crato parece seguir o seu rumo próprio, sem aparecer
afectada por qualquer ingerência russa. Registam-se, aliás, alguns
desenvolvimentos de relevo.
A 6 de
Novembro, seis dias antes do ofício triunfalista do Ministro russo em Lisboa, o
Príncipe Regente enviara ao Grão-Priorado o Regulamento Provisional que ele
apresentara a Hompesch e que este, como vimos, aprovara em Maio, dois meses
antes de resignar. Com este diploma, procurava-se ultrapassar o impasse criado
pela desestruturação dos organismos centrais da Ordem, no seguimento da
ocupação da Ilha pelos franceses. Era criado, na Corte, um Tribunal do
Venerando Priorado de Portugal, que substituía a Assembleia da Língua de
Castela e Portugal, que, anteriormente, funcionara em Malta, enquanto, numa
fórmula que já encontrámos, se esperava “um feliz resultado de circunstâncias,
em que seja estabelecida a Religião de Malta na sua antiga independência e
unidade”. A primeira reunião teve lugar, a 11 de Novembro, no Palácio da
Bemposta. Como Presidente do Tribunal, foi nomeado o Bailio de Acre e Fregim,
Rodrigo Manuel Gorjão, como “anciano”, isto é, o Cavaleiro mais antigo.
A 27 de
Novembro, D João comunica ao Grão-Priorado que, por motivos políticos, não
poderia usar a Cruz da Ordem, que lhe fora oferecida, permitindo, porém, que
seu filho, o Infante D. Pedro, a recebesse. Quais seriam os motivos políticos,
invocados pelo Regente? Acharia, porventura, que não deveria acumular a Chefia
do Estado com a Chefia do ramo de uma Ordem religiosa? Escrúpulos que, no outro
extremo da Europa, Paulo I não teve.
A 14 de
Dezembro de 1799, D. Pedro, com pouco mais de um ano de idade, recebeu, das
mãos de Frei Francisco de Carvalho Pinto, Gão-Prior de Hibernia, a insígnia de
Grã-Cruz, marcando a sua instalação e reconhecimento como Grão-Prior
hereditário do Crato. Essa dignidade cabia-lhe, já que era filho secundogénito,
mais novo três anos que seu irmão D. António. Na menoridade de D. Pedro, seu
pai seria Administrador do Grão-Priorado.
A Ordem de S. João de Jerusalém e a Ilha de
Malta continuavam, entretanto, a ser objecto de disputas. Ainda em 1798, a
Marinha inglesa, sob o comando de Nelson, impõe um bloqueio à Ilha. A Rússia
tentou, em vão, assumir o domínio de Malta, quer fomentando uma revolta
interna, quer aliando-se a Nápoles. Os franceses vieram a render-se, a 4 de
Setembro de 1800. Os ingleses contaram, em dois períodos, com o apoio de uma
Esquadra portuguesa, sob chefia do Marquês de Niza, tendo a sua actuação
merecido os maiores elogios. Não deixa de ser tristemente irónico que, no ano
seguinte, Portugal tenha sido “persuadido” a aceitar a ocupação da Madeira, por
forças inglesas.
Um
acontecimento imprevisto veio alterar substancialmente a situação na Europa – a
23 de Março de 1801, Paulo I era assassinado. Alexandre I retomou o título de
Protector da Ordem de S. João de Jerusalém, mas procurou pôr termo à situação
irregular em que seu pai a colocara. Desistiu de pretensões sobre a Ilha e, não
pretendendo ser Grão-Mestre, devolveu aos Cavaleiros a escolha do seguinte. Na
impossibilidade, dadas as circunstâncias, de reunir um Capítulo Geral, foi
decidido um procedimento excepcional, submetendo-se ao Papa uma lista de nomes
apresentados pelos Priorados (dela constando os portugueses Rodrigo Manuel
Gorjão e Francisco Carvalho Pinto, já aqui mencionados). Pio VII acabou por
escolher, em Fevereiro de 1803, Giovanni Battista Tommasi.
O Tratado de
Amiens, de 17 de Julho de 1802, entre França e Inglaterra, reconhecia o direito
da Ordem à Ilha de Malta, sob a alta protecção do Rei das Duas Sicílias, mas os
ingleses nunca cumpriram. Quando o Grão-Mestre Tommasi manifestou vontade de se
dirigir para Malta, não foi autorizado, pelo que ficou na Sicília (primeiro
Messina, depois Catânia). Quando morreu, em 1805, Pio VII considerou não
estarem reunidas as condições para a eleição de um Grão-Mestre, pelo que, até
1879, a Ordem de Malta foi dirigida por lugar-tenentes.
O Czar
encerrou o “episódio russo” da Ordem de Malta, confiscando, em 1810-1811, as
propriedades dos dois Grão-Priorados Russos, católico e não-católico, e
confirmou, em 1817, a sua completa dissolução. Todas as associações que,
actualmente, se apresentam como Ordens de Malta, reivindicando uma qualquer
filiação russa ou ortodoxa, são de fantasia, não assentando em nenhum
fundamento histórico ou jurídico.
Foram sendo
formuladas alternativas, para proporcionar uma base territorial à Ordem. Ainda
no final do Séc. XVIII, um Bailio alemão sugeriu a fusão daquela Ordem com a
Teutónica (como, séculos antes, se havia ponderado uma fusão do Templo e do
Hospital), a sua instalação em Ilha adriática pertencente aos Habsburgos e a
criação de uma Língua Russa, aberta aos gregos desejosos de lutar contra o
Império Otomano.
Em Novembro
de 1807, o Príncipe Regente, a Família Real e grande parte do escol dirigente
partem para o Brasil, quando as tropas invasoras napoleónicas já tinham entrado
em Território português. Nove anos antes, ao ocupar Malta, Napoleão não quisera
aprisionar os Cavaleiros, que preferiu expulsar. Agora, Junot via frustrada a
sua intenção de aprisionar o Príncipe Regente, colocando-o numa posição
idêntica à de Carlos IV e do futuro Fernando VII de Espanha. Napoleão não
abolira a Ordem de Malta, mas esta, sem Território e desestruturada, mantinha
apenas uma sombra da sua Soberania. Napoleão podia decretar que a Casa de
Bragança deixava de governar pois, no Brasil, o Príncipe Regente mantinha a
base territorial da Soberania portuguesa.
Com a queda
de Napoleão, o Congresso de Viena ocupou-se em reorganizar a Europa. Portugal
teve uma participação condigna naquele encontro, admitido no círculo das oito
principais Potências. Já a ordem de Malta não conseguiu fazer ouvir a sua voz.
Apresentou um memorial aos Soberanos e Plenipotenciários, no qual figura a seguinte
passagem: ”Tendo a Ordem sempre beneficiado da alta protecção do Príncipe
magnânimo que governa Portugal, podemos recear a perda das Comendas que foram
conservadas pelo Priorado com tanto zelo e vigilância?” É confiança que se
exprime, mas não isenta de dúvida. Com modéstia, afirma-se, no documento, que
não cabe à Ordem, mas aos Soberanos, designar o local dum futuro
estabelecimento, mas adianta-se que não deveria ser muito longe do centro do
Mediterrâneo, ter um porto seguro e capaz de acolher todos os navios, bem como
espaço para um arsenal, um lazareto, uma igreja, um hospital “ essência da
nossa instituição”. Acrescentava ainda: “A Ordem não pede grandes coisas, mas o
estabelecimento tem de ser independente e livre”.
Dois protagonistas do Congresso de Viena, Metternich
e Talleyrand, tinham planos relativamente à Ordem de Malta. O primeiro sugeria
que lhe fosse dada a Ilha de Elba, mas punha a condição de os Habsburgos terem
o direito de nomear os Grão-Mestres. Já Talleyrand, nas instruções que redigiu
para os Embaixadores franceses ao Congresso, afirmava que seria honroso, para a
Inglaterra, juntar-se às Potências católicas, para obter uma reparação para a
Ordem, à qual se “poderia atribuir Corfu, sem comprometer os interesses de
nenhum Estado da Cristandade”. Mas, nem no Congresso de Viena nem, anos depois,
no de Verona, a Ordem de Malta haveria de conseguir obter uma base territorial.
Em 1823, no
quadro da luta dos gregos pela independência, houve um projecto, de contornos
pouco claros, visando restabelecer a Ordem na sua antiga posse sobre Rodes.
Chegou a haver diligências e negociações, mas a iniciativa acabou por
fracassar.
Em 3 de
Julho de 1821, chamado pela Revolução Liberal, D. João VI estava de volta a
Portugal, deixando seu filho D. Pedro no Brasil.
Por cartas
de Janeiro de 1824, dirigidas ao Marquês de Palmela, Ministro dos Negócios
Estrangeiros, Frei António Busca, Lugar-Tenente do Grão-Mestrado, oferece ao
Rei e ao Infante D. Miguel, futuro Grão-Prior do Crato, a Grâ-Cruz da Ordem, em
sinal de regozijo pelo regresso do Brasil da Família Real. D. João, que um
quarto de século antes, declinara ostentar a Grã-Cruz de Malta, invocando
motivos políticos, recebia-a, agora, a 12 de Janeiro, em cerimónia no Palácio
da Bemposta. Mas, diferentemente do que ocorrera, em Dezembro de 1799, com D.
Pedro, a insígnia não pôde, nesta ocasião, ser entregue a D. Miguel, que se
encontrava em Viena, no seu primeiro exílio.
D. João VI
faleceu naquele mesmo Palácio, a 10 de Março de 1826, muito provavelmente
vítima de envenenamento. Vivera no ocaso do Antigo Regime, do qual, ele
próprio, em certa medida, era também a imagem. Tendo reinado em dois
Continentes, atravessou duas vezes o Atlântico, algo que, jamais, nenhum
Monarca europeu fizera. E, entre todos os Reis portugueses, foi o único a ter
sido, no decurso da sua vida, Rei absoluto e Monarca constitucional. Grão-Prior
do Crato, seguiu atentamente as vicissitudes da Ordem de Malta, num período
atribulado.
Seus filhos,
D. Pedro e D. Miguel, que também assumiram a dignidade de Grão-Prior do Crato
(VII), também reinaram, um como Monarca constitucional, o outro como Rei
absoluto. Uma guerra civil, duplamente fratricida, dividiu o País e, só no
final dela, se pôde considerar abolido, definitivamente, o Antigo Regime, em
Portugal. Em Junho de 1834, D. Miguel parte para o segundo exílio, menos de
quatro meses depois, falecia D. Pedro IV. No quadro do Decreto de 30 de Maio
desse ano, que extinguia as Ordens Religiosas, o Grão-Priorado do Crato fora
abolido e, até ao fim do século, não haveria presença da Ordem de Malta em
Portugal.
Mas, nesse
mesmo ano, 1834, a Ordem de Malta fixava a sua Sede em Roma, onde ainda hoje se
encontra, em instalações que beneficiam da extra-territorialidade. Terminava,
assim, a errância que, desde 1798, levara a Ordem, de Malta, a Trieste e S. Petersburgo,
Messina, Catânia e Ferrara. Era também o termo de uma peregrinação, começada em
Jerusalém quase 800 anos antes Despida do carácter militar que, durante
séculos, assumira tão gloriosamente, a Ordem regressava ao seu propósito
inicial, humanitário, ao serviço dos pobres e dos doentes.
* * * * *
(I) Por uma aparente ironia, não incluo, neste
número, aquele que ficou, na História Portuguesa, como “o” Prior do Crato, D.
António, sendo a razão para tal a circunstância de não ser consensualmente
reconhecido como Rei de Portugal.
(II) A
designação oficial é, actualmente, Ordem Soberana Militar Hospitalária de S.
João de Jerusalém, de Rodes e de Malta.
(III) Outros
cargos eram os de Grão-Preceptor (Provença), Grão-Marechal (Auvergne), Grande
Hospitalário (França), “Drapier” (Aragão), Almirante (Itália), “Turcopilier”
(Inglaterra), Grão-Bailio (Alemanha).
(IV) Gáfete,
Sertã, Amieira, Proença-a-Nova, Cardigos, Oleiros, Belver, Envendos, Gavião,
Tolosa, Carvoeiro e Pedrogão Pequeno.
(V)
Designadamente Leça (Bailiado), Vila Cova, Oliveira do Hospital, Vera Cruz e
Portel, Oleiros, Santa Eulália da Ordem, Águas Santas, Chavão, Ansemil,
Sernancelhe, Barrô, Frossos e Rossas, Rio Medo, Alvações, Freixiel, Abreiro,
Moura Morta, Elvas e Montoito, Fontes, Trancoso.
Num trabalho
recente, de António Brandão de Pinho, reproduzem-se 87 Brasões autárquicos, nos
quais figura a Cruz de Malta, o que ilustra bem a implantação que os
Hospitalários alcançaram no Território português.
(VI) Os
membros do Grão-Priorado, conforme vejo numa relação da altura, seriam 74,
provenientes sempre de famílias com poder e influência. O seu número deveria
ser mais ou menos constante, pois, da leitura de outras listas, verifica-se
que, entre 1692 e 1775, quase 100 portugueses terão sido admitidos na Ordem de
Malta.
(VII) Devo
ao meu caro Colega e Amigo Dr. Paulo Santos, actualmente Conselheiro na nossa
Missão junto da ONU e, anteriormente, na Embaixada em Moscovo, o ter chamado a
minha atenção para esta publicação.
(VIII) Há
alguma indefinição quanto às datas em que D. Pedro e D. Miguel foram
Grão-Priores do Crato. Como vimos, D. Pedro foi investido naquela dignidade a
14 de Dezembro de 1799. Na capa interior da “Lista dos Cavalleiros, Freires
Capellães Conventuais e Serventes D’Armas do Venerando Priorado de Portugal”,
de 1800, figura um retrato do “Sereníssimo Senhor Infante D. Pedro, Grão-Prior
do Crato”. A “Nova História da Militar Ordem de Malta e dos Senhores
Grão-Priores della em Portugal”, de José Anastácio de Figueiredo, também de
1800, porém, é “oferecida a S.A.R. o Grão-Prior actual, o Príncipe Nosso
Senhor”, isto é, o Príncipe Regente; mas D. João seria, mais propriamente,
Administrador do Priorado, dada a menoridade de D. Pedro.
A “Dissertação
Histórico-Jurídica sobre os Direitos e Jurisdições do Grão-Priorado do Crato”,
de 1809, da autoria de Pascoal José de Melo Freire, contém uma passagem, pelo
menos, que aponta noutro sentido: ”mas o Príncipe Nosso Senhor conhecendo que a
ele só, como Grão-Prior na menoridade de S.A.R. o Sereníssimo Senhor Infante D.
Miguel, a quem Deus prospere (…)”. Haveria plausibilidade para tal afirmação –
com a morte de seu irmão mais velho, D. António, em 1801, D. Pedro tornou-se
Príncipe Herdeiro. A seu irmão D. Miguel, nascido em 1802, caberia a
titularidade da Casa do Infantado e do Grão-Priorado, mas tal não se teria
concretizado, em 1809, pelo que haveria um lapso na obra (aliás póstuma, de
Pascoal de Melo).
Dois
documentos de 1821, das Cortes Gerais, saídas da Revolução do ano anterior,
afiguram-se relevantes:
Num debate,
a 9 de Maio, um Deputado, que teve conhecimento que, nesse dia, iria ter lugar
uma reunião do Grão-Priorado do Crato, no Paço da Bemposta, pretende que seja
impedida a sua realização, ainda que a mesma contasse com autorização “de S. Majestade
e do Sereníssimo Príncipe, o Senhor D. Pedro, Grão-Prior do Crato” (a votação
não vai nesse sentido).
A 7 de
Julho, escassos dias após o regresso de D. João VI a Lisboa, as Cortes aprovam
o Decreto nº 103, cujo art.º 6 estipula “Continuará El-Rei no Administração da
Casa do Infantado, consignando ao Sereníssimo Senhor Infante D. Miguel as
mezadas que julgar convenientes”. Estariam, nesse momento dissociadas as duas
titularidades, D. Pedro com o Grão-Priorado, D. Miguel com a Casa do Infantado.
D. João VI manteria a Administração desta última, ou talvez de ambas, mais provavelmente, ainda, no que toca ao Grão-Priorado, quando D. Pedro decidiu ficar no Brasil e quando, pouco depois, D. Miguel partiu para Viena, no seu primeiro exílio. D. Miguel veio a assumir ambas as titularidades, após a morte de seu pai, em 1826, e até ao final do seu Reinado, em 1834.
D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO OCASO DO ANTIGO REGIME (II)
Continuação do texto da conferência do embaixador Fernando Ramos Machado, na Sociedade de Geografia, no passado dia 20 de Março:
Mas a
entrada em cena do então ainda apenas General Napoleão Bonaparte, veio alterar
dramaticamente a situação e trazer novas e sérias ameaças para a Ordem de
Malta. Napoleão não tinha nenhuma simpatia pela Ordem, tendo-a descrito como
“uma instituição para dar apoio, na ociosidade, aos filhos mais jovens das
famílias privilegiadas”; por outro lado, tinha perfeita consciência do valor
estratégico da Ilha.
Ao tomar conhecimento da Convenção entre a Ordem e a
Rússia, que podia ser vista como um acto hostil para com a França (tenha-se
presente que o futuro Luís XVIII e a sua Corte haviam encontrado acolhimento em
Mittau, nos Estados do Czar) Napoleão ordenou, em Abril de 1797, o sequestro
das Comendas da Ordem de Malta nas regiões de Itália que as suas tropas então ocupavam,
assim agravando, ainda mais, a situação financeira da Ordem.
O Grão-Mestre Emmanuel de Rohan morre em Julho
de 1797, sendo eleito, para lhe suceder, Ferdinand von Hompesch, o primeiro
alemão a ascender àquela dignidade. Para exprimir o agradecimento da Ordem,
perante a generosidade de Paulo I, ofereceu-lhe o título de Protector, que o
Czar aceitou, a 10 de Dezembro de 1797.
Em Junho de
1798, uma esquadra francesa, em rota para o Egipto, chega à Ilha de Malta,
atacando as posições da Ordem, a qual, a 12, se rende a Napoleão, sem
praticamente ter oposto resistência. Hompesch parte para Trieste No momento da
rendição, estavam na Ilha 362 Cavaleiros, dos quais 260 franceses; portugueses
seriam, apenas, 8. Alguns Cavaleiros regressam aos seus Países, incluindo 77
franceses, 17 acompanham Hompesch, 53 alistam-se para a expedição ao Egipto,
outros acolhem-se aos Estados do Czar. Uma guarnição francesa fica a ocupar
Malta.
Quando chega
a S. Petersburgo a notícia da queda de Malta, os membros do Grão-Priorado Russo
exprimem a sua indignação, decretando, a 26 de Agosto de 1798, a destituição de
Hompesch, convidando os outros Priorados a aderir a esta decisão.
Finalmente,
a 7 de Novembro do mesmo ano, o Czar vê satisfeito o sonho que há muito acalentava:
todos os Cavaleiros presentes em S. Petersburgo elegem-no Grão-Mestre da Ordem
de S. João de Jerusalém. Pela primeira e única vez na História, um Soberano
tornava-se também Grão-Mestre da Ordem de Malta. Um mês depois, criou, ao lado
do já existente Grão-Priorado Russo, católico, um novo, ortodoxo ou, mais
propriamente, não católico.
A eleição de Paulo I foi, manifestamente,
ilegal, já que o Czar era leigo, casado e ortodoxo. Além disso, o Papa não fora
consultado e Hompesch, em Trieste, não se demitira; acabou por fazê-lo só a 6
de Julho de 1799, forçado pelo Imperador Germânico, Francisco II, de quem, em
última análise, era súbdito e para quem as relações com Paulo I se revestiam da
maior importância.
O Papa,
literalmente prisioneiro dos franceses, mal podia fazer ouvir a sua voz. A
generalidade dos Soberanos não desejaria desagradar ao poderoso Czar de Todas
as Rússias. Apenas do lado da Corte de Madrid, terá havido objecções, e não
deixa de ser extraordinário que a Rússia, em 1800, no quadro das negociações
visando a pôr termo às Guerras da Segunda Coligação, tenha exigido à França que
lhe fosse garantida a posse de Malta e que a Espanha fosse persuadida a reconhecer
o Grão-Mestrado de Paulo I.
Mas, ao
nível dos Priorados propriamente, os Cavaleiros encontravam-se divididos,
perante o evoluir dos acontecimentos. Alain Blondy, a grande autoridade sobre
este Período, resume assim a situação: um forte Partido, dirigido pelo
Cardeal-Decano Albani e agrupando os italianos, os espanhóis e os portugueses,
recusou reconhecer o Mestrado dum cismático, atrás do qual se alinhavam os
alemães, os bávaros e os franceses próximos de Luís XVIII. A iniciativa (…) de
Paulo I conduzia a um grave cisma na Ordem. Os Cavaleiros dos Países do Sul
rejeitavam um pretenso Grão-Mestre, que afastava deles a Sede da Ordem.
Portugal,
porém, encontrava-se numa posição única: A 10 de Fevereiro de 1792, perante a
demência que afectava D. Maria I, D. João assume a regência, embora em nome de
sua mãe, até 15 de Julho de 1799, quando se torna Regente, em nome próprio.
Cabe-lhe, de facto, a governação do Estado e, cumulativamente, mantém-se como
Grão-Prior do Crato.
Voltando ao
artigo fundamental de Maria Inês Versos, pode ler-se: “É assim que no momento
de impasse criado pelos interesses dos imperadores russos, aos quais a Rainha
D. Maria I e o Príncipe D. João tinham manifestado a sua solidariedade, os
membros do Priorado de Portugal afirmam perante o Regente o seu apoio aos
defensores do antigo Grão-Mestre Hompesch e a sua contestação perante os actos
ilegais dos ditos imperadores”. (VI)
Ora, do
primeiro volume, de 2004, da publicação do MNE “Relações Diplomáticas
Luso-Russas – Colectânea Documental Conjunta” (VII) constam alguns documentos
de grande interesse para compreender esta matéria. Conjugados com outras
informações, mostram-nos uma certa duplicidade de D. João, justificada pela
situação. Duplicidade, aliás, a que Diplomacia portuguesa, para preservar a
independência do Reino, se via também obrigada a recorrer, na mesma época, ao
manobrar entre as pressões inglesas e as ameaças francesas.
Como
curiosidade, veja-se que, a 27 de Dezembro de 1798, na assinatura do Tratado de
Amizade, Navegação e Comércio entre os dois Países, um dos Plenipotenciários
russos, o Chanceler, Príncipe Bezborodko, ostenta, entre os seus títulos, o de
Grã-Cruz da Ordem de S. João de Jerusalém, isto menos de dois meses após a
eleição do Czar como Grão-Mestre e imediatamente após a criação do
Grão-Priorado não-católico.
Por despacho
de 6 de Janeiro de 1799, o Secretário de Estado Luís de Sousa Coutinho
transmite ao nosso Ministro em S. Petersburgo, Francisco José de Horta Machado,
cópia da nota que escreveu ao Ministro da Rússia em Lisboa:
“Levei à
Real presença de Sua Majestade o ofício de Vossa Senhoria, em data de 24 de
Dezembro, com a declaração de sua Majestade Imperial de todas as Rússias, a
respeito da Ordem de Malta, datada de 10 de Setembro. A Rainha Fidelíssima viu
com a maior complacência o generoso interesse que sua dita Majestade se digna
manifestar a respeito de uma Ordem ilustre, infeliz e oprimida, tomando-a
debaixo da sua protecção, e Sua Majestade Fidelíssima, seguindo um tão glorioso
exemplo, oferece ao ilustre Priorado de Portugal igual protecção nos seus
Estados, esperando que um resultado feliz de circunstâncias possa restabelecer
a Ordem de Malta na sua antiga independência e unidade e na posse daqueles
domínios que lhe foram tão injustamente usurpados “.
Ao transmitir esta resposta, que afasta, com
elegância mas claramente, que a “protecção” de Paulo I abranja o Priorado do Crato,
o Secretário de Estado acrescenta, para exclusivo conhecimento do nosso
representante em S. Petersburgo, que:
"Não devo porém
omitir (…) o quanto pareceu aqui estranho que um único Priorado da Ordem se
arrogasse a autoridade de depor o seu chefe, sem o concurso dos outros e sem
que fosse citado ou ouvido para defender a sua causa”.
A Corte de
Lisboa teria, pelo menos, dúvidas quando ao comportamento de Paulo para com a
Ordem de Malta, e isto sem ter ainda conhecimento da sua eleição para o cargo
de Grão-Mestre, embora a mesma já tivesse ocorrido há meses. Não quer, contudo,
pôr em risco a aproximação que, desde há algum tempo vinha fazendo à Rússia,
como mostra o Tratado de Amizade, Navegação e Comércio, já mencionado; adopta,
pois, uma atitude prudente.
Entretanto,
ao longo de 1788, depois de ter tido de abandonar Malta, Hompesch, na qualidade
de Grão-Mestre e, em várias ocasiões, escrevera a D. Maria I e a D. João,
pedindo, designadamente, que protestem contra a invasão da Ilha, que sejam
enviados três Comendadores para Trieste, onde se encontrava, e que seja dada
autorização para utilização de parte dos rendimentos do Grão-Priorado do Crato.
A 19 de Maio
de 1799, o Czar envia instruções extensas e detalhadas ao seu Ministro em
Lisboa; quase no final, lê-se:
“Vossa
Excelência sabe do Nosso interesse que sempre manifestámos pela Ordem de S.
João de Jerusalém e ainda mais agora, desde que consentimos em aceitar o título
de Grão-Mestre (…). Não queremos que Vossa Excelência intervenha, sem obter a
Nossa autorização prévia, em quaisquer assuntos que digam respeito a essa Ordem
em Portugal, ficando unicamente autorizado a, onde for preciso, interpretar as
Nossas ideias e disposições directas, que ficam longe de atentar contra as
vantagens ou benefícios de alguém”.
Prudência,
também, por parte de Paulo I.
Na véspera,
18 de Maio de 1799, Hompesch e o Convento interino, em Trieste, haviam aprovado
o “Regulamento Provisional”, proposto por D. João, diploma importante, a que
voltarei.
A 15 de
Julho de 1799, D. João escreve ao Czar, informando-o de que assumiu a Regência
em nome próprio. O Príncipe Regente enumera os seus Títulos, que são os dos
Reis de Portugal desde D. Manuel e ocupam três linhas na carta; os do Czar
ocupam treze linhas, sendo o último deles o de Grão-Mestre da Ordem de S. João
de Jerusalém. Desta forma discreta, Lisboa aceitava a pretensão de Paulo I. Por
que razão o teria feito? A explicação vem noutro documento.
De um
despacho, de 14 de Agosto de 1799, de Luís de Sousa Coutinho para o nosso
Ministro em S. Petersburgo, destaco seguinte parágrafo:
“Nas
ratificações do Tratado de Comércio, ultimamente concluído entre uma e outra
Monarquia (…) não podiam ir todos os títulos do Imperador, por não ser esse
nunca o costume desta Secretaria de Estado (…). Porém, na carta que actualmente
escreve o Príncipe Regente nosso Senhor ao Imperador da Rússia, observará Vossa
Senhoria que se não omitiu de se lhe dar o título de Grão-Mestre de Malta, com
cuja circunstância espero ficarão aplanadas todas as dificuldades que sobre
essa matéria pudessem ocorrer”.
Assim, os
russos teriam exigido, para a ratificação do Tratado de Comércio, que figurasse
nele o título de Grão-Mestre de Malta de Paulo I. Invocando (ou pretextando?) a
prática habitual, o lado português objectou, mas encontrou um hábil expediente
para salvar o Tratado, dando satisfação ao lado russo e utilizando uma via mais
discreta (numa carta e não num tratado) para o reconhecimento do título de
Grão-Mestre.
Em Setembro
de 1799, na assinatura do Tratado de Aliança Defensiva, um dos
Plenipotenciários russos, Conde de Kotschoubey, ostenta o título de Comendador
e, outro, o Conde de Rostopsin, os de Grã-Cruz e Grão-Chanceler da Ordem de S. João
de Jerusalém. Como se recordará, o cargo de Grão-Chanceler pertencia à Língua
de Castela e era exercido, alternadamente, por um português ou por um
castelhano…
Documento
muito relevante é um ofício, de 16 de Novembro de 1799, do Ministro da Rússia,
para Paulo I. Refere um encontro com Luís Pinto de Sousa Coutinho, no qual o
Secretário de Estado, ao abordar o recém-celebrado Tratado de Aliança Defensiva,
exprimiu a apreciação da Corte de Lisboa perante os novos laços de amizade com
a Rússia e disse que ela se apressava a reconhecer o Czar como Grão-Mestre da
Ordem de S. João de Jerusalém. Sousa Coutinho teria acrescentado que o Prior
(provável lapso por Priorado, Prieuré e não Prieur) de Portugal, desunido pelas
desordens anteriores de Malta, voltara a juntar-se e responderia, a todo o
momento, à notificação oficial que lhe fora feita, pelo Vice-Chanceler.
Num
parágrafo que julgo truncado o Plenipotenciário russo menciona, por um lado, as
intrigas da Espanha, dos eclesiásticos daqui e os movimentos dos furiosos da
cabala francesa e, por outro, a firmeza do Príncipe Regente, que presta
homenagem a Paulo I na qualidade de Grão-Mestre, que ele se tinha dignado
aceitar para prosperidade pública.
O Conde
Maltits tece alguns auto-elogios à forma como geriu esta matéria e informa o
Czar que porá aos seus pés as listas dos rendimentos e os nomes de todos os
Cavaleiros portugueses.
Pareceria,
pois que, em contrapartida do Tratado de Aliança, o lado russo teria conseguido
que Portugal lhe desse satisfação no tocante à Ordem de Malta. Mas seria mesmo
assim?
(Continua)
D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO OCASO DO ANTIGO REGIME (I)
No passado dia 20 de Março, o embaixador Fernando Ramos Machado apresentou, na Sociedade de Geografia de Lisboa, uma comunicação intitulada "D. João VI e a Ordem de Malta no Ocaso do Antigo Regime". Por se tratar de um assunto de relevante interesse, e dada a inquestionável qualidade da investigação do conferencista, que é também membro da Ordem de Malta, transcrevemos, com a devida autorização, o referido texto, que, dada a sua extensão, será apresentado em três posts sucessivos:
D. JOÃO VI E A ORDEM DE MALTA NO
OCASO DO ANTIGO REGIME
Em 2018,
passam 200 anos sobre a Aclamação, como Rei, de D. João VI no, Rio de Janeiro,
pelo que é apropriado evocar a sua memória. Mas, por que razão, associar D.
João VI e a Ordem de Malta?
D. João VI
presidiu ao ramo português da Ordem de Malta, na sua qualidade de Grão-Prior do
Crato. Dos 34 Reis de Portugal, só quatro foram Grão-Priores do Crato, sendo um
deles D João VI e, dos outros três, um foi seu Pai, D. Pedro III, e, os outros
dois, seus filhos, D Pedro IV e D. Miguel. (I)
Mas esta
situação pessoal, única, não é a principal motivação do presente trabalho.
Portugal e a
Ordem do Hospital, geralmente designada, desde meados do Séc. XVI, como Ordem
de Malta (II) mantêm relações muito antigas e estreitas, tanto bilateralmente,
como sujeitos de Direito Internacional, também pela participação de portugueses
nos Órgãos de Governo da Ordem e, ainda, pela presença da Ordem no Território
português. Ora, durante mais de metade da vida de D. João VI (nasceu em 1767 e
faleceu em1826) tanto o nosso País, como a Ordem, sofreram duramente o impacto
das sequelas da Revolução Francesa, iniciada em 1789, e das Guerras
Napoleónicas. Ambos viram a própria existência ameaçada, mas sobreviveram,
atravessando os anos turbulentos do fim do Antigo Regime e emergindo,
renovados, nos Tempos Modernos. Por outro lado, para além dos choques externos,
também as dinâmicas internas haveriam de alterar as relações entre Portugal e a
Ordem de Malta, neste período e nos anos imediatamente subsequentes.
Mal previa
eu, contudo, que iria ser confrontado com vários pontos obscuros que
precisarão, pelo menos, de mais algum tempo, mais investigação e mais reflexão,
para serem deslindados, tarefas a que me proponho dedicar, e, por agora,
fico-me pelo juntar de alguns factos, mais ou menos conhecidos, contando com a
indulgência dos presentes para com a modéstia deste trabalho.
A presença
da Ordem em Território português é muito antiga, remontando à segunda década do
Séc. XII, sendo anterior, portanto, à Fundação do Reino. Os nossos Governantes
foram fazendo sucessivas concessões aos Hospitalários, a primeira das quais um
mosteiro já construído, em Leça. Foram-se instituindo numerosas Comendas que,
no seu conjunto, integravam o Priorado de Portugal, conhecido comummente, a
partir do Séc. XIV, como Priorado, ou Grão-Priorado do Crato.
A Ordem teve
origem, na segunda metade do Séc XI, em Jerusalém. A Santa Sé, há mais de 900
anos, reconheceu-lhe a independência perante todas as outras autoridades
religiosas e temporais. A partir da conquista de Rodes, em 1310, tornou-se
soberana, qualidade que mantém até aos dias de hoje. Não tendo transferido a
sua Sede para a Europa Continental (diferentemente do que fizeram os Templários
e se lhes tornou fatal) a Ordem do Hospital constituiu, durante séculos, uma
Potência naval de primeiro relevo no Mediterrâneo, combatendo o expansionismo
otomano e os piratas do Norte de África.
De carácter multinacional e supranacional, a
Ordem estruturava-se nas chamadas Nações ou Línguas: França, Provença,
Auvergne, Itália, Alemanha, Inglaterra e Espanha. Esta última subdividiu-se, no
Séc. XV, nas de Aragão (que incluía Navarra) e de Castela (que incluía
Portugal); a de Inglaterra foi suprimida no Séc. XVI, sendo, no final do séc.
XVIII, criada a Anglo-Bávara. A cada Língua cabia, de Direito, um cargo na
estrutura governativa da Ordem, sendo que à de Castela pertencia o de Grão
Chanceler, exercido, alternadamente, por um castelhano e por um português.
(III)
A posição
suprema na Ordem, a de Grão-Mestre, era (e é) electiva e vitalícia. Até ao Séc.
XVIII, apenas dois portugueses exerceram aquela função, e por períodos muito
curtos - Afonso de Portugal, filho natural de D. Afonso Henriques (1202-1206) e
Luís Mendes de Vasconcelos (1622-1623). O Séc. XVIII, contudo, já foi designado
“ O Século português de Malta “. O prestígio alcançado pela participação
portuguesa na Batalha Naval de Matapão, em 1717, terá sido relevante na eleição
de António Manoel de Vilhena, em 1722, como Grão-Mestre da Ordem de Malta, à
frente da qual ficou até 1736, sendo a sua governação objecto de consensual
aplauso. Ainda mais longo e igualmente brilhante, foi o Grão-Mestrado de Manuel
Pinto da Fonseca (1741-1773); foi ele que consolidou os títulos de Príncipe,
Alteza Eminentíssima, e fez encimar o escudo das suas armas com uma coroa
fechada, como a dos Reis. Porém, como por vezes acontece, o pináculo do
esplendor antecedeu, apenas em alguns anos, a ruína da Ordem de Malta.
Entretanto,
em Portugal, e como uma face da centralização do Poder, os Reis tinham
procurado subordinar as Ordens Religiosas Militares, cerceando, drasticamente,
a sua autonomia. Tal processo pode-se considerar concluído, em 1551, no tocante
às Ordens de Cristo, Aviz e Santiago, com a união perpétua dos Mestrados à
Coroa, tornando-se o Rei Governador e Administrador das mesmas. Não teve lugar,
porém, no tocante ao ramo português da Ordem de Malta, por se reconhecer o
carácter “estrangeiro” da mesma. Mas, em todo o caso, não deixaram os Soberanos
de procurar trazer aquele ramo para a sua órbita, designadamente pela
indigitação de familiares seus para o cargo de Prior do Crato. Tal ocorreu em
relação ao Infante D. Luís (o primeiro que se intitulou Grão-Prior), filho de
D. Manuel e irmão de D. João III, e em relação ao filho natural de D. Luís, D.
António, “o” Prior do Crato.
Após a
Restauração, D. João IV instituiu a Casa do Infantado, dotada de um substancial
património, com vista a garantir uma situação financeira mais confortável aos
Filhos Segundos dos Reis. A intenção do Monarca era que o Senhor da Casa do
Infantado acumulasse, com aquela posição, a dignidade de Grão-Prior do Crato. A
indigitação do Infante D. Pedro (futuro Rei D. Pedro II) não foi aceite pelas
instâncias da Ordem. Mas, em 1675, a Santa Sé reconheceu aos Reis de Portugal o
direito de nomear os Infantes Grão-Priores do Crato, sem interferência do
Grão-Mestre; isso veio a concretizar-se com o filho de D. Pedro II, o Infante
D. Francisco (Grão-Prior de 1695 a 1742) e com o Infante D. Pedro, filho de D.
José e futuro Rei D. Pedro III, pelo seu casamento com D. Maria I (Grão-Prior
de 1742 a 1786).
E chegámos,
assim, à altura do nascimento do futuro D. João VI, a 13 de Maio de 1767, em
Queluz. Era filho, pois, da Princesa D. Maria, futura Rainha D. Maria I, e do
Infante D. Pedro, tio dela, Senhor da Casa do Infantado e Grão-Prior do Crato,
futuro Rei D. Pedro III. Em Malta, Pinto da Fonseca reinaria ainda por mais
seis anos e, em Portugal, D José, e o seu poderoso Ministro, por mais dez;
estava-se em pleno Despotismo Esclarecido.
D. João era filho
segundo, não se previa que viesse a reinar; o futuro Soberano deveria ser o
Príncipe D. José, mais velho que ele seis anos. A D. João caberia, entre outros
títulos, os de Senhor da Casa do Infantado e de Grão-Prior do Crato. D. Pedro
III conservou aquelas duas posições, até à morte, em 1786; sucedeu-lhe nelas D.
João, o qual, com a morte de seu irmão, o Príncipe D. José, dois anos depois,
viria a ocupar o primeiro lugar na linha de sucessão ao Trono.
Um
desenvolvimento muito relevante teve lugar então, quanto à situação da Ordem de
Malta em Portugal. O Papa Pio VI, dando satisfação a um pedido formulado por D.
Maria I, decreta (Bula Expedit Quam
Maxime, de 24 de Novembro de 1789) por um lado, a automática acumulação das
posições de Senhor da Casa do Infantado e de Grão-Prior do Crato e, por outro,
que “fique unida e incorporada ao património e Casa do Infantado, acima dita, a
Administração do dito Priorado do Crato”. E, pela Bula Quoniam Ecclesiasticum, de 8 de Janeiro de 1793, confirma a
independência, perante Malta, da Administração do Grão-Priorado do Crato, no
domínio temporal, e declara a sua dependência exclusiva perante a Santa Sé, no
tocante à jurisdição espiritual.
Tem sido
discutido a alcance daquelas medidas, sendo uma das opiniões a de que, com as
decisões papais de 1789 e 1793, “se deu a separação plena e perpétua do
Grão-Priorado do Crato da Soberania da Ordem de Malta”. Mesmo sem este
radicalismo, afirma-se com frequência que o Grão-Priorado do Crato “ficou
independente de Malta e integrado na Casa do Infantado”. A aceitar-se esta
interpretação, não seria compreensível a História das quatro décadas
subsequentes. Ora, para Maria Inês Versos, que estudou este assunto em
profundidade, o braço português da Ordem de Malta foi sempre, formalmente,
reconhecido como parte de uma estrutura internacional. E, quanto à integração,
na Casa do Infantado, da Administração, sublinho, da Administração do
Grão-Priorado, Maria Inês Versos destaca que dizia respeito apenas à Comenda
Prioral, isto é, à Comenda associada à dignidade de Grão-Prior; era
opulentíssima, abrangendo, além da Vila do Crato, doze povoações (IV) mas não
constituía a totalidade do Priorado, o qual compreendia, ainda, mais de uma
vintena de Comendas (V) que continuariam a ser administradas pela Ordem, como
até ali. Contra a tese da separação, refira-se que a Bula Expedit Quam Maxime estipula responsões , isto é, os montantes com
que os ramos nacionais estavam obrigados a contribuir para o Tesouro Comum,
fixando-os em 7.500 Cruzados, em Moeda Portuguesa, por ano, mais 400 mil Reis,
por Annata e Mortorio. E os próprios termos em que a Bula recorda o que se
passara com as Ordens de Aviz e Santiago parecem indiciar que, no tocante à
Ordem de Malta, a solução adoptada era bastante diferente – às decisões de seus
predecessores, quando “separaram as Ordens Militares de Aviz, e de Santiago de
Velles, no Reino de Castela, e concederam perpetuamente a Administração, e
Grão-Mestrado delas, e da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo; aos Reis
de Portugal”, Pio VI contrapõe - “pelo teor das presentes; unimos,
incorporamos, ordenamos e declaramos que fique unida e incorporada ao
Património, e Casa do Infantado, acima dita, a Administração do dito Priorado
do Crato, do referido Hospital”.
Assim,
afigura-se que, nos casos de Aviz e Santiago houvera dois momentos: primeiro,
numa lógica nacional, a separação dos ramos portugueses dos troncos castelhanos
e, depois, em 1551, numa lógica política e financeira, a incorporação dos
respectivos Mestrados na Coroa. No caso da Ordem de Malta, não se verificou um
corte com o Grão-Mestrado, mas a incorporação, e apenas parcial, do património
da Ordem em Portugal na Casa do Infantado.
A Expedit Quam Maxime, de Novembro de 1789
terá produzido algum abalo nas finanças da Ordem. Mas nada teve de comparável
com o processo que, quatro meses antes, começara com a tomada da Bastilha. Para
a Ordem de Malta, a Revolução Francesa teve o efeito de um terramoto e de modo
não circunscrito aos aspectos financeiros. No caso português, o Papa acedera ao
pedido de uma Rainha, devota e Fidelíssima, no sentido de fortalecer a sua
Família, em termos principalmente económicos, no culminar de séculos de
progressiva centralização do poder real. Já em França, a Ordem de Malta sofria
os ataques desferidos pelos revolucionários, contra as instituições de carácter
religioso e/ou aristocrático. A Ordem de Malta era vista como representativa do
Antigo Regime, do Trono e do Altar, como então se dizia. Se o respeito pelo
carácter “estrangeiro” ainda funcionou como travão, durante algum tempo, em
1792 foram-lhe confiscados todos os bens. Foi um golpe quase fatal, pois era em
França que a Ordem de Malta obtinha mais de metade do seu rendimento total. A
urgência de compensar aquela perda iria ter, e a muito curto prazo, sérias
consequências.
A Espanha,
em particular nos tempos de Carlos V e Felipe II, e a França, de Luís XIV e
Luís XV, tinham mantido estreitas relações com a Ordem de Malta, o que era
normal, tratando-se de Potências católicas e bem presentes no Mediterrâneo. Um
parceiro imprevisível iria surgir agora – a Rússia. Para o compreender, há que
recuar alguns anos.
Uma longa
disputa jurídico-política, na Polónia, tivera o seu termo, em 1774, de forma
muito satisfatória para a Ordem de Malta, com a criação de um Grão-Priorado
Polaco. Ora, em 1793, o território em que se situavam estes domínios, Ostrog,
na actual Ucrânia, passaram para a posse da Rússia, nos termos da Segunda Partilha
da Polónia. Para a Ordem, afectada pelas recentes perdas em França, era vital
negociar com S. Petersburgo, para garantir o rendimento das suas propriedades
polacas. Mas Catarina II não mostrou pressa. Albergava possivelmente algum
ressentimento contra a Ordem que, ainda que com habilidade diplomática,
repelira as aproximações da Imperatriz (as primeiras das quais datadas de 1764,
ainda no tempo de Pinto da Fonseca). Catarina procurara arrastar a Ordem de
Malta para uma suposta aliança contra a Turquia (quando o perigo otomano já se
desvanecera) e, sobretudo, pretendera que os navios de guerra russos pudessem
ter direito de entrada permanente no porto de La Valletta. Conseguira, apenas,
que o Grão-Mestre Rohan enviasse a S. Petersburgo, para apoiar tecnicamente a
renovação da Armada russa, o Bailio Giulio Litta, aristocrata lombardo que, com
seu irmão Lorenzo, Núncio em Varsóvia, haveria de desempenhar um papel de
destaque, ainda que mais que controverso, nos acontecimentos que se
seguiram.
Estes viriam
a precipitar-se a grande velocidade, o que, aliado à lentidão das comunicações,
originou não poucos mal-entendidos. Catarina II morreu em Novembro de 1796. A
Ordem terá considerado como uma bênção providencial que lhe sucedesse seu filho
Paulo; diferentemente de Catarina, o novo Czar não teria particular interesse
pela posição estratégica da Ilha, mas, desde muito novo, nutria uma admiração
sem limites pela Ordem de Malta. As negociações, conduzidas, do lado maltês,
pelo Bailio Giulio Litta, concluíram-se de um modo que excedia as expectativas
mais optimistas da Ordem – logo em Janeiro de 1797 é assinada uma Convenção,
pela qual Paulo I reconhece à Ordem a propriedade virtual das suas antigas
possessões polacas, no quadro de um Grão-Priorado russo que criava, com
rendimento anual de 300 mil Florins, isto é, 2,5 vezes superior ao que fora
previsto aquando da constituição do Grão-Priorado polaco. Para o cargo de
Grão-Prior, designa o Príncipe de Condé e nomeia Cavaleiros numerosos emigrados
da Corte do futuro Luís XVIII.
(Continua)
Subscrever:
Mensagens (Atom)