O famoso industrial Gustav Krupp |
Foi publicado em finais do ano passado, e logo obteve o Prémio Goncourt 2017, o pequeno livro de Éric Vuillard, L'ordre du jour, que o autor classificou como récit, pois não sendo uma novela ou um romance, situando-se antes a meio caminho de um livro de história, tal classificação permitiu-lhe concorrer ao referido prémio.
Nesta obra, Vuillard evoca o Anschluss (a Anexação da Áustria pela Alemanha, em Março de 1938), os seus antecedentes e as suas consequências.
Começa por descrever a célebre reunião secreta de 20 de Fevereiro de 1933, em que 24 homens distintos, verdadeiros cavalheiros, representantes máximos da indústria e das finanças da Alemanha, se reúnem no Reichstag, acolhidos por Göring, para ouvirem da boca do Führer os seus projectos acerca do futuro da Alemanha, a que, naturalmente aquiesceram. Os seus nomes são-nos, na maioria, desconhecidos, talvez à excepção de Gustav Krupp, mas não as empresas de que eram proprietários, que floresceram antes e durante o III Reich, e continuaram prósperas nos nossos dias, como se nada tivesse acontecido entre o princípio dos anos 30 e o fim dos anos 40 do século passado. Vejamos: além da Thyssen-Krupp, figuravam a BASF, a Bayer, a Agfa, a Opel, a IG Farben, a Siemens, a Allianz, a Telefunken, a BMW, a Daimler, a Shell, a Schneider, etc. Foram estas empresas que sustentaram o esforço de guerra nazi e utilizaram para o seu trabalho os deportados e os prisioneiros do regime.
A tibieza do Ocidente face ao projecto megalómano de Adolf Hitler é indesculpável, embora os políticos tenham tentado isentar-se de culpas nas suas memórias do pós-guerra.
Quando o Conde de Halifax, várias vezes ministro, antigo vice-rei das Índias e então Lord Presidente do Conselho, aceitou o convite pessoal de Göring para uma caçada, deslocando-se à Alemanha, em Novembro de 1937, não poderia ignorar a máquina de guerra que estava em movimento. Halifax encontrou-se mesmo com Hitler em Berchtesgaden, prosseguindo a sua "política de desanuviamento", obviamente ineficaz. A propósito dessa entrevista com o Führer, escreverá a Baldwin: «Le nationalisme et le racisme sont des forces puissants, mais je ne les considère ni contre nature ni immorales!». E mais tarde: « Je ne puis douter que ces personnes haïssent véritablement les communistes. Et je vous assure que si nous étions à leur place, nous éprouverions la même chose.» (p. 32). Uma cegueira, quando era sabido que alguns dias antes Hitler havia confiado aos seus chefes militares a intenção de ocupar pela força uma parte da Europa, em primeiro lugar Áustria e a Checoslováquia, numa espiral delirante sobre os destinos do povo alemão, na linha de Herder, Fichte, Hegel e Schelling, a fim de alargar o "espaço vital" (lebensraum) indispensável ao crescimento da nação.
A Áustria tinha já enveredado por um caminho autoritário pela mão do chanceler Dolfuss, todavia julgado insuficiente pelos militantes nazis, que viriam a assassiná-lo. O seu sucessor, Schusnigg, prosseguiu a política repressiva de Dolfuss, proibindo os sindicatos, perseguindo os socialistas, instaurando a censura e mantendo uma diplomacia hipócrita e sinuosa com o Reich. Mas Hitler queria mais e em 12 de Fevereiro de 1938 chamou Kurt von Schusnigg ao Berchtesgaden. Tratava-se de um diktat. Acolhido por von Papen é recebido por Hitler que o acusa de traição aos interesses do Reich. E apresenta o ultimato: Que a Áustria e a Alemanha se consultem sobre as relações internacionais que interessem aos dois países, que as ideias nacionais socialistas sejam autorizadas na Áustria e libertados todos os presos nazis, incluindo os criminosos confessos, e que o nazi Seyss-Inquart seja nomeado ministro do Interior, dotado de plenos poderes e o nazi Glaise-Horstenau ministro da Guerra. Em contrapartida, a Alemanha reafirma a independência da Áustria. O chanceler austríaco tenta algumas modificações nos detalhes, ao menos para salvar a face. O Führer é inflexível e Schausnigg acaba por ceder. Mas utiliza uma última e inesperada jogada, que deixa Hitler perplexo. Segundo a Constituição, cabia ao presidente da República nomear os membros do Governo. Hitler, que não cuidava destes detalhes constitucionais mas pretendia salvar as aparências, fica momentaneamente desconcertado. Mas acaba por exigir a execução do acordo num prazo de cinco dias.
Todavia, surgiu o imprevisível. O presidente da República, Wilhelm Miklas, uma figura puramente decorativa, resolve não aceitar a demissão de Schaunigg. É o pânico. Ninguém esperava semelhante atitude do filho de um carteiro que ocupava, na circunstância, a chefia do Estado. Mas perante as manobras militares iniciadas por Hitler na fronteira, aceita ceder poucas horas antes de expirar o ultimato. Era tarde. A 12 de Março, as tropas da Wehrmacht entram em território austríaco e a 13 a Alemanha anuncia a sua anexação, como mais uma província do Reich. Em 10 de Abril, um plebiscito avalizará a anexação com uma votação de 99,75% de votos favoráveis !!!
No dia seguinte, conta o autor, Neville Chamberlain, primeiro-ministro de Sua Majestade, oferece um almoço de despedida a Joachim von Ribentrop, que cessara as funções de embaixador em Londres por ter sido nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros do Reich. Ribbentrop é uma personagem sui generis, um bom conversador, amador de desportos, fluente em línguas estrangeiras, com notável capacidade de sedução. O almoço prolonga-se e entretanto é entregue uma missiva a Chamberlain anunciando a invasão da Áustria. O primeiro-ministro britânico tenta abreviar o almoço e alguns convidados, apercebendo-se da situação, começam a retirar-se, mas Ribbentrop permanece, arranjando motivos para se demorar. Até que Chamberlain, invocando razões de Estado, dá por terminada a recepção. Conhecedor de tudo o que se estava a passar, Ribbentrop, como grande comediante que era, aproveitara a oportunidade para uma grande representação no seu melhor estilo.
Hitler, ele mesmo, desloca-se a Viena, e é recebido apoteoticamente pelas massas, as que restaram das purgas anteriores. Mas é indesmentível que o Führer, como tem sido geralmente descrito, possuía uma capacidade magnética de atracção, quase um dom hipnótico, o que lhe terá permitido galvanizar muitos espíritos, mesmo os mais cépticos às suas teses e aos seus subterfúgios. Falando de uma tribuna frente ao Hofburg, electriza o povo que, compactamente, o aplaude na Praça dos Heróis.
O mundo continua a tolerar a expansão do Reich, fingindo ignorar os progressos da sua máquina de guerra. Num derradeiro, e patético, esforço, os primeiros-ministros britânico e francês, Neville Chamberlain e Édouard Daladier vão a Munique, em 29 de Setembro de 1938, para assinar com Hitler e Mussolini o célebre Acordo que permite a invasão de parte da Checoslováquia, com a garantia, efémera, de que será a última anexação de Hitler. No seu regresso, Chamberlain e Daladier são recebidos como heróis pelos seus compatriotas, mas não ignoram já o desfecho da farsa a que se prestaram.
Em 10 de Março de 1939, Hitler, desrespeitando os termos do Acordo, ordena a invasão do resto da Checoslováquia. Depois, conhecemos o que se seguiu...
Sendo uma obra ficcionada, apenas se registaram os aspectos propriamente históricos, mas o livro bem merece uma leitura, até porque é breve e bem escrito e num estilo particularmente agradável.
Seja-me permitida uma nota. Não me espanta o acolhimento dos austríacos ao Führer. Sempre o nazismo encontrou na Áustria um terreno fértil para prosperar. E o presente governo de Viena é disso exemplo. Mais. Mesmo na Alemanha, particularmente na Baviera, continua a ser patente o saudosismo do nacional-socialismo e da figura que melhor do que ninguém o incarnou. Uma breve estada em Munique é o suficiente para confirmar esta asserção.
1 comentário:
O que teria acontecido ao Mundo sem a URSS? Viva seria a minha avó se não tivesse falecido,mas que ,por vezes,dá vontade de pensar nisso,lá isso dá...
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