sábado, 12 de março de 2016

A FILARMÓNICA DE BERLIM DURANTE O III REICH



A recente edição do DVD The Reichsorchester (The Berlin Philharmonic and the Third Reich) é um importante documentário, realizado por Enrique Sánchez Lansch) sobre um período que tem permanecido mais ou menos oculto do público em geral: a actividade da Orquestra Filarmónica de Berlim durante o regime nazi, incluindo os depoimentos dos dois únicos sobreviventes daquela instituição na altura da realização desde disco, isto é, em 2004.

A Orquestra Filarmónica de Berlim nasceu de uma rebelião. Em 1882, alguns músicos descontentes abandonaram a Bilse Kapelle de Berlim e fundaram a sua própria formação que rapidamente se tornou uma das mais famosas da Europa. Em 1903, constituíram-se em sociedade de responsabilidade limitada, da qual eram eles mesmos os accionistas: a Berliner Philharmonisches Orchester. O conselho de administração, que era designado por cooptação, dirigia toda a vida da Orquestra, da programação ao orçamento, passando pelos ensaios e pelos contratos.

Apesar do elevado nível das suas actuações e do prestígio que desde o início granjeou, a jovem Orquestra viu-se confrontada com dificuldades financeiras permanentes. De acordo com o seu estatuto de empresa privada os seus recursos eram limitados. A seguir à Primeira Guerra Mundial e à terrível inflação que atingiu a Alemanha a estrutura económica da Orquestra fragilizou-se ainda mais, não obstante os sucessos artísticos que foi acumulando sob a direcção do extraordinário maestro Wilhelm Furtwängler. Em 1933, aquando da subida ao poder de Adolf Hitler, as caixas estavam vazias.



Como se tornaria óbvio, quer Hitler, quer Goebbels, o seu ministro da Propaganda, compreenderam rapidamente que a Orquestra representava um formidável porta-voz cultural (e, pour cause, do novo regime) tanto na Alemanha como no estrangeiro. Em Outubro de 1933 o ministério de Goebbels tomou nas suas mãos o financiamento integral da Orquestra e em 15 de Janeiro de 1934 o Estado comprou a totalidade da sociedade que se tornou assim uma orquestra do Estado (Reichsorchester). Os músicos perderam naturalmente o seu estatuto de accionistas e passaram a funcionários. Foi assim que a Orquestra foi salva da falência mas que, ao mesmo tempo, a transformou em embaixador cultural do Reich nazi.

O ministério da Propaganda designou um director encarregado de gerir todos os assuntos da Orquestra e de velar pelo cumprimento do princípio da uniformização (Gleichschaltung) ao qual estavam submetidas todas as instituições alemãs, ou seja, a sua conformidade com a ideologia nazi. O primeiro director foi Rudolf von Schmidtseck, depois substituído por Karl Stegman, que reorganizou a formação e aplicou fielmente os princípios ideológicos do regime, incluindo as directrizes antisemitas.

Durante a era nazi, cerca de 18% dos 103 músicos inscreveram-se progressivamente no partido nazi, mas a Orquestra contou sempre no seu seio com adversários do regime, ainda que ocultassem cuidadosamente as suas convicções. Em 1933, a Orquestra possuía quatro músicos judeus, que foram declarados persona non grata e acabaram por abandonar o país entre o outono de 1934 e o fim de 1935, não obstante os esforços de Furtwängler para retê-los.

O poder que Goebbels passou a exercer sobre a Orquestra Filarmónica de Berlim marcou o início de uma nova era e traduziu-se em numerosas vantagens para os músicos. O regime garantia a segurança financeira da Orquestra que gozava de um verdadeiro tratamento de favor; os músicos eram mais bem pagos que nas outras orquestras alemãs em virtude da nova grelha normalizada de salários, frequentavam as elites culturais e políticas, recebiam gratificações pelo Natal e, aos mais eminentes, eram-lhes fornecidos instrumentos de apreciável valor.

De todas estas vantagens, talvez a mais importante fosse o estatuto de indispensabilidade  (Unabkömmlichstellung ou Uk-Stellung) que, dado o carácter único e a importância da sua função, isentou todos os músicos do serviço militar desde a entrada da Alemanha em guerra, em 1939. Durante todo o conflito, houve a deplorar a morte de apenas oito músicos, dos quais só dois em combate.

A Orquestra, enquanto dirigida por Furtwängler e até 1944, apresentava mensalmente um concerto e uma ante-estreia. A partir dessa data os programas começaram a ser repetidos até quatro vezes para satisfazer os pedidos do público. Em 1936, a Orquestra participou nas cerimónias inaugurais dos Jogos Olímpicos de Berlim e em 1938 produziu-se no congresso anual do partido nazi em Nuremberga. Exibiu-se na Exposição Universal de Paris (1937) e nas Jornadas Musicais do Reich, em Düsseldorf (1938-1939). Realizou concertos privados no ministério da Propaganda e na Chancelaria (1938-1939) e ainda na catedral de Berlim em 1944. A partir de 1937 tornou-se de uso um concerto anual retransmitido pela rádio, para celebrar o aniversário do Führer. Durante a guerra a Orquestra efectuava concertos especialmente para os soldados e  nos mais diversos lugares, como parques, estádios e fábricas, e até na antiga Aldeia Olímpica.

Uma outra série de concertos nasceu da colaboração com a organização "Kraft durch Freude" ("A força pela alegria"), uma instituição cultural e política nazi que tinha por objectivo favorecer o reaproximamento entre os artistas e a população. A Orquestra devia também colocar-se ao alcance de um público tão vasto quanto possível testemunhando assim o génio musical de toda a nação.

Desde o seu começo, a Orquestra efectuou numerosas digressões, quer na Alemanha quer no estrangeiro, o que lhe permitiu estabelecer uma indesmentível reputação internacional. Entre os seus destinos mais frequentes contam-se a França, a Grã-Bretanha, a Escandinávia, a Itália, os Países-Baixos e a Bélgica.

Na noite de 30 de Janeiro de 1944, exactamente onze anos após a ascensão de Hitler ao lugar de chanceler, a sala de concertos da Orquestra foi destruída por um bombardeamento aéreo britânico, presumivelmente intencional. Não só o edifício como inumeráveis instrumentos, partituras e documentos foram destruídos. Privada de tecto, a Orquestra apresentou-se depois em diversos locais: na Ópera de Estado, no Admiral-Palast, na Volksbühne ou mesmo na catedral.

Nos últimos meses de guerra a Orquestra abriu-se especialmente ao grande público. Predominam as retransmissões radiofónicas e os espectáculos para grandes massas populares. Em 11 de Abril de 1945, Albert Speer, ministro do Armamento,  pediu à Orquestra para efectuar um concerto especial nos locais não aquecidos da Sala Bethoven. A soirée terminou com a cena apocalíptica de O Crepúsculos dos Deuses, de Richard Wagner.

Os últimos concertos da Orquestra tiveram lugar em meados de Abril de 1945. Nas semanas seguintes a Orquestra emudeceu. Alguns músicos participaram nos últimos combates, voluntariamente ou à força, enquanto outros se esconderam nos arredores ou abandonaram a cidade. Após o fim das hostilidades os músicos procurarm reunir-se de novo. Algum tempo depois da capitulação retomaram oficiosamente contacto e procuraram um local para reunir e para fazer com que a Orquestra renascesse das cinzas.

Em 1945, Furtwängler era ainda considerado o chefe incontestado da Orquestra mas o seu futuro era altamente precário. Os músicos elegeram Leo Borchard para os dirigir e celebrar a sua ressureição musical. Em 26 de Maio de 1945, apenas duas semanas depois do desmoronamento do Terceiro Reich, Borchard dirigiu o primiero concerto da Orquestra Filarmónica de Berlim do pós-guerra; o acontecimento teve lugar no Titania Palast de Berlim. Como sinal de esperança a primeira obra do programa era nem mais nem menos do que a Abertura do Sonho de uma Noite de Verão, de Mendelssohn, compositor judeu que fora banido pelo regime nazi.

A ítulo de curiosidade, indicam-se os maestros titulares da Orquestra:

- Ludwig von Brenner (1882-1887)
- Hans von Bülow (1887-1892)
- Arthur Nikisch (1895-1922)
- Wilhelm Furtwängler (1922-1945)
- Leo Borchard (Maio-Agosto de 1945) - Morto por forças de ocupação norte-americanas em Berlim
- Sergiu Celibidache (1945-1952)
- Wilhem Furtwängler (1952-1954)
- Herbert von Karajan (1954-1989)
- Claudio Abbado (1989-2002)
- Simon Rattle (desde 2002)

No tempo de Hans von Bülow, foram maestros convidados Hans Richter, Felix von Weingartner, Richard Strauss, Gustav Mahler, Johannes Brahms e Edvard Grieg.


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