Acabei hoje a leitura (com algum atraso), do romance Boussole, de Mathias Énard, que obteve o Prémio Goncourt deste ano. Confesso que é uma das obras mais interessantes que li nos últimos tempos. O livro é uma viagem no espaço (e no tempo) em que o narrador (o autor) percorre (e descreve, não gratuitamente mas por força do próprio plot) Viena, Istanbul, Teerão, Damasco, Alepo, Palmyra, e alguns outros locais menos conhecidos da Síria. Ao percorrer as quase 400 páginas do livro, senti-me transportado àqueles lugares e percebi as emoções do autor. Conheço razoavelmente Viena, certamente melhor Istanbul, conheço (ou conheci, ignoro o que resta) Damasco e Alepo, estive uma vez em Palmyra. Faltou-me Teerão, aonde estava para ir há alguns anos, mas um acidente pouco antes da partida impediu-me a deslocação.
Neste romance, que na verdade oscila entre o romance e o ensaio, Mathias Énard convoca o passado para iluminar o presente, e as suas referências históricas, literárias, musicais, plásticas, sexuais, políticas fazem do livro um monumento de erudição ou, melhor dizendo, de cultura. A informação, nunca fastidiosa, que o livro nos fornece é simplesmente impressionante, talvez porque decorra de um sonho. Não é em vão que o autor escreve: «Nos rêves sont peut-être plus savants que nous.» (p. 57)
A estória propriamente dita narra as viagens, os encontros e desencontros, as emoções e as recordações do protagonista, Franz Ritter, um musicólogo de Viena (um alter ego do autor) apaixonado pelo Oriente. E também o seu amor impossível por Sarah, uma investigadora que é a outra personagem central da obra. Tudo envolto na atracção fatal pelo Oriente, exercida sobre os aventureiros, os sábios, os artistas, os viajantes ocidentais.
Ao longo do livro são inúmeras as referências a Fernando Pessoa, nomeadamente à sua versão para português, a partir da tradução inglesa de Edward FitzGerald, dos "Quartetos" (Ruba'iyat) do célebre poeta persa Omar Khayyam (séc. XI-XII). Aliás, no que a Portugal toca, não é só Pessoa que várias vezes é mencionado, também são diversas as alusões aos Descobrimentos portugueses, a Vasco da Gama em particular, e à nossa presença na Índia.
Uma figura particularmente focada é a do orientalista austríaco Joseph von Hammer-Purgstall (1774-1856), sábio eminentíssimo, tradutor de textos de autores árabes, persas e turcos e que foi embaixador do Império em Constantinopla. Hammer-Purgstall foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Academia das Ciências de Viena, e em 1959, aquando da sua criação, o instituto austríaco para os estudos orientais prestou-lhe homenagem assumindo a designação de Sociedade Oriental Austríaca Hammer-Purgstall (Österreichische Orient-Gesellschaft Hammer-Purgstall).
O protagonista do livro (tal como o autor) é judeu, mas não se vislumbra no texto qualquer exaltação "sionista"; pelo contrário, é manifesta a simpatia pelo mundo árabe (e muçulmano em geral) e em particular pelos sírios, especialmente referidos no "Envoi" que conclui a obra. É evidente que Mathias Énard expressa algumas vezes a sua condenação do anti-semitismo, e é particularmente crítico em relação a Richard Wagner. Transcrevo uma passagem: «Dieu merci les informations sont terminés, retour à la musique, Mendelssohn et Meyerbeer, les ennemis jurés de Wagner, surtout Meyerbeer, objet de toute la haine wagnérienne, terrifiante haine dont je me suis toujours demandé si elle était la cause ou la conséquence de son antisémitisme: Wagner devient peut-être antisémite parce qu'il est atrocement jaloux du succès et de l'argent de Meyerbeer. Wagner n'est pas à une contradiction près: dans Le Judaïsme dans la musique il insulte Meyerbeer, ce même Meyerbeer auquel il a passé la brosse à reluire pendant des années, ce même Meyerbeer qu'il a rêvé d'imiter, ce même Meyerbeer qui l'a aidé à faire jouer Rienzi et Le Vaisseau fantôme. "Les gens se vengent des services qu'on leur rend", disait Thomas Bernhard, voilà une phrase pour Wagner".» (p. 235)
Como seria inevitável, um perfume discreto de homossexualidade perpassa pelo livro.
«Pour les travaux de prospection sur des tells [colinas] encore vierges, Bilger [Michael Bilger, o famoso arqueólogo e orientalista prussiano] l'emmenait toujours avec lui et cette proximité faisait jaser, bien sûr - je me souviens des clins d'oeil graveleux lorsqu'on évoquait le couple, d'expressions comme "Bilger et son étudiant" ou pire "le grand Fritz et son mignon", sans doute parce que Hassan était objectivement jeune et très beau, et parce que l'orientalisme entretient une relation certaine non seulement avec l'homosexualité, mais plus généralement avec la domination sexuelle des puissants sur les faibles, des riches sur les pauvres.» (p. 115)
«Les goûts de Faugier, sa passion du trouble, ne l'empêchaient pas d'être terriblement lucide sur sa condition - il était son propre objet d'études; il admettait que, comme beaucoup d'orientalistes et de diplomates qui ne l'avouent pas facilement, s'il avait choisi l'Est, la Turquie, l'Iran, c'était par désir érotique du corps oriental, une image de lascivité, de permissivité qui le fascinait depuis l'adolescence. Il rêvait aux muscles d'hommes huilés dans les gymnases traditionnels, aux voiles de danseuses parfumées, aux regards - masculins et féminins - rehaussés de khôl, aux brumes de hammams où tous les phantasmes devenaient realité.» (p. 315) «... il aimait ses travestis iraniens outrageusement maquillés, ses rencontres furtives au fond d'un parc de Téhéran. Tant pis si les bains turcs étaient parfois sordides et crasseux, tant pis si les joues mal rasées des éphèbes grattaient comme des étrilles, il avait toujours la passion de l'exploration...» (p. 316)
Uma referência recorrente no livro é o famoso Hotel Baron, de Alepo (quiçá hoje destruído), que se tornou célebre pela notoriedade dos seus hóspedes, entre os quais o rei Faiçal (da Síria e depois do Iraque), o oficial e agente secreto inglês T.E. Lawrence (o inesquecível Lawrence da Arábia), o primeiro presidente turco Kemal Atatürk, a escritora policial Agatha Christie, o general De Gaulle ou o presidente Gamal Abdel Nasser do Egipto. Mathias Énard procede a uma minuciosa descrição do hotel, nomeadamente do seu bar, onde conviveram as mais importantes figuras que, desde 1911, data da sua construção, passaram pela Síria.
Estive no Hotel Baron, já nessa altura um pouco decadente, em 2005 e 2006. Registei algumas imagens que, a propósito do romance, me apraz partilhar:
Fachada do Hotel Baron (2005) |
Fachada do Hotel Baron (2005) |
Automóvel antigo na esquina da rua do Hotel Baron (2005) |
Eu, à porta do pátio do Hotel Baron (2005) |
No bar do Hotel Baron, com um amigo sírio e dois amigos portugueses (2005) |
Eu, à porta do Hotel Baron (2006) |
O balcão do bar do Hotel Baron, tão enaltecido por Mathias Énard (2006) |
Um amigo sírio sentado ao balcão (2006) |
Sala de jantar do Hotel Baron (2006) |
No bar, com um amigo sírio (2006) |
O orientalismo que é, segundo Énard, um humanismo (já Sartre dizia o mesmo do existencialismo), foi sempre, e especialmente a partir do século XVIII uma paixão ocidental. Abrangendo o estudo de diversas civilizações, incidiu especialmente sobre o Médio Oriente e o mundo árabo-islâmico, ainda que a sinologia e a indologia não tenham sido terrenos despiciendos. Criou também no Ocidente uma visão distorcida desse Oriente inegavelmente fascinante e facilitou a exploração colonial, um tema revisitado no século passado pelo intelectual palestiniano Edward Saïd na sua obra Orientalism, hoje, apesar das posteriores controvérsias, um clássico na matéria.
Mas também o oriente extremo (como a África negra) não escapou à influência ocidental, à "missão civilizadora" euro-cristã, com todas as suas grandezas (poucas) e misérias (muitas). Transcrevo: «À l'orient de l'Orient on n'échappe pas non plus à la violence conquérante de l'Europe, à ses marchands, ses soldats, ses orientalistes ou ses missionaires - les orientalistes sont la version, les missionaires le thème: là où les savants traduisent et importent des savoirs étrangers, les religieux exportent leur foi, apprennent des langues locales pour mieux y rendre intelligibles les Évangiles.» (p. 344)
Nas relações com o Oriente, não deixa Énard de referir a paixão de Goethe, já então com 65 anos, pelo Divan [colectânea de poemas em árabe, turco ou persa] de Hafez, poeta persa do século XIV. A publicação de West–östlicher Divan (Divan Ocidente-Oriental), pelo mestre de Weimar a partir da sua correspondência com Marianne von Willemer e da tradução dos poemas de Hafez pelo citado orientalista Joseph von Hammer, constituiu uma inestimável contribuição para a aproximação de culturas entre a Europa cristã e o Médio Oriente islâmico. Esta obra, que Goethe complementou com inúmeras notas, influenciou poetas como Friedrich Rückert e compositores como Schumann, Schubert, Mendelssohn, Hugo Wolf e tantos outros, como Luigi Dallapiccola, que escreveu Goethe Lieder para meio soprano e clarinetes.
Uma última palavra para a Bússola, a famosa bússola de Beethoven que indicava sempre o Oriente. Também este livro está decisivamente voltado para o Oriente, porque é do Oriente que nos vem a Luz e também porque, em mais do que uma acepção, o Oriente é Eterno.