quarta-feira, 27 de julho de 2011

AINDA SOBRE O ACORDO ORTOGRÁFICO


Vasco Graça Moura, hoje, no Diário de Notícias:

Deveras decepcionado

O Acordo Ortográfico significa a perversão intolerável da língua portuguesa. Sempre admirei o saber jurídico, a obra académica e a postura cívica do meu amigo Jorge Miranda. Mas não posso concordar com as considerações que ele faz sobre tão sinistro instrumento, no Público de 13.7.2011.
Uma pessoa pode deixar-se embalar por uma concepção tão poética quanto irrealista da pretensa unidade ortográfica (ontológica, mítica, sublimada...) da nossa língua; pode mesmo prestar tributo a um certo darwinismo, em que o facto de o Brasil ter 200 milhões de pessoas seria razão bastante para sacrificar a norma seguida por mais de 50 milhões de outros seres humanos...
Mas o que ninguém pode é passar em claro que o AO leva ao agravamento da divergência e à desmultiplicação das confusões entre as grafias e faz tábua rasa da própria noção de ortografia, ao admitir o caos das chamadas facultatividades. Sobre tudo isso existe, de há muito, abundante material crítico, com destaque para os estudos essenciais, demolidores e, note-se, não contrariados, de António Emiliano.
Ora sendo JM um constitucionalista eminente, é nessa perspectiva que convém interpelá-lo.
O AO não está nem pode estar em vigor. A vigência de uma convenção internacional na nossa ordem interna depende, antes de mais, da sua entrada em vigor na ordem internacional. Terá o AO começado a vigorar no ordenamento internacional quando há Estados subscritores que ainda não o ratificaram, decorridos mais de 20 anos sobre a sua celebração? E esse mesmo facto não inviabilizará o próprio AO, por impossibilidade manifesta do fim que ele se propunha e que era o de alcançar uma "unidade" ortográfica aplicável a todos aqueles Estados?
Por outro lado, e quanto ao chamado segundo protocolo modificativo, que não foi também ratificado por todos os Estados que o subscreveram, poderá a ratificação por três desses Estados sobrepor-se aos ordenamentos constitucionais dos restantes e vinculá-los a todos, levando-os a acatar, por esse expediente trapalhão, algo que eles como Estados soberanos também não ratificaram? Significará isto uma vigência do protocolo na ordem externa, de modo a que ele possa vigorar em Portugal ou aplicam-se ao caso os mesmos princípios que acima referi?
Uma outra ordem de questões prende-se com um pressuposto essencial. O art.º 2.º do AO exige que, antes da sua entrada em vigor, os Estados signatários tomem, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração "de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas".
Esse vocabulário comum nunca existiu. Não há notícia de que esteja em vias de ser elaborado, nem de encontros de instituições ou órgãos competentes dos oito países de língua portuguesa para tal efeito.
Sendo assim, como é que se pode sustentar a vigência e aplicabilidade do AO?
Por último, está mais do que demonstrado o risco de a língua portuguesa, tal como a falam os mais de 50 milhões de pessoas que não seguem a norma brasileira, vir a ser muito desfigurada, na relação entre grafia e oralidade, em especial no tocante à pronúncia. Vários especialistas se têm referido a isto e, já em 1986, nada menos de 20 colegas de JM, docentes da Universidade Clássica (Faculdade de Letras), sustentaram, entre outras críticas fortes e fundamentadas, que todas as alterações introduzidas num dado sistema gráfico deviam ser equacionadas também em função da relação entre o oral e o escrito, sendo "inaceitável que ajustes ou reformas linguísticas potenciem mudanças linguísticas em sentidos previsíveis ou imprevisíveis".
Sendo assim, como é que se pode negar a violação dos artigos da Constituição que protegem a língua portuguesa não apenas como factor de identidade nacional mas também enquanto valor cultural em si mesmo, em especial os art.os 9, alíneas e) e f) e 78, alíneas c) e d)?
Ponderando estes e outros aspectos, JM só não poderá ficar "dececionado" com tais aberrações porque "dececionado" é uma grafia criminosa. Mas espero francamente que ele se sinta deveras decepcionado!

2 comentários:

Anónimo disse...

Apoiado!

Anónimo disse...

Sendo conhecida por demais a minha aversão ao tal AO e, não sendo também um alinhado nas habituais intervenções do comentador, não posso e nem devo deixar de apoiar entusiasticamente as suas palavras, no que a tal aborto diz respeito. Apoiado, não! Apoiadissimo!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Marquis