terça-feira, 24 de agosto de 2010

OS CRISTÃOS DO ORIENTE

Catedral Copta de Alexandria

Tarefa difícil a de escrever sobre os Cristãos do Oriente, mormente em poucas linhas. Começou o Oriente, entenda-se aqui que falamos do Médio Oriente, por ser pagão, como é natural. Ainda antes da Era Comum (EC), surgiram dois episódios monoteístas: um efémero, o dos egípcios, que cerca de 1350 AC, por iniciativa de Amenófis IV, passaram a adorar Aton (o disco solar), em substituição do tradicional deus Amon; e outro que perdura até hoje, o dos judeus, que por iniciativa de Abraão e de Moisés (este cerca de 1300 AC) passaram a adorar um deus único. É conhecido o resto da história. Jesus Cristo, que terá nascido no ano 7 AC (o estabelecimento da EC sofreu percalços de cálculo aquando da fixação das datas que substituíram o calendário romano) fundou uma nova religião, o cristianismo, ainda que muitos sustentem que nunca se tendo referido o judeu Jesus a uma nova religião, o verdadeiro criador da nova religião teria sido São Paulo, que consumou a separação entre os antigos judeus e os judeus convertidos à nova doutrina. Não imaginava Paulo (que antes se chamara Saulo) as tragédias que essa cisão viria a provocar ao longo de vinte séculos. No século VII EC, Maomé (Muhammad) proclama outra religião de crença num deus único: o islamismo, largamente baseada no judaísmo e no cristianismo (já este havia integrado no seu cânone o Velho Testamento hebraico).

Papa Chenuda III, Patriarca Copta de Alexandria

O cristianismo original cindiu-se também em várias seitas, que dariam lugar à religião ortodoxa (séc. XI) - e também esta viria a dividir-se - e às outras confissões separadas. A religião ortodoxa (primeiro unida e depois dividida) foi a religião do Médio Oriente até ao advento do islão. Com a instauração do Califado, o islamismo ganhou adeptos na região e conseguiu converter quase todos os habitantes do seu território à nova fé, com excepção do Egipto, que permaneceu - e ainda permanece - com larga percentagem de cristãos (hoje à volta de 15%), os coptas. Os coptas são ortodoxos, mas ortodoxos separados da Sé de Constantinopla, são verdadeiramente os "cristãos egípcios", já que copta  (gupto) quer dizer egípcio em linguagem copta. Esta linguagem constitui a evolução final do antigo egípcio que, passada a fase do hieroglífico e do hierático, desembocou no demótico, ou seja numa língua e numa escrita usadas pelo povo. O copta é a língua demótica a que se acrescentaram algumas letras e palavras gregas e latinas.

Catedral Maronita de Beirute

Voltemos por instantes ao Primeiro Concílio Ecuménico (do cristianismo), realizado em Niceia em 325. Aí é estabelecido, entre outras coisas, que a Igreja teria cinco cabeças principais (a Pentarquia), que seriam os bispos de Jerusalém, Alexandria, Antioquia, Roma e Constantinopla, com o título de Patriarcas. O bispo de Roma, por causa de São Pedro seria considerado primus ou, como outros sustentam, primus inter pares. A questão das precedências, mais ainda do que a doutrina, viria a revelar-se causa de sucessivos afrontamentos e discórdias. Em breve Constantinopla reclamou a primazia sobre Roma. Constantino havia transferido a sua residência e o Senado de Roma para Constantinopla em 330.  E em 395 consumar-se-ia a divisão do Império Romano em duas partes: do Ocidente, com a capital em Roma; e do Oriente (ou Bizantino), com a capital em Constantinopla. Assim, no século XI, Constantinopla, ciosa da sua posição,  assumiria autonomia em relação a Roma.

Cardeal Pierre Nasrallah Sfeir, Patriarca Maronita do Líbano

Mas também dentro da Igreja Ortodoxa se verificariam divisões ao longo do tempo. As querelas teológicas ou protocolares no seio da Igreja de Cristo não teriam limites. É por isso que há hoje, por exemplo, três patriarcas em Alexandria: o patriarca copta ortodoxo (que também usa o título de papa) que é o chefe da Igreja Cristã Egípcia, o patriarca grego ortodoxo (em comunhão com Constantinopla) e o patriarca latino (em comunhão com Roma). Os dois últimos com reduzido número de fiéis.

Cardeal Mar Emmanuel III Delly, Patriarca de Babilónia dos Caldeus

Quanto aos Protestantes, que vieram mais tarde (séc. XVI), é melhor não falar.

Mar Giwargis Sliwa, Arcebispo Assírio de Bagdad

Feita esta sumaríssima introdução, passemos à matéria que hoje nos interessa. Difundido o islamismo no Médio Oriente, passaram os cristãos que não se converteram à nova religião à condição de dhimmys, isto é, gente que se sujeitava a um contrato com os muçulmanos, que lhes permitia viver em terras do Islão e sob a protecção deste e a exercer certas actividades, mediante um determinado pagamento; ficavam assim como cidadãos de segunda. Este contrato abrangia os Povos do Livro (Cristãos e Judeus) embora mais tarde fosse alargado aos crentes de outras religiões. Porque é matéria do maior interesse, recomenda-se, sobre esta temática, o livro La Condition des "Dhimmys" ou les Non-Musulmans dans la Civilisation Musulmane , de Hassen El-Memmi (Beyrouth, Dar Al-Gharb Al-Islami, 2000).

Patriarcado Latino de Jerusalém - Igreja do Santo Sepulcro


Continuou, assim, a haver cristãos no Egipto, na Palestina, na Síria, no Líbano, no Iraque, na Turquia, no Irão. À excepção do Egipto, onde constituirão hoje cerca de 15% da população (os coptas são mais de dez milhões) e do Líbano, com cerca de 35% da população (os maronitas, em comunhão com Roma)  são francamente minoritários nos outros países, e divididos pelas antigas confissões secessionistas. Mencionaremos os melquitas (em comunhão uns com Roma, outros com Constantinopla), na Síria; os assírios (herdeiros dos nestorianos e autónomos), no Iraque; os caldeus (em comunhão com Roma), também no Iraque; os siríacos católicos e os siríacos ortodoxos (herdeiros dos jacobitas), na Síria, no Líbano e no Iraque; os arménios, na Síria, no Iraque, na Turquia e no Irão; católicos latinos e cristãos ortodoxos (ligados a Constantinopla), um pouco por todos os países; e todas as confissões ou quase, na Palestina. Esta lista não é exaustiva, mas ficarei por aqui.

Fuad Twal, Patriarca Latino de Jerusalém

Tudo isto a propósito das perseguições aos Cristãos do Oriente.

Convento de São Sérgio e São Baco - Maalula


No Egipto, a convivência entre muçulmanos e cristãos tem sido pacífica em geral, embora se tenham registado alguns incidentes nos últimos anos, nomeadamente em 1984, 2006 e 2007. A Constituição egípcia estipula que os princípios da sharî'a são a fonte principal da legislação e os não muçulmanos estão excluídos de muitas funções oficiais, nomeadamente dos mais altos cargos da governação, das forças armadas e do ensino universitário.

Igreja de Santa Tecla - Maalula


No Iraque havia liberdade religiosa e de culto no tempo de Saddam Hussein, mas a invasão anglo-americana de 2003 destruiu o frágil equilíbrio convivencial entre as várias facções cristãs, os muçulmanos sunitas e xiitas e os muçulmanos curdos. Apesar das tropas invasoras terem começado a retirar, não se vislumbra o restabelecimento de uma pacificação, antes o regresso à divisão administrativa do país vigente no tempo do Império Otomano, isto é, os vilâyet de Baghdad, Basra (Bassorá) e Mosul. Os cristãos têm sido frequentemente atacados por milícias a soldo de inconfessáveis interesses (como se dizia antigamente) e a maioria abandonou já o Iraque, onde até um bispo foi assassinado.

Gregório III Laham, Patriarca Greco-Melquita de Antioquia e de Todo o Oriente

Na Síria e no Líbano, existe grande liberdade religiosa e de culto. Estão representadas 17 confissões e em Maalula, perto de Damasco, existe o convento de São Sérgio e São Baco, o mosteiro de Santa Tecla, e fala-se o aramaico, a língua do tempo de Cristo. Além de mesquitas sunitas e xiitas, há igrejas católicas latinas, gregas-ortodoxas, maronitas e melkitas, arménias, protestantes, etc.

Patriarcado de Constantinopla


Na Palestina, convivem todas as confissões religiosas, mas devido à situação de divisão do território, parte do qual está ocupado pelo Estado de Israel, o acesso ao culto é difícil e perigoso.

Sua Santidade Bartolomeu I, Patriarca Ecuménico de Constantinopla

Na Turquia, que é um estado laico, todas as religiões são permitidas, embora a islâmica, a que pertence a maioria esmagadora da população, esteja representada por inumeráveis mesquitas.

Bab Kisan, nas muralhas da cidade velha de Damasco, a Capela de S. Paulo, donde o apóstolo fugiu

As perturbações políticas e as aventuras militares das últimas décadas levaram ao êxodo de milhares de cristãos para o Ocidente. Em declarações ao jornal "An-Nahar", de Beirute, de 29 de Janeiro de 2002, afirmou o príncipe Talal Ibn Abdel Aziz, da Arábia Saudita: «No decurso dos séculos XIX e XX, os cristãos árabes foram particularmente activos no renascimento do arabismo dando-lhe uma dimensão civilizacional e abrindo-o às outras civilizações que se desenvolveram no período do declínio árabe. Insuflaram assim a modernidade no arabismo. Os árabes cristãos, dada a sua pluralidade cultural, foram, e continuam a ser, um desafio permanente à cultura e ao pensamento. A sua partida do mundo árabe desferiu um rude golpe a essa diversidade.»

Sua Beatitude Inácio IV, Patriarca Grego-Ortodoxo de Antioquia, residente em Damasco


É um facto que os cristãos, suspeitos ontem de ocidentalismo, se tornaram hoje as vítimas exemplares. No prolongamento de uma velha política de protecção dos cristãos pelas nações europeias, insistia-se demasiado quer sobre os seus contributos decisivos para a civilização árabo-islâmica, quer sobre as perseguições que haviam sofrido ao longo dos séculos. Em ambos os casos o islão ficava diminuído. Com o fracasso do projecto de sociedade de progresso que as elites árabes, todas as confissões confundidas, defendiam logo após as independências, ficou o campo livre para as paixões religiosas, étnicas e clânicas. Os laços comunitários e as identidades confessionais tornaram-se assim os últimos recursos do indivíduo face a uma máquina estatal muitas vezes açambarcada por clãs e redes. Terá sido a adesão total e sincera dos cristãos à ideia de uma Nação árabe, pura e eterna, que os convenceu a dissolverem-se no corpo social. Disso é prova a tentação recorrente entre os intelectuais modernistas de se converterem ao islão. O grande sonho da refundação cultural e histórica de uma nação herdeira simultaneamente do Oriente e do Ocidente, e de que os cristãos teriam sido o vector principal, estilhaçou-se frente aos desejos mal disfarçados das confissões e das tribos. E esses homens que tinham "saído" do círculo comunitário, preferiram o exílio ao regresso ao redil.  O último sobressalto igualitário, com as roupagens do universalismo socialista e marxista árabe, não durou mais do que uma estação.

Estátua da Virgem, dominando a vila de Maalula, nos arredores de Damasco


Na luta contra o domínio britânico no Egipto, muçulmanos e coptas ergueram estandartes com a cruz e com o crescente e desfilaram em procissões conjuntas. Os sheikhs pregaram nas igrejas e os padres nas mesquitas. Naguib Mahfuz dá-nos uma perfeita visão desses tempos na sua famosa Trilogia do Cairo. Tal não seria hoje possível. Até pela "política desenvolvida pelo papa Chenuda III, patriarca copta de Alexandria, que aconselhou os coptas a votarem em Hosni Mubarak para um quinto mandato nas presidenciais de 2005, sabendo-se que o presidente é detestado pela maioria dos egípcios. Mas não há partido político copta no Egipto, ao contrário da Confraria dos Irmãos Muçulmanos, que funciona um pouco como partido, se bem que não legal. Já no Iraque, no meio do caos, partidos assírios, caldeus e siríacos apresentam-se, sabe-se lá como, às eleições, mas no país nada funciona e os cristãos do Iraque refugiaram-se na sua maior parte na Síria, na Jordânia e na Turquia.

Nerses Petrus XIX Tarmuni, Patriarca Católico Arménio da Cilícia, residente no Líbano

Tratando-se de matéria inesgotável, a dos Cristãos do Oriente, espero que este pequeno apontamento suscite a curiosidade e o interesse dos leitores para se abalançarem a mais largos voos.

3 comentários:

samuel disse...

Gostaria de entender a frase "Quanto aos Protestantes, que vieram mais tarde (séc. XVI), é melhor não falar." Sou protestante e sempre acreditei que todos os cristãos são irmãos em Cristo, independente de suas particularidades e formas de cultuar. Senti um tom de preconceito na frase acima, destacada do texto.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

PARA SAMUEL:

Não existe qualquer preconceito na frase que escrevi. Apenas não interessava tratar dos protestantes no contexto dos "Cristãos do Oriente" porque nesta região o problema se pôs sempre, fundamentalmente, entre católicos e ortodoxos, ligados a Constantinopla ou não. Abordar também as diversas seitas protestantes (digo seitas sem preconceito) seria estender demasiado um texto já bastante longo.

Anónimo disse...

Desde as invasões maometanas no século VII d.C. os cristãos orientais sempre sofreram duras perseguições: violências, discriminações, deportações, homicídios, covardias e torturas. Os governos locais pouco importaram, ao contrário, há exemplos de tiranias anti-cristãs, as quais destruíram a imensa maioria cristã na Síria, Líbano, Iraque, Palestina, Egito, norte da África, Etiópia, Iêmem etc. Sem falar da tal "Lei Sharia". É urgente uma reflexão e atitudes fortes da ONU, EUA, União Européia, Rússia, Canadá.