sexta-feira, 13 de agosto de 2010

HITLER E A BAVIERA


No nosso post de 26 de Julho procurámos estabelecer um certo paralelismo entre duas figuras que se distinguiram na Baviera: Ludwig II e Adolf Hitler. No post de ontem discorremos sobre o rei; hoje, faremos algumas considerações sobre a ligação de Adolf Hitler à Baviera.

Nasceu Hitler em 20 de Abril de 1889, em Braunau am Inn, cidade austríaca situada na fronteira com o Reino da Baviera, então integrado no Império Alemão (Segundo Reich). Esta cidade, inicialmente bávara, passara várias vezes ao longo da história para a posse do Império Austro-Húngaro, regressando depois à soberania da Baviera. Em 1889 pertencia à Áustria. Quando Adolf tinha três anos a família Hitler mudou-se para Passau, na Baviera, onde a criança passou a falar o dialecto bávaro, em vez do austríaco tradicional. Em 1894, a família voltou a mudar-se, regressando à Áustria, primeiro a Linz e depois a Lambach. A partir de 1905, Hitler está em Viena; e em 1913, chega a Munique.

É na capital da Baviera - depois das desilusões com a Academia de Belas Artes de Viena, que por duas vezes recusou o seu ingresso - que Hitler começa a desenvolver a sua actividade política. É neste reino - nessa data a Baviera ainda era uma monarquia - que Hitler se sente acarinhado e "compreendido". Quando a Alemanha entra na Primeira Guerra Mundial, em 1914, Hitler pede ao rei Ludwig III para ingressar no exército alemão, requerimento que é aceite. Serve na França e na Bélgica e termina a guerra como cabo. Por actos de bravura, recebe a Cruz de Ferro de segunda classe em 1914 e a Cruz de Ferro de primeira classe em 1918.

Não se pretende traçar aqui, como é óbvio, uma biografia de Hitler, sobre quem têm sido escritas milhares, senão mesmo milhões, de páginas. Mas tão só assinalar a sua relação afectiva à Baviera e em especial a Munique, e alguns aspectos da sua vida que, em contexto diferente, fazem lembrar a de Ludwig II.

Admirador fervoroso da Alemanha, de que só em 1932 se torna cidadão, inconformado com a capitulação de 1918 e com as condições impostas pelo Tratado de Versailles, Hitler sente-se investido da missão divina de "salvar a Alemanha", convicção que teria adquirido durante um período de cegueira temporária em Outubro de 1918, em consequência de um ataque de gás mostarda.  Regressado a Munique, ingressa em 1919 no Partido dos Trabalhadores Alemães (DAP), a convite de Anton Drexler, seu fundador. O Partido, em oposição à chamada República de Weimar, advoga um governo forte, nacionalista, anti-semita, anti-capitalista e anti-marxista. Hitler conhece nesta altura Dietrich Eckart, outro dos fundadores do DAP e membro da Sociedade Thule, uma organização ocultista sediada em Munique cujos membros crêem na vinda de um Messias Germânico que redimirá a Alemanha da sua derrota. Eckart torna-se o mentor espiritual de Hitler e o Partido passa a denominar-se Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei - NSDAP).


Hitler, a quem são reconhecidos especiais dotes oratórios, começa a realizar comícios em Munique, a que assistem milhares de pessoas. Munique é assim o berço do nacionalismo alemão. No regresso de uma visita a Berlim para expandir o Partido e difundir as suas ideias, Hitler é confrontado com uma revolta interna da liderança do NSDAP, que o considera arrogante, e apresenta por isso a sua demissão. Há um momento de hesitação dos militantes, pois a perda de Hitler significaria o fim do Partido; contudo, este só aceita regressar com plenos poderes e substituindo na chefia o próprio Drexler.  Uma votação dos membros do Partido satisfaz-lhe a vontade por unanimidade (apenas um voto contra) e em 29 de Julho de 1921 é apresentado como Führer do NSDAP. É a primeira vez que é designado com este título.

Munique é terreno fecundo para as ideias de Hitler. Desde muito cedo se juntam a ele Rudolf Hess, o antigo piloto Hermann Göring e o capitão do exército Ernst Röhm, que se tornará o chefe da organização paramilitar Sturmabteilung (SA), as tropas de assalto, destinada a proteger os comícios do Partido e a atacar os opositores. A propaganda hitleriana começa a interessar os meios económicos e financeiros da Baviera e permitem a Hitler associar-se a uma figura preponderante do exército alemão, o general Erich Ludendorff que viria a ser candidato do Partido à presidência da República em 1925, contra o marechal Paul von Hindenburg, que ganharia a eleição.

Hofbräuhaus (Vista actual)
Hofbräuhaus (Vista actual)
Hofbräuhaus (Vista actual)
Hofbräuhaus (Vista actual)

Muitos dos comícios do Partido Nazi em Munique efectuaram-se inicialmente em cervejarias, especialmente na Hofbräuhaus, onde Hitler proclamou em 24 de Fevereiro de 1920 as 25 teses do NSDAP que substituíra o DAP. Encorajado pelos apoios recebidos, incluindo o exército, a polícia e, clandestinamente, o próprio ex-primeiro ministro da Baviera Gustav von Kahr, e tentando imitar a Marcha sobre Roma, de Mussolini, Hitler tenta um golpe de estado, que ficou conhecido por Putsch da Cervejaria ou Putsch de Munique. Em 8 de Novembro de 1923, interrompe um comício de Kahr na Bürgerbräukeller, uma grande cervejaria demolida nos anos 70 que ficava situada na Roseinheimerstrasse, por trás do actual Centro Cultural Gasteig e anuncia ter formado um novo governo com o general Ludendorf. Exige o apoio de apoio de Kahr para iniciar a marcha sobre Berlim mas este retira-se da intentona. 

Bürgerbräukeller (Foto da época)

Apesar disso, no dia seguinte, Hitler, acompanhado de 2.000 pessoas inicia uma marcha da cervejaria para o Ministério da Guerra da Baviera, mas o cortejo é detido pela polícia no exterior do Feldherrnhalle. Quatro polícias e 16 membros do NSDAP são abatidos. Hitler foge mas acaba por ser preso. Alfred Rosenberg torna-se líder temporário do Partido. Durante o julgamento, Hitler utiliza o tempo concedido para a defesa para expor as suas ideias, transformando numa figura nacional o que era até então uma figura política de Munique. 

Feldherrnhalle (Vista actual)
Feldherrnhalle (Vista actual)
Condenado em 1 de Abril de 1924 a cinco anos de prisão, recolhe à Cadeia de Landsberg, onde recebe um tratamento de favor. É perdoado e libertado em 20 de Dezembro de 1924 por ordem do Supremo Tribunal da Baviera, estando assim detido apenas um ano e alguns dias. Durante o tempo de prisão dita ao seu lugar-tenente Rudolf Hess a maior parte do primeiro volume de Mein Kampf (A Minha Luta), livro autobiográfico e doutrinário que é publicado em dois volumes em 1925 e 1926


Outras cervejarias se notabilizaram em Munique como locais de reunião de militantes nazis. É o caso da Torbräu, situada na Im Tal, 21, junto à Isartor. Aqui, em Maio de 1923, 22 homens juraram obediência ao seu chefe até à morte. Foi o nascimento das Strosstrupp Hitler, que viriam a dar origem às SS. chefiadas por Himmler. 

Torbräu (Vista actual)

Depois da sua libertação, Hitler convence o primeiro-ministro da Baviera Heinrich Held a levantar a interdição que caíra sobre o NSDAP depois do falhado putsch de Munique, garantindo-lhe que o Partido daí em diante só utilizaria meios legais para alcançar o poder. Essa autorização foi concedida em 16 de Fevereiro de 1925. Reorganizado o Partido e vencidas algumas vicissitudes, Hitler passou a utilizar os mecanismos da República de Weimar para destruí-la. A oportunidade chegou com a Grande Depressão de 1930 e o desmembramento da Grande Coligação que governava o país. O Partido Nazi obtém em 1930, 18,3 % dos votos para o Reichstag; em Março de 1933 obterá 43,9 %. Hitler havia sido nomeado Chanceler em 30 de Janeiro e em 27 de Fevereiro ardera o Reichstag, o que deu pretexto para o Governo proibir o Partido Comunista e suspender os direitos fundamentais. Em 14 de Julho o Partido Nazi foi declarado o único partido legal na Alemanha. Entre 30 de Junho e 2 de Julho de 1934, ocorre a grande purga nas SA, os camisas castanhas de Ernst Röhm, cuja ambição de independência começava a incomodar Hitler, e que ficou conhecida por Noite das Facas Longas. As SA, pelas arruaças que provocavam, também incomodavam as Forças Armadas, formadas no espírito da velha Prússia. Além disso, sendo Röhm um notório homossexual e estando as SA recheadas de homens e rapazes que não escondiam as suas preferências sexuais, tais comportamentos contrariavam os princípios defendidos pelos nazis. O próprio Röhm foi preso num hotel dos arredores de Munique e, tendo recusado suicidar-se "com honra", foi morto por elementos das SS. Esta purga, em que foram assassinadas centenas de pessoas por membros das SS e da Gestapo, está bem ilustrada no filme de Visconti La caduta degli dei (1969), também conhecido por The Damned ou Os Malditos.





Em 2 de Agosto de 1934 morreu o marechal Hindenburg. Ignorando a Constituição, o governo de Hitler declarou vaga a presidência e transferiu para o chanceler os poderes de chefe do Estado. Hitler tornou-se assim Führer e Reichkanzler e, por extensão, comandante supremo das Forças Armadas. Estava removido o último obstáculo para que Hitler obtivesse o poder absoluto na Alemanha.

Foram três as casas que Hitler habitou em Munique e que ainda hoje existem.  A primeira na Schleissheimerstrasse, 34 - 3º andar, quando chegou a Munique, e que partilhou com o alfaiate Joseph Popp. Aí permaneceu de 26 de Maio de 1913 até ingressar como voluntário no exército em Agosto de 1914. Quando regressou a Munique, depois da Primeira Guerra Mundial, habitou na Thierschstrasse, 41 - 1º andar, de 1 de Maio de 1920 a 5 de Outubro de 1929. Mudou-se depois para a Prinzregentenplatz, 16 - 2º andar, um luxuoso apartamento onde se suicidou a sua sobrinha Geli Raubal, e que foi a residência privada de Hitler em Munique até à sua morte. O edifício é hoje um departamento da Polícia.

Schleissheimerstrasse, 34 (Foto da época)
Thierschstrasse, 41 (Foto da época)
Prinzregentenplatz, 16 (Vista actual)
Prinzregentenplatz, 16 (Vista actual)
Prinzregentenplatz, 16 (Vista actual)

São conhecidos os desenvolvimentos do Terceiro Reich: a doutrina do Lebensraum (Espaço vital), a invasão da Checoslováquia e da Polónia, a Segunda Guerra Mundial, as perseguições a judeus, ciganos, homossexuais, opositores políticos, artistas e escritores não conformes com a ideologia nazi, etc. Estima-se que morreram neste período 16 milhões de civis. A Alemanha seria derrotada e parcialmente destruída e a nomenclatura nazi julgada, e condenada, em Nuremberga. Hitler, segundo a maioria dos testemunhos, suicidou-se, no bunker de Berlim, em 30 de Abril de 1945.


A espantosa ascensão de Hitler ao poder, que Brecht glosou na sua peça Der aufhaltsame Aufstieg des Arturo Ui (1941), em português A Resístivel Ascensão de Arturo Ui, constitui ainda hoje um enigma, apesar das muitas tentativas de explicação para o fascínio que o nazismo exerceu não só na Alemanha mas em muitos outros países, incluindo a própria França durante a Ocupação. Notáveis intelectuais e artistas apoiaram o nazismo, ideologia que ainda hoje, mais de meio século decorrido sobre a queda do Terceiro Reich, congrega adeptos um pouco por todo o mundo. Teria o nazismo triunfado na Alemanha sem Hitler, apenas pelo poder das ideias, ou foi necessário que um homem com a personalidade de Hitler o encarnasse?  Deve-se esse triunfo ao magnetismo pessoal de que Hitler era dotado ou à ocorrência de um conjunto extraordinário de circunstâncias verificado na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial?  Um cineasta alemão que também se debruçou sobre Ludwig II, Hans- Jürgen Syberberg, realizou em 1978 um filme de quase oito horas de duração, Hitler, Ein Film aus Deutschland (Hitler, um Filme da Alemanha), em que procura senão uma resposta, pelo menos uma interpretação para a recepção do nazismo na Alemanha. O filme foi projectado no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian em 15 de Março de 1980.




Programa autografado por Syberberg

É um facto que Hitler alcançou democraticamente o poder através de eleições livres, embora depois se tivesse apoderado, sem resistência aparente, de todos os poderes do Estado. E também é verdade que gozou, praticamente até à Queda Final, do apoio dos seus compatriotas, não só dos bávaros que tinham contribuído decisivamente para a sua ascensão mas da maioria dos alemães. As tentativas para o derrubar ou matar foram actos mais ou menos isolados e nunca houve um movimento generalizado de contestação à sua figura e à sua política em todo o Reich, para o que terá concorrido, é certo, a existência de duas organizações poderosas e omnipresentes, as SS (Schutzstaffel), forças do esquadrão de protecção, dirigidas por Heinrich Himmler e a Gestapo (Geheime Staatspolizei), a polícia secreta dirigida primeiro por Hermann Göring e depois por Heinrich Himmler. A adesão a Hitler dos alemães (ou dos austríacos, que o receberam de braços abertos aquando do Anschluss, a anexação da Áustria ao Reich em 1938) é um mistério que permanece realmente por explicar, atendendo a que o povo germânico é considerado justamente um dos mais cultos e instruídos da Europa, tendo fornecido ao mundo uma plêiade de homens como Dürer, Grünewald, Goethe, Bach, Mozart, Beethoven, Freud, Thomas Mann, Einstein, e não continuamos porque a lista é infindável. Convém referir, para evitar simplificações, que Hitler não era propriamente um tonto, como por vezes alguns filmes deixam entrever, ao caricaturarem a sua figura. No entanto, na fase final da vida, as suas faculdades afiguram-se realmente diminuídas, tendo em conta as decisões que tomou. Sob o seu governo a Alemanha conheceu um progressivo desenvolvimento económico e social (os grandes industriais apoiaram-no), que só declinou a partir do início das aventuras militares. O mesmo não se poderá dizer da cultura, cujo entendimento para os nazis a limitava às obras e aos autores que se inseriam no cânone nacional-socialista. A questão racial e a consideração de povos inferiores (os untermenschen), pilares em que assentava a ideologia nacional-socialista, foram causas do triunfo do Terceiro Reich e também da sua destruição.

Kehlsteinhaus

A Alemanha de hoje é, naturalmente, muito diferente da Alemanha nazi, mas na Baviera um olfacto apurado detecta um perfume nostálgico de tempos passados, em que Munique foi a capital de Ludwig II e onde Adolf Hitler iniciou o seu caminho para o poder. Aliás, a Baviera sempre acarinhou o Führer. Ainda hoje, as excursões proporcionadas pelos operadores turísticos de Munique têm dois destinos principais: os castelos de Ludwig, obviamente, e os locais do Terceiro Reich e da Resistência (na prática os locais onde se desenvolveu o Nazismo) e também Berchtesgaden (em cuja montanha, o Berghof, se situava a residência que Martin Bormann ofereceu a Hitler em nome do Partido Nazi em 1939, aquando do 50º aniversário deste, a Kehlsteinhaus, também chamada o Ninho da Águia e que era uma extensão do complexo nazi de Obersalzberg). Outros locais da Baviera favoritos de Hitler foram Nuremberga, cidade de grande importância no Santo Império Romano-Germânico e que os nazis escolheram para a realização dos seus congressos, e Bayreuth, onde Ludwig mandara edificar o Festspielhaus para a representação das óperas de Wagner e que Hitler frequentava assiduamente, como admirador incondicional do compositor.





Praça das Vítimas do Nacional-Socialismo

Recorde-se que a grande cineasta Leni Riefenstahl filmou em 1934 o congresso do Partido em Nuremberga, obra conhecida como Triumph des Willens (O Triunfo da Vontade) e que é considerada como o mais notável filme de propaganda realizado até hoje. Em Bayreuth, além de assistir aos espectáculos, Hitler visitava frequentemente a família Wagner, nomeadamente a viúva Cosima, o filho Siegfried e a nora Winifred.



Retomando as semelhanças já enunciadas no post de 26 de Julho, podemos concluir que tanto Ludwig II como Adolfo Hitler apreciavam a Baviera e eram apreciados pelos bávaros, que ambos sonhavam com o poder absoluto (que só um deles conquistou), que ambos tinham pretensões artísticas (Ludwig desenhava castelos, Hitler pintava e planeava cidades e monumentos), que ambos eram apaixonados pelas óperas de Wagner, que consideravam o expoente máximo da música, que ambos eram homossexuais (Ludwig, sem dúvida, Hitler presumivelmente, de acordo com o documentadíssimo livro de Lothar Machtan já referido, apesar do inconsequente episódio Eva Braun), que ambos evidenciaram sinais de demência com o passar dos anos, que ambos se suicidaram (ou foram assassinados), o que nunca se chegará indiscutivelmente a provar.


Como curiosidade, e para finalizar, note-se que Hitler, que era vegetariano, exigia normalmente que as suas saladas contivessem rúcula. Sendo também abstémio, e embora na sua juventude tivesse bebido cerveja como todos os bávaros, nas raras vezes em que, adulto, infringia as suas próprias regras era para beber vinho branco Riesling.


(Clique nas fotos para ver melhor)

3 comentários:

Anónimo disse...

Evocação brilhante, pelo texto e pelas imagens. A comparação entre Luís II e Hitler é um achado e tem toda a razão de ser.

Anónimo disse...

Se Hitler gostava de rúcula é porque era gay

Anónimo disse...

Muito bem. Um resumo objectivo e documentado visualmente da cidade de Munique e das suas relações com o Reich.

Devia fazer também um de Berlim com os sítios antigos que não foram destruídos e com os que ainda existem.