sábado, 10 de julho de 2010

DO FUTEBOL

PUBLICADO ONTEM POR EDUARDO PITTA NO BLOGUE "DA LITERATURA"


A TERRA EM TRANSE


Agora que o n.º 93 [Julho-Agosto] da LER já está na rua, deixo aqui a crónica A terra em transe, publicada no n.º 92 na minha coluna Heterodoxias:


Desde miúdo que vejo a terra em transe por causa do futebol. O assunto nunca me interessou, embora toda a vida tenha conhecido adeptos do Sporting (minha mãe, tios e primos; o pai era só esgrima), do Benfica e do Desportivo. O Desportivo de Lourenço Marques ou, se preferirem, o Desportivo de Maputo, celebrizado pela prática do hóquei — quem não recorda a equipa de Fernando Adrião, campeã do mundo? —, tem pergaminhos na bola desde 1921. Eusébio tentou jogar no Desportivo, mas não passou no exame médico (inscreveu-se no Sporting local). Outro tempo. Os jogadores não usavam bandoletes nem faziam publicidade a cuecas.

Como hoje o conhecemos, o jogo tem regras estabelecidas há perto de 150 anos. Só podia ser uma invenção inglesa. Em todo o caso, isso não parece óbvio no Sul, onde o estilo adamado contrasta com a rudeza dos saxões. É só comparar Rooney com Nuno Gomes. Terá sido com a exploração da imagem de Futre, nos anos 1980, que o futebol português deu um forte contributo ao imaginário homoerótico. Nessa altura, os mais distraídos deram por Fernando Gomes, que andava a coleccionar Botas de Ouro e a comparar golos com orgasmos.

George Best foi, durante muito tempo, o epítome de todos os excessos: bola, sucesso, mulheres, álcool e drogas. A morte prematura, em 2005, fechou um ciclo em declínio. Cristiano Ronaldo, mesmo em underwear, fica a milhas do irlandês. Emular David Beckham (estou a falar de briefs Armani) foi um disparate. A masculinidade de Figo talvez pudesse contribuir para prolongar o paradigma Best, mas falta-lhe em “transgressão” o que lhe sobra em competência. Isto é como no cinema: as estrelas (Elizabeth Taylor, Marlon Brando) foram substituídas por profissionais (Meryl Streep, Tom Hanks). Sem falhas, a linha de montagem deu cabo da magia.

E, sem magia, não vamos longe.

Como disse, a bola interessa-me nada. Notícias estridentes podem ocupar-me por minutos, mas escapa-me a linguagem esotérica (o túnel, o balneário, etc.) e a benevolência de que gozam os hooligans.

Fazendo um esforço de mnemónica para encontrar futebol na literatura, ocorre-me o Eça, que achava o football próprio de gente como os ingleses e, nessa medida, inadequado aos nossos hábitos. Mas isso foi há mais de cem anos. E tinha que ver com práticas de public school, em tudo diferentes da modalidade cotada em bolsa.

Em 1921, Graciliano Ramos achava que os brasileiros não tinham vocação para o futebol: «Não seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo? Não é que me repugne a introdução de coisas exóticas entre nós. Mas gosto de indagar se elas serão assimiláveis ou não.» Pelé leu Graciliano?

O futuro desautorizou o autor de Vidas Secas (1938). Ilustres pares, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca e João Ubaldo Ribeiro, entre muitos, trataram o futebol como arte nobre. Drummond não fez a coisa por menos: «Futebol se joga no estádio? / Futebol se joga na praia, / futebol se joga na rua, / futebol se joga na alma.» E não só poemas como este. Afinal de contas, «Não há nada mais triste do que papel picado, no asfalto, depois de um jogo perdido. São esperanças picadas.» O assunto era sério. Dezenas de crónicas ficaram famosas: «Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios. Mas, como é também um deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.» (cf. Mané e o Sonho, 1983) E nós por cá? Onde o equivalente em Herberto Helder?

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