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Ouvi até na rádio que um eurodeputado do PSD, cuja nome não fixei nem sabia que existia, pretendeu, no Parlamento Europeu, que o escritor renunciasse à nacionalidade portuguesa. Não me admira a insanidade destes propósitos já que a classe política portuguesa (todos os partidos incluídos) é de uma ignorância confrangedora. Não só a portuguesa como a da maioria dos países.
O livro, que me obriguei a ler esta noite, já que não poderia pronunciar-me quanto a uma obra que não conhecia, é uma efabulação sobre temas bíblicos, protagonizada por Caim, e reproduz fielmente velhas estórias do Antigo Testamento, acerca das quais Saramago tece comentários que não se coadunam com a tradição veiculada pelos nossos antepassados ou com a doutrina oficial da Igreja. Aliás, as posições assumidas neste livro pelo Nobel pouco ou nada diferem das expressas em obras anteriores e que traduzem o pensamento de José Saramago sobre Deus e a Religião.
Espanta-me, por isso, o sentimento de agravo manifestado por alguns sectores da Igreja face a uma obra literária que, ao contrário da Bíblia, não pretende ser o "Livro" mas um romance. Fiquei até com a impressão que alguns prosélitos desejariam queimar esta obra e, quiçá, o seu autor. Mas os tempos, felizmente, são outros, embora os autos-de-fé de livros não estejam tão distantes de nós como se possa pensar.
Já me espanta menos as críticas da comunidade judaica que - dado o Antigo Testamento (que não o Novo) da Bíblia ser propriedade comum das religiões judaica e cristã, especialmente o Pentateuco, a Torah, para os judeus- acabou por ser chamada à colação.
Ester Mucznik, na TV, desvalorizou inteligentemente o episódio, afirmando não ter lido o livro (o que me permito duvidar). Joshua Ruah, igualmente na TV, foi mais contundente, condenando as interpretações de Saramago. Se bem me lembro, foi até deselegante na sua intervenção.
É que o livro, especialmente para o fim, refere-se muitas vezes (como não poderia deixar de ser numa narrativa sobre a Bíblia) aos israelitas. E algumas referências sobre o Senhor Deus dos Exércitos (Dominus Deus Sabaoth) que está ao lado de Josué e o conduz à vitória em Jericó não pode deixar de convocar outras invocações sobre vitórias israelitas mais recentes, neste caso sobre os palestinianos. Não se ignora o posicionamento de Saramago nesta matéria e as ilações são fáceis de tirar.
Aceito que possa não se gostar de Saramago como pessoa ou até como autor (literáriamente falando e não quanto às suas opiniões). Mas já não posso aceitar que, nos nossos dias, alguém se escandalize com um romance que transmite o parecer de um escritor sobre um livro apenas considerado sagrado por uma parcela da população mundial, a maioria da qual nunca o leu. Mais se poderia dizer quanto ao facto de a própria Igreja Católica entender que é impossível fazer uma interpretação literal dos factos narrados no mesmo, que a Ciência e a História há muito se encarregaram de negar. Resta-nos da Bíblia, para os não crentes, a beleza de alguns textos, para os crentes um livro simbólico mas nunca o relato autêntico da criação do mundo e do homem.
1 comentário:
Saramago pode ser insuportável mas o livro só diz verdades. Então, para umas coisas a leitura deve ser literal e para outras simbólica. ora se fossem todos par o c.....
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