O escritor Aquilino Ribeiro publicou em 1936 o romance Aventura Maravilhosa de D. Sebastião Rei de Portugal depois da Batalha com o Miramolim, que foi reeditado pela Bertrand em 1975, na edição das suas Obras Completas.
Trata-se de um texto em língua vernácula, comum às obras do autor, que tem normalmente de ler-se com um dicionário ao lado, já que Aquilino utiliza amiúde palavras que há muito saíram, ou até nunca estiveram no vocabulário habitual.
Diga-se que o termo Miramolim é decorrente da expressão árabe Amir al-Muminim, que significa comandante (príncipe) dos crentes, título ainda hoje usado pelo rei de Marrocos.
Da prosa opulenta do grande Aquilino não poderemos reproduzir senão pálida imagem, salvo as breves transcrições de algumas passagens.
Começa o livro por nos relatar, com abundância de pormenores, a batalha de Alcácer-Quibir, com base nos documentos históricos conhecidos, até ao momento em que D. Sebastião, perdida a batalha, foge pra Arzila, onde se refugia, até embarcar para o Algarve, ficando então secretamente instalado num convento no cabo de S. Vicente. Aqui, começa a ficção romanesca.
Na sua fuga e na estada oculta na cela monástica D. Sebastião é acompanhado por Frei Salvador da Torre, que se lhe torna uma espécie de "pai" e protector. Numa viagem no Mediterrâneo, acompanhado do frade, o barco em que viajam é acometido pelos corsários, sendo ambos feitos cativos e enviados para Argel, onde decorre parte da acção subsequente. São arrematados por Morato Arrais, general das galés e italiano renegado, que está ao serviço da Sublime Porta, e cuja filha fora casada com o Abdel-Malik, o Maluco das Crónicas, cujo exército vencera os portugueses em Alcácer-Quibir. A rapariga, Bianca de seu nome, e que permanece cristã, interessa-se pelos cativos, especialmente por D. Sebastião, mas este, com a sua habitual misoginia, não corresponde às manifestações da jovem. Morato Arrais desconfia que o prisioneiro mais novo tem aspecto de ser pessoa importante, e susceptível de avultado resgate, mas nem o Rei nem o frade abrem a boca a tal respeito. Bianca, que também pressente algo de extraordinário, ajuda-os a fugir.
Numa nova viagem, e após um naufrágio, vão parar ao Monte Athos, onde os monges ortodoxos os recolhem. Estas viagens constituem para D. Sebastião um itinerário de expiação dos seus pecados de ambição e vaidade por ter provocado com a malfadada expedição a África a morte de milhares de portugueses e o prejuízo da nação. Nos delírios que o acometem enquanto dorme, o Rei acaba por revelar um segredo, o de ter estado sentimentalmente interessado em algumas damas, o que para ele, absolutamente casto, se afigura ter sido um pecado. [Os nomes das donzelas citados por Aquilino são referidos por alguns historiadores, mas não consta que tivesse havido o mínimo interesse do Rei por elas, mas, realmente, delas pelo rei. D. Sebastião, por razões que nos ultrapassam, tinha mesmo repugnância pelas mulheres]. Entretanto o convento do Monte Athos é assaltado por uma expedição chefiada por um enviado do Morato Arrais, que tivera conhecimento de que um dos cativos evadidos com a ajuda de sua sobrinha era o antigo rei de Portugal. Os corsários são derrotados pelos monges, que têm estatuto especial conferido pelo califa de Constantinopla, mas um judeu amigo de Arrais regressa ao convento e informa de que não pretendia realizar um assalto mas tão só obter a restituição dos fugitivos. O higómeno do mosteiro fica então a saber a verdadeira identidade dos seus hóspedes e facilita-lhes a fuga para Salónica antes que o judeu volte a exigir a sua entrega.
O último capítulo é o melhor do livro. A acção decorre no Escurial. Filipe II, numa cela, acompanhado de médicos e criados, encontra-se às portas da morte. «Aspirou o fedor que aspirava a cloaca rota do seu corpo; experimentou o contacto do esterquilínio, suor de tísico, fezes, humores, piolhos e vermes em miríade, e caiu em si, na vera noção de quem era: Filipe II, rei de Castela e Aragão; rei de Portugal, de Nápoles e da Sicília, soberano dos Países Baixos; duque de Milão; senhor do Franco Condado; imperador do Novo Mundo...» (p. 242).
Está a apodrecer lentamente. Cristóvão de Moura aparece à porta com uma pasta debaixo do braço. O rei manda-o entrar. O valido entrega-lhe os papéis para despacho, que Filipe, com a mão cadavérica, assina a muito custo. Antes de se retirar, diz-lhe que um homem de meia idade, português, ronda há dias o Escurial e pretende ser recebido. O rei não tem visitas mas insiste em receber a estranha personagem.
Entretanto, passa em revista a sua vida, o sogro (D. João III «um perfeito imbecil coroado, um papa-açorda que apenas se achava bem sentado na cadeira a ouvir as loas dos bobos. Devoto, sim, mas com as rezas atufadas com feijão e orelha de cerdo.» p. 248), o sobrinho (D. Sebastião «O meu neto não pensara noutra coisa senão em meter lança em África. Abençoada loucura que lhe valera a ele, já senhor de tantas terras, a herança do reino vizinho, como parente varão mais chegado. Vinha escrito de longa data. » pp. 248-9), as Américas, os Países Baixos, a Sicília, o Norte de África, Lisboa, de que gostaria de ter feito a capital dos seus reinos.
Cristóvão de Moura, de mansinho, introduz o estrangeiro. O rei pergunta-lhe: "Que pretendeis?". Este observa que o monarca já não o reconhece, pois vinte anos já são passados sobre Nossa Senhora de Guadalupe.
«Filipe teve a impressão de que um fantasma se erguia ante ele, mas recusou-se a crer. E em voz sumida, molhada desta feita de rancor, tanto mais que o esforço que fora obrigado a fazer lhe açulara as infernais pontadas, pronunciou: - Dizei depressa ao que vindes; estão-me proibidas as visitas... Mas o intruso pespegara-se diante, fisionomia aberta como se mostrasse cédula pessoal, e hesitava dizer o que supunha estampado à flor dos olhos. E Filipe impacientou-se: - Hombre!... - Sou o sobrinho de Vossa Majestade... D. Sebastião. Posto tivesse aquele nome em mente, uma revelação daquelas aturdiu-o.» (p. 255)
Então, D. Sebastião conta ao rei a sua história: Alcácer-Quibir, Arzila, Cabo de São Vicente, Argel, o Monte Athos, o Danúbio, a Flandres, Constantinopla, a Pérsia, a Abissínia, a Terra Santa.
E Filipe pergunta: "Que propósitos trazem Vossa Majestade?" E Sebastião responde: "Que Vossa Majestade me restitua o reino."
«Com muito gosto - respondeu em voz serena, aquela voz lenta e medida que traduzia o império que exercia sobre si, depois de breve pausa, uma destas pausas de princípio do mundo, cheia de germinações monstruosas. - Estou nos umbrais da vida eterna e a coroa de rei cai-me da cabeça. Ah, se não fosse ousadia incomportável com a minha pequenez, sabeis com que coroa eu me queria ver coroado? A coroa de espinhos que picou a sagrada fronte de Nosso Senhor Jesus Cristo até as meninges. Vós vindes pela outra...!? - Deus o quer - murmurou D. Sebastião.» (p. 259)
Filipe manifesta então a D. Sebastião o seu arrependimento por ter pleiteado a sucessão de Portugal. Conta todas as decepções que teve. Fala do filho da Pelicana [o Prior do Crato], que fugiu depois da batalha de Alcântara e passou a vida a fugir. Que lhe quis vender os direitos ao trono. Que prestou cerviz a todos os fretes que França e Inglaterra quiseram. Que presenteou com brilhantes e gemas os mignons de Henrique IV quando o foram esperar a Mantes. [Aqui, Aquilino comete um lapso: o rei de França conhecido por estar rodeado de mignons foi Henrique III]. Filipe continua a sua narração, falando de Portugal e pesando como ourives as palavras: "- A nação está depauperada. Abateram-se sobre ela os três flagelos, peste, fome e guerra, e todas as suas fontes de energia e actividade secaram. Daí lavo as minhas mãos. Não cobrei mais um ceitil de impostos, não buli numa lei, não me sobrepus a nenhum uso estabelecido. Portugal está Portugal e Vossa Majestade há-de ter a impressão de que veio de lá ontem. Quando muito, encontrará a casa lusitana mais velha, mais triste... e arruinada. Mas tem muitos anos diante para a reerguer. E se volta mais assente, quebrado de ardores, se meteu a mão na consciência e apartou o grão do joio, bueno! Dou-lhe um conselho: deixe lá a mourisma para sempre! Foi a mourisma a causa da sua perda. Quantas vezes lhe disse: a África é um vespeiro! A expedição estava de antemão votada ao mais estrondoso insucesso. Tanto Vossa Majestade como os seus lugares-tenentes engenharam-se em montar uma empresa de derrota. Nisso não lhes faltou génio. Até Francisco Aldana errou quando lhe inculcou como melhor táctica a que consistia em opor tropas firmes, infantaria de arcabuz e cosselete, apoiada em mangas de cavalos à estardiota, à aluvião berbere de corcéis, fugazes e volteiros como o vento. Quem tinha razão eram os adaís de Tânger quando vos diziam: "Senhor, para os cavalicoques árabes não há como os nossos ginetes de Espanha; têm menos pé, mas sobeja-lhes a fúria e o ímpeto. Dez contra cem e não há que temer." Vossa Majestade era moço, deu ouvidos à novidade. Já lá vai, mas sempre lhe digo que para vencer um exército organizado em tais moldes bastavam a areia e o sol de África.» (pp. 263-4)
Filipe tem novo acesso de tosse e faz sinal para se retirarem os médicos, o confessor e os lacaios. D. Sebastião, perplexo, sai também.
A Cristóvão de Moura, que estava à sua beira, e referindo-se a D. Sebastião, Filipe diz: "Sua Majestade é meu hóspede. Não tem que dar mais um passo fora do Escurial..."
«E fitou o valido de olhos nos olhos, como só muito de raro em raro fazia, com fixidez tão imperativa que, acima da sua humanidade, se sentia erguer uma razão mais alta - aquela razão de Estado a que foram imolados o príncipe de Orange, Escovedo, o senhor de Montigny, o infante D. Carlos, dizem que a rainha Isabel de Valois e o Papa Gregório XIII, forte e cega por sua origem divina, situada para lá do bem e do mal. Recebeu Cristóvão de Moura, sem pestanejar, o mandato sinistro, limitando-se a responder: - Serão executadas as ordens de Vossa Majestade. E Filipe II, rei de Castela e de Portugal, das Duas Sicílias, soberano dos Países Baixos, de Tunes e de Orão, imperador daquém e dalém-mar, que já mandara fazer o caixão em que havia de ser enterrado, cerrou as pálpebras e, pela primeira vez há muitos dias, adormeceu placidamente.» (pp. 265-6)
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Para chegar ao último capitulo vale a pena ler o livro inteiro!
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