Na revisitação dos livros sobre D. Sebastião existentes na minha biblioteca, reli agora O Encoberto nos Jerónimos (1972), de José Honorato Gago da Câmara de Medeiros (Visconde do Botelho), com um prefácio do Cardeal Cerejeira.
Trata o livro da autenticidade das ossadas de D. Sebastião depositadas no Mosteiro dos Jerónimos e para este estudo o autor efectuou pesquisas no Arquivo Geral de Simancas e no Arquivo Secreto do Vaticano, publicando em anexo alguns dos documentos consultados. Como é sabido, persistiu durante muito tempo - e ainda persiste - a dúvida quanto à genuinidade dos restos mortais, razão que levou o Visconde do Botelho a empreender esta tarefa.
Depois de um Prólogo, segue-se um breve capítulo dedicado ao Sebastianismo, tema que desenvolveremos oportunamente em outros posts. No capítulo seguinte o autor trata da morte e identificação do cadáver de D. Sebastião, mencionando, como já fizera Queiroz Velloso (de acordo com frei Bernardo de Brito), as pessoas que procederam ao reconhecimento do corpo: D. Duarte de Meneses, António de Azevedo, D. António de Noronha, D. Constantino de Bragança, João Rodrigues de Sá, D. Jorge de Meneses e D. Nuno Mascarenhas. É feita a descrição dos ferimentos do rei e o local onde o cadáver foi depositado, conforme referimos em post anterior. Segue-se um capítulo sobre os reinados de D. Henrique e de D. António [que não é, aliás, considerado rei de Portugal, embora o pretendesse]. É evocada a chegada ao Tejo da frota do almirante D. Diogo de Sousa e, a 27 de Agosto, a relação peremptória de Belchior do Amaral.
«Entretanto, o xerife Muley-Ahmed propôs-se devolver o corpo do falecido Rei contra a entrega de praças portuguesas no Norte de África. A resposta, porém, foi uma recusa formal. Voltou-se, então, o chefe marroquino para o Rei de Espanha, cujas boas graças desejava conservar, oferecendo-se para lhe entregar, sem qualquer resgate, o corpo de D. Sebastião, assim como dois prisioneiros de alta jerarquia, o jovem duque de Barcelos e o embaixador de Espanha, D. João da Silva, que tomara parte na jornada de Alcácer-Quibir. Filipe II, com muita dignidade, não quis, no entanto, aceitar o cadáver do Rei de Portugal, aconselhando que o entregassem aos Portugueses.
Foi assim que, tendo o Cardeal-Rei ordenado a frei Roque do Espírito Santo que negociasse o resgate do corpo, este, com o auxílio de André Gaspar Corço, genovês, conhecido de Filipe de Espanha e de Muley-Ahmed, obteve do xerife a sua entrega sem condições. Isto permitiu que o alcaide mandasse desenterrar da vila de Sufiane os restos mortais do soberano português e os entregasse a Gaspar Corço para os levar para Ceuta, então praça-forte portuguesa. Este emissário especial teria sido acompanhado, segundo alguns historiadores, por frei Roque e ainda pelo embaixador de Castela, por D. Jorge de Meneses, D. Miguel de Noronha, D. Duarte de Castelo Branco, D. Pedro de Castro e outros. Ali foram entregues ao governador da praça, tendo sido lavrado um auto rezando o seguinte: [...] » (pp. 50-1) O autor transcreve o auto da entrega do corpo em 10 de Dezembro de 1578, assinado por D. Leonis Pereira, capitão e governador de Ceuta, frei Roque e D. Rodrigo de Meneses.
«Prevendo a possibilidade de se candidatar à Coroa portuguesa, D. António procurou provar a sua legitimidade, isto é, que seu pai, o Infante D. Luís, casara secretamente com sua mãe, D. Violante Gomes, senhora "mui formosa e honesta, de grande discrição e graça", que morreu recolhida num mosteiro, onde viveu anos com muita dignidade. Chegou mesmo a obter uma sentença de legitimação dada por um frei Manuel de Mello, da Ordem de Malta, a 24 de Maio de 1579. E o Cardeal Alexandre Riario, Legado a latere de Sua Santidade, vindo em missão a Portugal, trazia instruções pontifícias para rapidamente concluir o processo de legitimidade de D. António. Tudo, porém, o Cardeal-Rei D. Henrique impugnou, alegando que Violante Gomes era uma "mulher vil", com quem o Infante D. Luís não casara. Assim, quando do falecimento de D. Henrique, a bastardia do Prior do Crato não fora saneada. Este, apesar disso, com o apoio do braço popular, conseguiu fazer-se aclamar rei a 19 de Junho de 1580.
Filipe II (de Espanha) decidiu-se, então, a empregar a força das armas para conseguir o que não atingira através das intrigas diplomáticas, antes que D. António se consolidasse no trono. As tropas castelhanas entraram em Badajoz, a 27 daquele mês, sob o comando do duque de Alba. E a esquadra espanhola, forçando o Tejo, desembarcou um exército, que a 25 de Agosto de 1580 desbaratou em Alcântara as hostes portuguesas, mal equipadas e pouco preparadas. O Prior do Crato logrou escapar-se para o Norte do País, de onde passou ao estrangeiro, iniciando, com o apoio da França, uma tentativa de reconquista, com base nas ilhas dos Açores, que se conservavam fiéis ao rei português. Tentativa efémera, mas dolorosa, durante a qual este monarca mais uma vez demonstrou uma tenacidade de ânimo invulgar.» (pp.52-3)
Filipe II entrou em Portugal a 5 de Dezembro de 1580, tendo chegado a Tomar a 16 de Março de 1581. A 16 de Abril fez-se aclamar nessa cidade "Rei de Portugal e seus senhorios". Só em 27 de Maio de 1581 Filipe II deixou Tomar com destino à capital, devido à peste que grassara em Lisboa, ressurgência da grande peste de 1569, quando D. Sebastião se refugiou em Sintra. Fez a jornada por terra até Vila Franca de Xira, aqui embarcando, em 19 de Junho de 1581, na galera do marquês de Santa Cruz com destino a Almada, onde ficou alguns dias. Desembarcou, finalmente, com grande pompa em Lisboa a 29 de Junho.
«Instalado nos Paços Reais com muitas pessoas do seu séquito, Filipe I de Portugal prolongou na capital portuguesa a sua estada, só se começando a falar da sua partida para Madrid em Outubro de 1582. Eram, todavia, rumores sem grande fundamento. Filipe I havia dado ordens para que trouxessem de Ceuta as ossadas de El-Rei D. Sebastião e não queria deixar o País sem que se procedesse, na sua presença, à respectiva inumação no Panteão dos Jerónimos, onde também pretendia reunir todos os descendentes de D. Manuel I falecidos em Portugal. Este propósito estava-lhe bem vincado, embora o não tivesse tornado público.
Na verdade, a 1 de Novembro de 1582, a Nunciatura Apostólica em Lisboa, em ofício assinado por Juan del Monte e enviado ao Cardeal de Como, informava que havia poucos dias tinham chegado ao Algarve os ossos de El-Rei D. Sebastião, trazidos de Ceuta, onde era governador Jorge Pessanha, pelo duque de Medina Sidónia, em quatro galeras da Sicília, sendo acompanhado pelo bispo daquela praça, D. Manuel de Seabra. Ali os recebera o bispo da Sé de Faro, D. Afonso de Castello Branco, de onde deveriam seguir para o Mosteiro dos Jerónimos. Viria simultaneamente de Almeirim o corpo do Rei-Cardeal D. Henrique, e seriam recolhidos os de alguns outros príncipes da Casa Real Portuguesa, que Filipe I, como atrás se disse, desejava fazer depositar na igreja daquele Mosteiro.» (pp. 55-6)
Como a 21 de Novembro de 1582 falecera o Príncipe herdeiro de Espanha, D. Diogo, e o seu irmão mais novo D. Filipe (futuro Filipe III) teria de ser jurado como sucessor em Castela, Filipe II ficou com o dilema de abandonar Portugal antes dos funerais de D. Henrique e D. Sebastião ou fazer reunir em Portugal as Cortes de Castela. Finalmente, a 9 de Dezembro, chegou a Évora o cadáver de D. Sebastião. E no dia 20 de manhã entraram nos Jerónimos os corpos de D. Sebastião e D. Henrique e também de alguns infantes filhos de D. João III e de D. Manuel I. Foram recebidos por Filipe II e pelo Clero e Nobreza e rezou-se missa solene. Ficaram, assim, nos Jerónimos os corpos de D. Manuel I e de D. João III, da rainha D. Maria, irmã do Rei Católico e mulher de D. Manuel I, de D. Catarina, irmã de Carlos Quinto e mulher de D. João III, ficando em seus sepulcros vinte e três corpos de reis, rainhas e infantes de Portugal.
As Cortes reuniram-se a 30 de Janeiro para prestar juramento ao Príncipe. Filipe II regressou enfim no dia 11 de Fevereiro, deixando como governador e vice-rei o arquiduque Alberto de Áustria.
«Em 1682 foi o corpo do Cardeal-Rei tirado do seu sepulcro de madeira e trasladado para o altar da capela do Cruzeiro, do lado do Evangelho, em mausoléu mandado fazer por ordem de D. Pedro II, tendo o epitáfio que lá se encontra sido composto, ao que parece, pelo marquês de Alegrete, em substituição de outro feito pelo padre frei Diogo de Jesus, do Mosteiro de Belém, falecido em 1672.
No mesmo ano foram trasladadas as ossadas de D. Sebastião, que também ainda jaziam em caixão de madeira, para o topo da outra capela do Cruzeiro, do lado da Epístola. A cerimónia fez-se à porta fechada, segundo relataram César da Silva e Ribeiro Guimarães, e apenas com a presença dos monges e de alguns dignitários da Casa Real. As ossadas, que se encontravam num saco de linho atado com um pano preto, foram recolhidas noutro saco, que depois depositaram no mausoléu.
O epitáfio primitivo, também redigido provavelmente por frei Diogo de Jesus, foi registado por frei Manuel dos Santos na sua "História Sebástica" e rezava assim:
Hoc jacet in tumulo (si vera est fama) Sebastus /Quem dicunt Lybicis occubiesse plagis
(Se é verdade o que consta, neste túmulo jaz Sebastião, que dizem ter sido morto nas plagas africanas)
Foi este substituído em 1682 pelo seguinte, de que dizem foi autor o conde da Ericeira:
Conditur hoc tumulo, si vera est fama, Sebastus Quem tulit in Libicis mors properata plagis Nec dicas falli regem qui vivere credit Pro lege extincto mors quasi vita fuit
(Se pudermos dar crédito à fama, este túmulo conserva os restos de Sebastião, morto nas plagas africanas/mas não digas que é falsa a opinião dos que acreditam que ele ainda é vivo, porque a glória lhe assegura a imortalidade)
O Sebastianismo era tão forte no século XVII que não seria lógico admitir que frei Diogo de Jesus escrevesse um epitáfio que traduzisse uma certeza quando todos se obstinavam na validade da dúvida. Nem que, já no reinado de D. Pedro II, se tivesse alterado essa validade.
Os autores daquelas legendas tumulares não quiseram mentir. Faltou-lhes, porém, a coragem para desfazer a lenda do Sebastianismo. Aliás, lendas e legendas confundem-se, exactamente como o lendário, que a não confirma ou mesmo a nega.» (pp. 61-2)
«O Sebastianismo não nasceu em África. Brotou da fantasia patriótica de alguns cérebros exaltados e, nomeadamente, de D. João de Castro. E foi acolhido, fortalecido e ampliado pelos políticos que, patrioticamente, execravam a dominação estrangeira. Desse escol passou, insensivelmente, mas com rapidez, à plebe, que para o efeito já estava preparada com o aparecimento dos primeiros falsos Sebastiões. Então, tudo se fantasiou ainda mais, sobrepondo-se à lenda original outras colhidas das tradições ancestrais, numa amálgama que apenas traduzia, no fundo, a esperança numa restauração nacional. O Sebastianismo transformou-se, deste modo, numa manifestação do patriotismo atávico do povo português, na expressão pública de um sentimento de amor à independência, herdado de Viriato e de seus próceres.
Inexistente ou amorfo à data da inumação de "O Encoberto" nos Jerónimos, a sua génese situam-na alguns, e com certo fundamento, ainda na mesma década, com o aparecimento dos primeiros impostores, o D. Sebastião de Penamacor, em 1584, e o D. Sebastião da Ericeira, no ano imediato. Foi, porém, na década seguinte que ganhou maior força, à medida que a autoridade castelhana, por morte de Filipe II, cuja política não teve continuidade, se foi tornando mais pesada.» (p. 65)
«As minhas conclusões firmam-se, porém, em alicerces mais sólidos. Com efeito:
1 - Nenhum escrito digno de crédito admitiu que D. Sebastião tivesse sobrevivido à batalha de Alcácer-Quibir. Os seus restos mortais foram, formal e incontestavelmente, identificados por muitos dos seus familiares. Não se verifica qualquer razão válida para que este facto seja posto em dúvida.
2 - Sabia-se, na actualidade, que umas ossadas tinham sido trasladadas de Ceuta papa o templo dos Jerónimos, por iniciativa de Filipe I, como sendo as de "O Desejado". Contudo, para muitos, subsistia uma dúvida de natureza política: não teria sido essa trasladação uma manobra hábil de Rei estrangeiro - embora consciente das dúvidas que subsistiam sobre a identificação dos restos mortais do monarca português - para destruir a força do Sebastianismo? A cronologia dos acontecimentos refuta a maquiavélica hipótese. E, sobretudo, os documentos do Arquivo Secreto do Vaticano, constituídos por ofícios da Nunciatura Apostólica endereçados ao Cardeal de Como, além de darem pormenores desconhecidos, mostram que os representantes pontifícios em Lisboa não tinham a menor dúvida de que os restos mortais inumados em Belém eram, de facto, os do nosso Rei. Se houvesse ocorrido em tudo isto o mínimo aspecto de farsa, o Vaticano, certamente, não deixaria de ser prevenido com todo o escrúpulo. Filipe I foi tão correcto para com D. Sebastião depois de este morto como o fora antes de Alcácer-Quibir.
3 - O primeiro epitáfio do túmulo de "O Encoberto" não é coevo do enterro feito num caixão de madeira. Assim se explica a expressão "si vera est fama", através da qual se preservava a sensibilidade popular e a crença no Sebastianismo. Teria sido impolítico e até mesmo impossível proceder-se de outra forma. E, aquando do segundo epitáfio, redigido em 1682, numa época em que a lenda ainda perdurava com todo o vigor e se não tinham feito estudos históricos profundos acerca da morte de D. Sebastião, acentuou-se o erro.
4- Não tenho, deste modo, quaisquer dúvidas em concluir que as ossadas de "O Encoberto" repousam há 388 anos na serenidade dos Jerónimos. São elas os restos, que tendem para o pó, do guerreiro valoroso, do indómito cavaleiro, morto em Alcácer-Quibir, cuja memória ainda hoje os próprios descendentes de seus adversários respeitam. Quando em Marrocos se deseja estimular em alguém o sentido da honra e do dever, diz-se-lhe: "Sede homem, como D. Sebastião."
A verdade histórica que resulta das minhas conclusões não me impede, porém, de gritar, do fundo da minh'alma, em homenagem a uma lenda maravilhosa que foi também um acontecimento altamente patriótico: Glória ao Sebastianismo!» (pp. 66-7)
O livro inclui em anexo uma carta de Filipe II ao Papa (não indica o nome do Papa, nem parece que o documento seja uma carta); duas cartas da Nunciatura de Espanha; uma carta da Nunciatura de Portugal (de D. António, Prior do Crato para o Papa); outras cartas da Nunciatura de Portugal (algumas das quais dirigidas ao Cardeal Di Como) e uma carta do Cardeal-Rei D. Henrique a D. Rodrigo de Meneses.
Estão inseridas no livro muitas ilustrações de retratos e de documentos.
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