sábado, 3 de agosto de 2024

THOMAS MANN, O MÁGICO

Li por estes dias Le Magicien, de Colm Tóibín (2022), tradução francesa do original The Magician, publicado em 2021, romance biográfico sobre o escritor alemão Thomas Mann, Prémio Nobel da Literatura em 1929. Estava por mim agendado mas só agora o comprei.

Lera o ano passado, do mesmo autor e na tradução portuguesa, O Mestre, sobre a vida de Henry James, e comentei aqui .

É curioso que o escritor irlandês Colm Tóibín (n. 1955) tenha dedicado duas vastas obras a dois nomes cimeiros da literatura contemporânea, o anglo-americano Henry James e o alemão Thomas Mann, mas opção muito compreensível. Na verdade, Tóibín é um escritor homossexual assumido (como se diz agora), vivendo com o escritor e editor marroquino naturalizado americano Hedi El-Kholti. O facto de os dois gigantes da literatura Henry James e Thomas Mann serem ambos homossexuais (embora não assumidos) certamente lhe suscitou o interesse de se debruçar sobre as suas vidas.

Se o livro sobre Henry James é uma obra elogiável, o livro sobre Thomas Mann é notável. Apesar das suas 600 páginas apetece nunca interromper a leitura.

Parece oportuno recordar alguns elementos biográficos da família Mann, isto é, as dramatis personae.

O pai de Thomas Mann era o armador e senador de Lübeck Johann Henrich Mann e a mãe a brasileira Júlia da Silva Bruhns, uma família da classe média alta muito respeitada na região. Thomas Mann teve cinco irmãos: Heinrich (1871-1950), Julia (1877-1927), Carla (1881-1910) e Viktor (1890-1949).

Thomas Mann (1875-1955), embora homossexual, manteve sempre uma postura muita discreta, apresentando-se como um respeitável chefe de família. Casou-se em 1905 com Katia (Katharina) Pringsheim (1883-1980), filha do matemático judeu Alfred Pringsheim e de sua mulher Hedwig Pringsheim, família muito rica e culta, da melhor sociedade de Munique, que se havia convertido à religião luterana.

O casal Mann teve seis filhos: Erika (1905-1969), Klaus (1906-1949), Golo (1909-1994), Monika (1910-1992), Elisabeth (1918-2002) e Michael (1919-1977). Erika era abertamente bissexual, Klaus e Golo ambos homossexuais, embora o primeiro excêntrico e o segundo introvertido.

Katia Pringheim Mann tinha vários irmãos, entre os quais um gémeo, Klaus Pringsheim (1883-1972), um rapaz lindo, que viria a ser maestro e compositor e fora aluno de Gustav Mahler, um amigo da família. Thomas Mann conheceu Katia e Klaus ao mesmo tempo, e ficou obviamente impressionado com o rapaz (que não era homossexual), tendo decidido casar com a irmã, muito parecida com ele, naturalmente como gémeos que eram. Katia e Klaus nutriam uma paixão mútua, e embora não haja registo de que tenham cometido incesto, Klaus foi a única verdadeira paixão de Katia.

Erika Mann manteve inúmeras relações com ambos os sexos, tendo decidido propor casamento ao célebre escritor homossexual inglês Christopher Isherwood (1904-1986) para obter a nacionalidade britânica, devido às perseguições nazis. Isherwood, que vivia então com o também célebre poeta homossexual inglês W. H. Auden (1907-1973), declinou a pretensão mas remeteu Erika para o seu amante, que aceitou casar com ela, por altruísmo, em 1935. Apesar da sua nítida preferência lésbica, Erika chegou a manter relações sexuais com o célebre maestro judeu alemão Bruno Walter, na altura ainda casado, quando ambos viviam nos Estados Unidos. Antes do seu casamento com Auden, Erika esteve casada, de 1926 a 1929, com o famoso actor alemão Gustav Gründgens, também ele homossexual e que se tornaria no mais importante comediante do III Reich. A ele me refiro neste post. Gründgens é considerado o mais notável intérprete de sempre do papel de Mefisto do Fausto, de Goethe. Klaus, que escreveu um romance sobre ele, nunca lhe perdoou a sua contemporização com o regime nazi, beneficiando da protecção simultânea de Göring e de Goebbels, em troca do apoio à sua carreira.

Dos cinco irmãos de Thomas Mann apenas Heinrich se distinguiu. Começando a escrever antes do irmão, acabou pobre e ofuscado pela imagem deste. Ficou conhecido nomeadamente pelo seu livro Professor Unrat, que serviu de argumento ao mundialmente conhecido filme O Anjo Azul, de Josef von Sternberg, com interpretação de Marlen Dietrich.

Das irmãs, Julia Mann, pelo casamento com o director bancário Josef Löhr tornada Julia Löhr, teve uma vida atribulada tendo-se tornada morfinómana. Por isso, e também devido às suas relações extraconjugais, enforcou-se; Carla Mann foi actriz de teatro e a fim de não sobrecarregar a família decidiu casar-se. Devido a um suposto caso envolvendo o seu noivo Arthur Gibo, suicidou-se com cianeto.

O último irmão, Viktor Mann, permaneceu na Alemanha durante o período nazi, servindo na Wehrmacht. Um ano antes de morrer escreveu um livro intitulado Retrato da Família Mann.

Dos filhos de Thomas Mann, Erika (que já referimos acima) foi actriz, artista de cabaret, e também escritora, editora, conferencista, jornalista e activista política. Finalmente, tornou-se secretária de seu pai; Klaus Mann tentou ser um grande escritor, que não foi, como o seu pai, mas deixou algumas obras interessantes, nomeadamente Mephisto, sobre o actor Gründgens, referido também acima. Interessou-se pelo teatro, tendo representado e encenado, foi activista político, mas dedicou-se especialmente aos homens, como desenvolto homossexual criado na República de Weimar, época de grandes transformações. Um dos seus amantes, Richard Hallgaten (Ricki), pintor judeu alemão convertido ao protestantismo, suicidou-se com um tiro na cabeça, na véspera de iniciar, com Erika, Klaus, Annemarie Schwazenbach e outros amigos uma longa viagem à Ásia Menor, Pérsia e Rússia. Dependente desde muito jovem de drogas, Klaus também se suicidou em Cannes com uma overdose de soníferos; Golo Mann foi escritor, historiador e filósofo e, depois do seu regresso à Alemanha após o seu exílio nos Estados Unidos durante a guerra, professor da Universidade de Stuttgart, da qual foi demitido em 1963, devido a ser homossexual. A homossexualidade era então punida na República Federal da Alemanha com pena de prisão! Os seus livros mais importantes são Guilherme II, De Weimar a Bonn e Wallenstein; Monika Mann tentou uma carreira musical e foi depois escritora. Casou com o historiador húngaro Jenö Lányi em Itália e quando ambos viajavam de Londres para o Canadá fugindo à guerra, o navio foi atingido por um submarino alemão. Jenö morreu e Monika sobreviveu mas ficou traumatizada durante muitos anos. Viveu depois em Capri com Antonio Spadaro e passou o resto da vida com a família adoptiva de seu irmão Golo; Elisabeth Mann dedicou-se à escrita e casou-se com o professor italiano Giuseppe Antonio Borgese, quase da idade do seu pai. Teve geração, tendo vivido, após enviuvar, com o psiquiatra italiano Corrado Tumiati; Michael Mann foi músico, compositor e professor. Casou com Gretchen (Gret) Moser e teve descendência. Segundo Thomas Mann, era o seu único filho normal.

Acima se declinou, em absoluto resumo, a biografia dos irmãos e filhos de Thomas Mann.

O escritor nasceu em Lübeck, como se disse. Após a morte do pai, a mãe mudou-se com os filhos para Munique, onde Thomas casou e residiu até à sua partida para a Suíça, com o advento do nazismo. Viveu depois exilado nos Estados Unidos, regressando à Suíça após o fim da guerra. Na Suíça morreu. 

O livro, para lá de nos contar, de forma excepcional, a vida de Thomas Mann é também um fresco da Alemanha. Mann nasceu  e ainda viveu muitos anos durante o Segundo Império Alemão (o II Reich); suportou as dificuldades da Primeira Guerra Mundial, permaneceu durante a República de Weimar e a efémera República Soviética da Baviera (1919), de Ernst Toller e Gustav Landauer; assistiu à emergência do nazismo, tendo-se retirado para a Suíça em 1933, ano da chegada de Adolf Hitler ao poder. Permaneceu na Suíça até 1938, data em que se exilou nos Estados Unidos. Regressou à Europa em 1952, tendo-se instalado em Kilchberg, próximo de Zurique, onde morreria em 1955. Visitara a Alemanha em 1949, discursando em Frankfurt, terra natal de Goethe (zona então pertencente à República Federal da Alemanha) e em Weimar, terra de adopção de Goethe (então na zona da República Democrática Alemã). As autoridades americanas tentaram a todo o custo evitar que Mann se deslocasse à RDA, mas o escritor, em homenagem a Goethe, não cedeu, vindo até a ser classificado de comunista, numa altura de forte perturbação anticomunista nos EUA, obsessão que ainda hoje permanece, embora mais atenuada. É claro que Thomas Mann, que apesar das vicissitudes foi toda a vida um burguês e nunca conheceu dificuldades económicas, vivendo sempre rodeado de luxo e de conforto, jamais seria um adepto do comunismo.

Ao longo das suas 600 páginas, o autor mostra-nos as transformações ocorridas na Alemanha durante quase um século, as privações da Primeira Guerra Mundial, a crise económica, social e política da República de Weimar, que esteve na base da emergência do regime nazi, a destruição do país na Segunda Guerra Mundial e o ressurgimento de uma Alemanha partida no pós-guerra. O escritor já não assistiria à reunificação.

O primeiro grande romance de Mann foi Os Buddenbrooks (1901), que descreve a desagregação e falência de um empório familiar, no caso a história da grandeza e decadência da sua própria família. Com tão evidentes semelhanças, Mann foi muito censurado pelos parentes mas o livro obteve um sucesso.

A novela A Morte em Veneza (1912) tornaria Mann famoso. Mais ainda depois do filme de Luchino Visconti. Importa que nos detenhamos um pouco sobre este livro. Tendo passado com a mulher umas férias no Hotel Lido de Veneza, o escritor apercebeu-se que numa mesa próxima se encontrava uma família polaca de que um dos membros, Tadzio, era um maravilhoso adolescente pelo qual Mann se apaixonou, ainda que nunca tivessem trocado palavra. A própria mulher de Mann se apercebeu da perturbação do marido mas como conhecia as suas verdadeiras preferência por vezes até favorecia certos encontros. Este episódio estival forneceu a Mann o argumento da novela. Mais tarde, em 1971, Visconti realizou o filme homónimo com música de Gustav Mahler. Se o livro foi célebre, o filme ressuscitou Mann e tornou Visconti celebérrimo. E, de certa forma, levou Mahler, já considerado um compositor notável, ao conhecimento de todo o mundo. Hoje, ninguém minimamente cultivado ignora o adagietto  da Quinta Sinfonia de Mahler, utilizado como leitmotiv no filme. Note-se que Mahler era amigo da família da mulher de Thomas Mann e há mesmo quem suspeite que o próprio compositor possuía inclinações homossexuais. Sobre A Morte em Veneza publiquei em 2014 um desenvolvido post .

A estada de Katia Mann num sanatório em Davos (local onde nos nossos dias se reúne o Forum Económico Mundial), onde Thomas chegou a passar uns tempos a fazer-lhe companhia, forneceu-lhe o ensejo de escrever um volumoso romance, A Montanha Mágica (1924), que aumentou ainda mais a sua reputação.

Em 1929 ser-lhe-ia atribuído o Prémio Nobel da Literatura.

De 1933 a 1943, Mann publicaria a obra em quatro volumes José e os seus Irmãos.

Em 1947, Thomas Mann, inspirando-se na figura do compositor judeu alemão Arnold Schönberg, também exilado nos Estados Unidos, publicaria o seu último livro notável, o Doutor Fausto. Sobre esta obra, escrevi em 2020 este post. A obra motivaria os protestos de Schönberg, o criador do dodecafonismo.

Em 1954, deixou inacabado o livro iniciado em 1922 As Confissões de Felix Krull Cavalheiro de Indústria, posteriormente publicado e onde Mann faz, de alguma forma, um retrato de si mesmo.

É claro que a obra de ficção de Thomas Mann é muitíssimo mais vasta, além da obra ensaística e de intervenção política, e do seu Diário, que ele próprio destruiu parcialmente por óbvias razões.

Thomas Mann foi uma pessoa de trato difícil. Não manteve regularmente relações muito próximas com os filhos, a quem não permitia que perturbassem o seu trabalho, embora por vezes lhes apresentasse alguns truques de magia que eles muito apreciavam e  em consequência do qual lhe começaram a chamar "o mágico". Pode dizer-se que viveu praticamente só para ele, para os seus escritos, para o seu prestígio, para a sua conta bancária e o seu conforto. Não terá sido o único e não deixa, por esse facto, de ser um imenso escritor. Também Richard Wagner, um gigante da música, foi especialmente interesseiro e pouco escrupuloso o que não obsta a ser considerado um dos maiores compositores de todos os tempos.

A propósito de Wagner, manifestamente anti-semita, importa recordar que Alfred Pringsheim, o sogro de Thomas Mann, era, apesar de judeu, um grande admirador de Wagner, tendo mesmo contribuído para as célebres produções de Bayreuth. E foi Winifred Wagner, a nora de Richard Wagner, confessada admiradora de Hitler, por quem professava uma verdadeira paixão [Hitler era um entusiasta de Wagner e um frequentador habitual dos festivais de ópera de Bayreuth e prestava todas as homenagens a Cosima Wagner, a viúva do compositor], embora dissesse não ser nazi (!) quem ainda obteve do Führer a permissão para o casal Pringsheim (que se recusara a abandonar a Alemanha mesmo depois da instauração do regime nazi) sair finalmente do país (quando tudo estava perdido) para a Suíça, onde viria a morrer.

Ao contrário de muitos outros escritores, Thomas Mann recusou sempre admitir publicamente a sua homossexualidade, embora a deixasse (apenas) entrever em alguns dos seus escritos. Optou por ser o chefe de uma família realmente bastante disfuncional, pai de seis filhos, esposo exemplar e mesmo politicamente acomodatício. Apesar das invectivas do irmão Heinrich e dos filhos Erika e Klaus, levou tempo a tomar uma posição pública sobre o nazismo e mais ainda a condená-lo, só o fazendo quando não corria quaisquer riscos visto já estar exilado na América. 

A sua obra Considerações de um apolítico (1918) exprime as suas considerações políticas (em sentido geral) que professava à época, embora enveredasse posteriormente por um pensamento mais liberal que o conduziria a condenar finalmente o regime hitleriano.

O livro de Colm Tóibín é uma obra magnífica. Sendo uma biografia romanceada lê-se com mais prazer do que uma biografia "oficial", como existem muitas de Thomas Mann, com especial destaque para a de Peter de Mendelssohn. Deve ler-se Le Magicien, pois só assim se poderá avaliar da vida do escritor e apreciar os inúmeros pormenores que não têm cabimento neste post, que aliás já vai longo.


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