Li agora a tradução portuguesa de What Went Wrong? - The Clash Between Islam and Modernity in the Middle East (2002), que comprara aquando da publicação, do académico britânico de origem judaica Bernard Lewis (1916-2018), professor da Universidade de Princetown.
A edição portuguesa intitula-se O Médio Oriente e o Ocidente - O que correu mal?, foi publicada em 2003, e, ao contrário daquilo a que já nos vamos habituando, apresenta uma tradução quase sempre precisa (conferi várias vezes com o original), incluindo os nomes em árabe, em que o tradutor (Bruno Cardoso Reis) mantém a transliteração inglesa (que é a correcta), em vez de adoptar a transliteração francesa (que não respeita o alfabeto árabe, embora seja usual entre nós) o que mostra que este tem conhecimentos da língua árabe, chegando mesmo a incluir em notas de rodapé algumas explicações sobre as palavras.
A produção de Bernard Lewis, que se dedicou a estudar o Mundo Árabe, o Islão e as suas relações com o Ocidente, é vasta, e tendencialmente objectiva, mais nuns livros do que noutros, evidenciando que o autor, apesar de inglês, judeu e professor americano, não compartilha dos preconceitos anti-muçulmanos de muitos dos seus colegas. É certo que manteve uma polémica com o famoso académico palestiniano-americano Edward Saïd (1935-2003), professor na Universidade de Columbia, especialmente por causa das teses enunciadas por este no seu livro Orientalism (1978), mas a abordagem a que procedeu em What Went Wrong? é geralmente adequada.
O livro aborda a civilização islâmica nos mundos árabe, turco e persa, o seu apogeu e o seu declínio. Durante séculos, a civilização islâmica foi proeminente em relação ao Ocidente, caído que fora o Império Romano, mas a partir dos finais da Idade Média europeia e o advento do Renascimento verificou-se uma decadência progressiva do Mundo Islâmico, não só no aspecto militar mas especialmente no universo cultural, devido em grande parte a preconceitos de ordem religiosa que impediam o acesso a conhecimentos dos "infiéis". O Islão, que chegara a ser um farol do conhecimento em muitos matérias e que divulgara a cultura grega [lembro-me eu da Bayt al-Hikma, de Baghdad] e que produzira obras notáveis de filosofia e de história [Ibn Khaldun] e se distinguiu na astronomia, geometria, medicina, etc., entrou num lento processo de declínio onde só tentou equiparar-se ao Ocidente em termos militares, e mesmo assim com reduzido êxito.
O autor analisa em particular o Império Otomano, até porque foi este que exerceu maior preponderância, durante séculos, no Mundo Islâmico, já que absorvera a quase totalidade do Mundo Árabe, sendo o Mundo Persa era uma realidade relativamente à parte. Os turcos estiveram por duas vezes às portas de Viena, e se tivessem ganho as batalhas de então poderíamos ser hoje todos muçulmanos, ou não, porque no Islão as conversões não eram absolutamente obrigatórias, podendo os povos, com o estatuto de dhimmi, manter a sua religião. Recorde-se que, de forma geral, os muçulmanos foram mais tolerantes com as outras religiões (não digo com os ateus, isso era uma linha vermelha) do que os cristãos, que muitos judeus expulsos da Europa, maxime de Espanha e de Portugal, encontraram abrigo no Império Otomano, e que os muçulmanos nunca entenderam as Guerras de Religião na Europa. Mesmo muitos cristãos cismáticos acharam refúgio no mundo muçulmano e o Egipto, conquistado pelos árabes no século VII, possui ainda hoje uma população cristã (copta) que deve ser cerca de 15% da população total do país.
A Revolução dos Jovens Turcos, que pôs fim ao Império Otomano e acabou por conduzir à proclamação da República Turca sob a liderança de Kemal Atatürk, levou à introdução de profundas reformas no país, desde a adopção do alfabeto latino à instauração da laicidade. Os muçulmanos do Médio Oriente têm culpado sucessivamente o Ocidente pela situação de relativa inferioridade nos campos político, social, cultural, militar, etc., em que se encontram hoje em face desse mesmo Ocidente. E interrogam-se sobre o que lhes terá corrido mal. Essa é a perspectiva de Bernard Lewis. É claro que se trata de uma apreciação discutível, já que BL considera, naturalmente, o Ocidente no topo da modernidade. Mas somos obrigados a admitir, para sermos honestos, que os médio-orientais (se não todos, muitos deles) podem preferir a situação em que actualmente vivem do que uma outra copiando os modelos ocidentais. Uma hipótese que nunca seria compreendida por Lewis, para quem a vanguarda da civilização reside no Mundo Ocidental.
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