sábado, 9 de abril de 2022

REVISITANDO ANDRÉ GIDE

Li hoje Le Ramier, de André Gide (recebera o livro ontem, via Amazon). O meu desconhecimento desta brevíssima obra do Mestre era uma lamentável, e inexplicável, lacuna que só agora colmatei.

Trata-se de uma pequena novela erótica (para usar as palavras da filha do autor) que se resume a sete folhas de papel que Gide conservou num envelope, sem nunca as ter publicado, talvez devido ao conselho de amigos.

O texto foi escrito em 1907 e encontrado cerca de 2002 por  Catherine Gide, que decidiu dá-lo à estampa, devido à emoção que a descoberta lhe provocou: «Toute perversité en est totalement absente».

A presente edição contém um "avant-propos" de Catherine Gide, um prefácio de Jean-Claude Perrier e um posfácio de David H. Walker.

O argumento cabe em meia dúzia de linhas.

Em 28 de Julho de 1907, estava Gide de passagem em casa de seu amigo (e futuro senador da República) Eugène Rouart, em Bagnols-de-Grenade, perto de Toulouse. Havia festa na localidade. Rouart, próspero agricultor, mantinha sempre nas propriedades próximas do seu castelo um número razoável de trabalhadores, e respectivos filhos, cuja companhia muito apreciava. Ainda que casado, tal como Gide, Rouart não era indiferente às seduções da juventude e facilitava encontros para satisfação dos amigos que o visitavam.

Nessa cálida noite de Verão, passeava Gide pelo baile público local, na companhia de Raymond, o jovem motorista de Rouart, do pequeno Jean Coulon (o filho do doutor Coulon) e de três irmãos: Baptiste, de 16 anos, Ferdinand, de 15 e um mais pequeno que Gide (então com 37 anos) considerou insignificante. Com a passagem das horas, e cumpridos os rituais a que estas festividades sempre obrigam, acabou Gide por se encontrar, sozinho com Ferdinand, num bosque próximo. Ambos estavam excitados e Ferdinand insistiu para que fossem para os aposentos que Rouart pusera à disposição de Gide. Assim aconteceu, descrevendo Gide, com emoção, os momentos de deslumbramento que passou com o rapaz, talvez um pouco ingénuo mas ao mesmo tempo ousado e absolutamente atraente. Dispenso-me, naturalmente, de referir os pormenores desse inolvidável encontro, que o escritor consignou no papel e de que se recordaria durante toda a vida. 

Como investigaram os autores do prefácio e do posfácio, Ferdinand não tinha 15 anos mas 17 e os supostos irmãos eram afinal primos. Essa noite foi mais tarde lembrada por Gide em conversas com os seus amigos que cultivavam as mesmas inclinações, o próprio Rouart e, entre outros, os escritores Roger Martin du Gard e Henri Ghéon (que haveria posteriormente de se converter ao mais puritano catolicismo). Quis o destino que Ferdinand morresse três anos mais tarde, com 20 anos, vítima de tuberculose, mas os amigos acompanharam-no até ao fim. 

As obras completas de André Gide, que receberia em 1947 o Prémio Nobel da Literatura, ficariam "incompletas" sem este testemunho pessoalíssimo do escritor, ainda que este não tivesse omitido o tema em muitos dos seus livros, nomeadamente em Si le grain ne meurt (1926), onde descreve as suas aventuras com jovens argelinos e tunisinos, ou no seu incontornável Journal

O posfácio do livro inclui trechos da correspondência mantida entre Eugène Rouart e André Gide. 

Ocorre referir que "ramier" em francês designa uma espécie de pombo mais ou menos selvagem, com um arrulhar característico, e que Gide baptizara Ferdinand com o epíteto "ramier" devido aos sons que o rapaz produzia durante o acto sexual.

André Gide (1869-1951), o "contemporâneo capital", como lhe chamou Éric Deschodt, é uma das figuras literárias mais apaixonantes do século passado, como escrevi aqui: http://domedioorienteeafins.blogspot.com/2016/09/andre-gide-o-contemporaneo-capital.html

 

1 comentário:

Anónimo disse...

Gide,como Montherlant e Peyrefitte, notáveis figuras da literatura francesa e de um "plaisir de vivre",que o Talleyrand aplicava a quem viveu antes de 1780, mas nós ainda podemos situar nos anos 30 e 40. Em muitos aspectos importantes o "plaisir" secou,os tempos secaram, ficaram pedras e memórias.