Acabou de ser publicada a segunda parte do "testamento literário-sexual" de Dominique Fernandez, L'homme de trop 2, cuja primeira parte fora editada no ano passado e de que fiz aqui referência.
Nestes dois volumes, Dominique Fernandez, que conta agora 92 anos, membro da Academia Francesa e um dos maiores escritores franceses vivos, autor de vastíssima obra (mais de cem títulos) que abrange o romance, o ensaio, a narrativa de viagens e até o libretto de uma ópera, dá testemunho da "normalização" da homossexualidade, através da sua experiência de vida.
Assumidamente homossexual desde a sua juventude, ainda que estivesse casado durante dez anos com a escritora Diane de Margerie e tenha um filho e uma filha, Dominique Fernandez (DF) cria neste livro uma personagem, Lucas, seu alter-ego, pertencendo a uma geração precedente, que dialoga com homossexuais mais jovens acerca da evolução dos costumes e da presente "aceitação" da homossexualidade como uma coisa perfeitamente natural. Com as vantagens e as desvantagens inerentes.
Nesta sua extensa obra (a soma dos dois volumes ultrapassa as 800 páginas), DF evoca (no mundo ocidental) os perigos sociais e penais da prática da homossexualidade (considerada um crime na "liberal" Inglaterra até 1967 e na Escócia até 1980) mas igualmente a atmosfera de ambiguidade e mistério que a caracterizava e que constituía um dos seus encantos. Do texto, poderá de alguma forma concluir-se que para o autor ela é hoje incolor, inodora e insípida, apesar da bandeira arco-íris e de todo o folclore que a acompanha. Atrever-me-ia mesmo a supor que DF, sendo homossexual, é anti-gay, e profundamente desconfiado das teorias identitárias fomentadas do outro lado do Atlântico.
Porque o segundo volume é um prolongamento do primeiro, as considerações mais pormenorizadas que fiz acerca deste, e cujo link referi acima, dispensam-me de desenvolver agora uma crítica detalhada. Os casamentos same-sex, a adopção de crianças, as identidades de género, a redução do "casal" homossexual a uma família burguesa, são tudo manifestações do pensamento único ocidental, baseado nas atitudes politicamente correctas anglo-saxónicas. Nem sequer resta a magia do "engate", susceptível de ser considerado assédio sexual, salvo os encontros através de meios informáticos, o que eu chamaria a digitalização do sexo.
Neste segundo volume, aliás como no primeiro, DF aproveita a efabulação para exprimir as suas convicções particulares. E utiliza muitas vezes uma especial ironia, quando, por exemplo, a propósito da tradicional ligação dos homossexuais às suas mães, faz dizer à mãe de uma das suas personagens:
- «Voyez-vous, les filles se croient tout permis. Elles cherchent à arracher les garçons à leur mère. Leur but, c'est de nous spolier de ce qu'ils nous doivent, leur idée fixe, leur perfidie, c'est de vouloir qu'ils ne dépendent plus de celle qui les a mis au monde, nourris, bercés, soignés quand ils étaient malades, consolés quand ils avaient du chagrin, conduits vers le bonheur, amenés à l'épuisement. [...] Comme j'ai été soulagée, monsieur, quand j'ai appris que mon fils était pédé! » (p.225)
- «De mon temps, le fils homo choisissait d'être homo, précisement pour ne pas quitter sa mère. S'ils se mettent en ménage, comme ce journal annonce, c'est comme ils se mariaient avec une fille. Où seraient la différence?» (p. 229)
- «La première erreur a été de supprimer le service militaire. L'armée, ça ne suffisait sans doute pas à protéger la patrie contre l'invasion, mais c'était rudement bien pour fabriquer des pédés. Dormir l'un contre l'autre, dans la promiscuité des dortoirs... Les gouvernements pensaient à tout, en ces temps-là.» (p. 230)
Também DF se debruça sobre a idade de consentimento dos jovens, aludindo largamente à obra do romancista Tony Duvert e explicando que não há uma correspondência entre a maturidade sexual e a idade consagrada no bilhete de identidade. E é igualmente muito crítico sobre os "novos" assédios sexuais, cujas "vítimas" se queixam agora depois de actos ocorridos (se ocorridos) há décadas.
A propósito do desaparecimento, com um dia de intervalo, de Johnny Hallyday e de Jean d'Ormesson, DF pronuncia-se contra Emmanuel Macron, que considerou o primeiro como um herói e o segundo como um grande escritor. Entende DF que se trata de uma mistificação orquestrada para promover a imagem do presidente. E explica porquê.
Ao longo do livro perpassa uma crítica ao politicamente correcto, umas vezes ostensiva, outras dissimulada. Incluindo a transição ecológica e a transição digital. A dependência dos jovens, e até dos menos jovens, em relação aos telemóveis é um sinal de uma doença que afecta a nossa vida comum.
Este livro testemunha a luta interior de DF entre uma sociedade antiga, com muitos interditos mas também com os encantos da transgressão e da ultrapassagem de dificuldades e a sociedade actual, mais permissiva mas sem a magia do desconhecido, onde tudo nos é dado (ou parece que é) sem esforço, pronto a usar, nos corpos e nos objectos. O escritor considerava-se um homem supérfluo, um homem a mais, "un homme de trop", nos seus tempos de juventude, mas pensa que no mundo actual continua a ser um homem a mais, tão inadequado se sente em relação às novas gerações.
A encerrar o livro, DF evoca a hipótese, levantada o ano passado, da transferência dos restos mortais de Rimbaud e de Verlaine para o Panthéon. Esta trasladação, desejada por numerosos intelectuais, não foi acolhida pelas famílias dos defuntos e teve a oposição de muitos homossexuais notáveis (DF incluído) ,que consideraram que tal acto seria uma profanação da memória dos dois poetas, já que estes foram em vida absolutamente contrários aos convencionalismos da sociedade burguesa.
Esta obra de Dominique Fernandez, talvez a derradeira dada a idade do autor, foi concluída em 2021 mas deve ter começado a ser escrita alguns anos anos, atendendo às referências do texto. A qualidade dos capítulos é irregular, sendo alguns de grande vivacidade e interesse e outros algo monótonos e desnecessários. Como na maioria dos seus livros, DF dá testemunho de uma profunda erudição, mas permito-me considerar que a profusão de alusões culturais é por vezes excessiva.
Registei aqui alguns aspectos da obra em apreço, que poderão suscitar no leitor interessado a vontade de ler o livro. Ele é, sem dúvida, a demonstração não só de um conflito de gerações como das modificações abruptas ocorridas na sociedade nos últimos cinquenta anos, como o monoteísmo de mercado imposto pelo capitalismo ultra-liberal, a digitalização da vida, o ostracismo dos velhos, a correcção dos costumes, o pensamento único.
Será que estamos hoje melhor na vida? Em alguns aspectos, certamente que sim. Em muitos outros, obviamente que não!