segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O FAUSTO DE THOMAS MANN

 

O último grande livro publicado por Thomas Mann (1975-1955), depois do êxito de Os Budenbrooks, A Montanha Mágica e José e os seus Irmãos, foi o Doutor Fausto (1947), inspirado na lenda alemã de Fausto, o velho alquimista que vendeu a alma ao Diabo.

Segundo as escassas fontes, terá existido historicamente um Doutor Johann Gregor Faust (1480-1540, aproximadamente), que se dedicava às ciências ocultas e estudara em Cracóvia. Há o registo de um outro Fausto, talvez o mesmo, Georgius Sabellicus Faustus, homossexual, que ensinou na universidade de Heildelberg e foi expulso por assediar os seus alunos. Estamos num campo em que a história se mistura com a lenda.

Em 1587, foi publicada pela primeira vez em Frankfurt, por Johann Spies, a História do Doutor João Fausto, conhecida por Volksbuch (ou Faustbuch), embora haja testemunhos anteriores dos feitos praticados na Europa por um certo doutor Fausto. É a primeira obra escrita sobre o famoso homem que fez um pacto com diabo, trocando a alma pelos favores proporcionados pelo inferno.

Em 1592, foi publicada a versão inglesa do Volksbuch (The English Faust-Book), a partir da qual Marlowe escreveu a sua peça Doctor Faustus, provavelmente ainda nesse ano, já que foi assassinado, em circunstâncias nunca suficientemente esclarecidas, em 30 de Maio de 1593. É a última peça de Christopher Marlowe e revela indiscutivelmente o seu carácter autobiográfico. Marlowe é um homem do Renascimento (como Shakespeare, ambos nascidos em 1564) e o seu destino assemelha-se ao de Fausto e pode resumir-se na frase inspirada de R. M. Dawkins: «The story of a Renaissance man who had to pay the medieval price for being one». 

A primeira edição do Fausto de Marlowe data de 1604: The Tragical History of Doctor Faustus e é conhecida por versão A, dela existindo um único exemplar. Foi reimpressa em 1609 (Versão A2) e em 1611 (Versão A3). Em 1616, surgiu um texto algo diferente, The Tragical History of the Life and Death of Doctor Faustus (Versão B), de que existe também apenas um exemplar e que foi objecto de várias reimpressões no século XVII.

Existe alguma controvérsia sobre as datas das primeiras versões escritas da história de Fausto, quer em alemão, quer em inglês. Os eruditos na matéria prosseguem as suas investigações.

Ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX o tema de Fausto foi objecto das mais variadas abordagens quer na literatura, quer na música, quer, mais tarde, no cinema.

Referem-se as mais importantes. Em 1808, Goethe publica a 1ª Parte do seu poema dramático Faust. A 2ª Parte será publicada postumamente em 1832. Em 1836, Nikolaus Lenau publica Faust e em 1851, Heinrich Heine publica Der Doktor Faust. Ein Tanzpoem. Em 1925, Michel de Ghelderode publica La mort du Docteur Faust. Entre 1928 e 1940, Mikhail Bulgakov escreveu O Mestre e Margarida, cuja versão censurada foi publicada numa revista de Moscovo em 1966-1967 e foi editada em Paris em 1967. Em 1933, Klaus Mann escreve Mephisto. Em 1937, Stephen Vincent Benét publica The Devil and Daniel Webster, baseado em The Devil and Tom Walker, de Washington Irving (1824). Em 1946 surge Mon Faust, de Paul Valéry e em 1963 An Irish Faustus, de Lawrence Durrell. Além de vários outros que podem ser facilmente pesquisados.

Em 1910, aproximadamente, Fernando Pessoa começa a escrever o Fausto, Tragédia Subjectiva, cuja redacção se prolongará até à data da sua morte (1935), havendo uma primeira edição estabelecida em 1988. Júlio Dantas morre (1962), deixando apenas começada a sua peça A Tentação do Doutor Fausto.

Michel de Ghelderode/Lawrence Durrell

Em 1828, Gérard de Nerval traduziu, adaptando-o, o Faust, de Goethe.

Na música, pode referir-se Faust (abertura) (1840), de Wagner, La Damnation de Faust (1846), de Berlioz, Szenen aus Goethes Faust (1853), de Schumann, Faust (sinfonia) (1857), de Liszt, Faust (1865), de Gounod, Mefistofele (1868), de Arrigo Boito, Sinfonia nº 8 (1906), de Mahler, Doktor Faust (1925), de Ferruccio Busoni, entre outras obras.

No cinema, mencione-se Faust (1926), de Murnau, La Beauté du diable (1950), de René Clair, Phantom of the Paradise (1974), de Brian DePalma, Mephisto (1981), de István Szabó, Faust (2011), de Sokurov, etc.


Um assunto inesgotável!!!

Não pretendendo alongar-me sobre  o tema, regressemos a Thomas Mann. O escritor publicou Doktor Faustus em 1947, um ano crucial para o autor. A ascensão do nacional-socialismo na Alemanha, a perseguição dos judeus (a mulher de Mann era judia, logo os filhos também), a censura cultural, levaram certamente à redacção desta obra e ao exílio do escritor. Já em Fevereiro de 1933, por ocasião de um ciclo de conferências sobre Richard Wagner, no 50º da sua morte, proferidas em Munique, Amesterdão e Bruxelas, e que desagradaram a Hitler, particularmente cioso do seu culto pelo compositor germânico, foi desencadeada uma campanha que afectou profundamente Mann, em especial porque o NSDAP conseguiu que fosse publicado um manifesto contra as suas opiniões, subscrito por 45 importantes individualidades das letras e das artes, entre as quais o famoso maestro Hans Knappertbusch e o compositor Richard Strauss, que professavam simpatias pelo nazismo, a exemplo do filósofo Martin Heidegger e do maestro Herbert von Karajan.

O Fausto de Thomas Mann é diferente da versão clássica. O escritor encena a vida do famoso compositor (fictício) Adrian Leverkühn narrada pelo seu amigo Serenus Zeitblom. O compositor seria o criador da música dodecafónica ou serial, tarefa aliás empreendida por Arnold Schönberg, ao qual, no fim do livro, Mann consagra uma nota de esclarecimento, como que a pedir desculpa por ter atribuído à sua personagem a paternidade do sistema atonal.

Tradução portuguesa de Luiza Neto Jorge

O livro conta o pacto satânico estabelecido numa casa de passe por Leverkühn, ao contrair voluntariamente a sífilis com a prostituta Esmeralda, e a quem o Diabo privilegiou com o génio, em troca de uma irremediável solidão - a impossibilidade de amar. Leverkühn, que lembra de certa forma Nietzsche, que nunca é citado no livro, e de cuja vida são retirados os episódios da casa de passe, da prostituta e da doença venérea. 

O Título original é мастер и маргарита (O Mestre e Margarita)

Grosso volume de mais de 500 páginas (em letra miudinha), o Doktor Faustus, de Thomas Mann, evoca simbolicamente o pacto de sangue da Alemanha nazi, na sua hubris guerreira de conquista do mundo.

Sobre esta obra de Thomas Mann, realizou Franz Seitz um filme homónimo (1982), em que condensa brilhantemente o romance, existindo duas versões, o filme propriamente dito (duas horas) e a série televisiva (três horas).

A vida e a obra de Thomas Mann (Prémio Nobel da Literatura em 1929) e da sua família e o mito de Fausto ao longo da História, de que aqui se registam meros apontamentos, são um inesgotável filão do conhecimento. Compete aos interessados fazer as suas próprias pesquisas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Apreciável resumo das inumeráveis obras sobre o tema do Doutor Fausto,em -literatura,Música,Cinema,etc. De momento só recordo como esquecido, o Dr.Fausto (1967) do e com o Richard Burton. O tema ou o mito do Fausto é profundamente europeu/ocidental, a ambição sem fim e sem limites,ambição que tanto pode ser do saber,como do poder,da juventude,da criatividade, e disposta a qualquer compromisso para alcançar o seu objectivo. Don Giovanni é um parente,como até o Dorian Gray. Os "nossos" mitos,felizmente, são quase infinitamente fecundos para uma imaginação criadora. Obrigado ao autor do blog.