sexta-feira, 25 de setembro de 2020

OS IRMÃOS GONCOURT

Foram publicados recentemente dois livros sobre os famosos irmãos Goncourt: Les Infréquentables Frères Goncourt, de Pierre Ménard (400 páginas) e Les Frères Goncourt, de Jean Louis Cabanès e Pierre Dufief (800 páginas). Optei por comprar o primeiro, que agora comento, já que se me esgota o tempo para ler livros de 800 páginas, salvo em casos excepcionais. Tanto mais que aquele beneficiava de uma crítica bastante favorável e que o autor, que conta apenas 27 anos, obtivera grande sucesso com a sua anterior obra Le Français qui possédait l'Amérique. La vie extraordinaire d'Antoine Crozat, milliardaire sous Louis XIV (2019). Sem ignorar, todavia, que o segundo, cujos autores são professores eméritos da Universidade de Paris, deverá ser uma biografia mais conforme ao padrão a que estamos habituados.

Os irmãos Goncourt, Edmond de Goncourt (1822-1896) e Jules de Goncourt (1830-1870), ficaram célebres não tanto pela sua obra literária, que é irrelevante, mas pela sua excentricidade e, principalmente, pelo facto do testamento hológrafo do primeiro instituir a Academia Goncourt, que concede anualmente, desde 1903, o Prémio Goncourt, o mais importante galardão literário francês. Sem esquecer, evidentemente, o Journal, que cobre o vasto período de 1851 a 1896, verdadeira crónica da vida artística e mundana francesa da época, que proporcionou a Marcel Proust um pastiche, em À la recherche du temps perdu (Le temps retrouvé). Aliás, o próprio Proust receberia, em 1919, o Prémio Goncourt, pelo seu livro À l'ombre des jeunes filles en fleurs.                   

O livro ora em apreço é realmente uma manta de retalhos, ainda que respeitando, de certo modo, uma ordem cronológica. O autor intercala sucessivamente fragmentos de textos dos próprios Goncourt com considerações acerca deles mesmos, acerca de terceiros, opiniões pessoais, referências históricas, tornando difícil uma apreensão sequencial dos factos. É evidente que Pierre Ménard não pretendeu escrever propriamente uma biografia, mas este patchwork, de interesse irregular, não é de molde a fornecer uma visão clara (e organizada) da vida dos irmãos e da sua presença nos meios literários e sociais de Paris dos anos Oitocentos.

O historiador Michel Winock, que assina o Prefácio, dá-nos, em quatro páginas, um retrato relâmpago dos Goncourt, a quem Gustave Flaubert, que era amigo da casa, chamava "mes bichons". Considerando-os misantropos, misóginos, misoneístas e anti-semitas, Winock recorda que a sua obra, mesmo a que teve algum sucesso na época, foi eclipsada pelo Journal, que começaram a escrever em 2 de Dezembro de 1851, aquando do golpe de Estado de Luís-Napoleão Bonaparte, e que foi concluído em 1896, pouco tempo antes da morte de Edmond. E sublinha que o Journal é um documento insubstituível sobre a República das letras ao longo da segunda metade do século XIX. 

A propósito da credibilidade dos factos e das palavras consignadas no Journal, Winock evoca uma afirmação de André Gide, quanto às dúvidas do pintor Jacques-Émile Blanche relativamente a uma cena descrita por Edmond de Goncourt e do qual aquele fora testemunha: «Mais les paroles qu'il prête aux uns et aux autres, si fausses qu'elles soient d'après vous, ne sont presque jamais inintéressantes. Faites attention que, plus vous le diminuez comme sténographe, plus vous le grandissez comme littérateur, comme créateur...». 

Edmond e Jules de Goncourt sempre detestaram o seu tempo, o que não os impediu de escreverem romances que inspiraram o naturalismo de Zola e Huysmans. E foram amigos de Flaubert, Gautier, Taine, Renan, Turgueniev e Zola. Nos últimos anos da sua vida, Edmond foi consagrado "chef des armées littéraires" ou "Maréchal des lettres", e recebia amigos e admiradores no seu Grenier d'Auteuil, tornado um dos lugares de memória da história literária francesa.

Ao contrário dos irmãos fratricidas Caim e Abel ou Rómulo e Remo, os irmãos Goncourt, que não eram parecidos fisicamente, foram uma só alma habitando dois corpos. Sainte.Beuve classificou-os de "deux frères jumeaux à huit ans de distance" e os seus correspondentes dirigiam-se-lhes como "Chers Gémeaux" (Émile Forgues), "Chers siamois" (Xavier Aubryet), ou utilizaram um tratamento colectivo "Chers amis, tu peux venir tous les deux quand tu voudras..." (Mario Uchard).

Como tinham optado por não trabalhar, os dois irmãos viviam dos rendimentos, porventura insuficientes para manter duas casas. Habitavam assim o mesmo apartamento, possuíam uma só empregada doméstica, Rose, e partilhavam a mesma cama e, inclusive, a mesma amante, Maria, para a "higiene semanal", (apesar de detestarem verdadeiramente as mulheres). Coleccionavam arte e Jules empenhou-se até na pintura e na gravura, mas a principal actividade de ambos era a escrita, que só muito tarde obteve algum, e relativo, êxito. Eram artistas sem galeristas, escritores sem editor, dramaturgos sem teatro. 

Quando Jules morreu aos 40 anos, vítima de sífilis, Edmond assumiu a qualidade de viúvo ("La veuve", como era conhecido nos salões parisienses). Eternos celibatários, eram os dois de tal forma inseparáveis que Michel Larivière se interroga se não teriam sido mesmo amantes. Já para o fim da vida, Edmond escreve no seu Journal: «Voilà déjà longtemps que j'ai perdu le goût de jouir. Mais je me sens de si intimes affinités avec le tempérament féminin, que si je redevenais jeune et si je refaisais l'amour, je redeviendrais pédéraste, ma parole d'honneur.» 

Escreve Pierre Ménard : «Misogynes, Edmond et Jules le sont par conviction, par vocation, par nécessité et même par devoir. Chex eux, les mystères de l'amour se résument à une tâche mécanique au même titre que l'on mange pour satisfaire sa faim ou que l'on boit pour étacher sa soif.» (p. 112) Ou: «Pourquoi s'embarrasseraient-ils d'une femme qui ne pourrait que briser leur paisible union? Leur amour-propre leur rend difficile l'amour d'autres qu'eux mêmes, aussi chacun se satisfait-il de la prolongation de sa propre personne trouvée dans son frère. En privé comme en public, Edmond et Jules se définissent donc comme un couple fraternel et se font adresser leur courrier à "Messieurs de Goncourt, rue Saint-Georges", ainsi que l'on écrirait à "Monsieur et Madame de Goncourt"» (p. 114-5)

O livro fala-nos dos salões da princesa Mathilde (filha de Jérôme Bonaparte, que foi rei da Vestfália), sobrinha de Napoleão I e prima direita e ex-noiva do próprio Napoleão III. E também dos frequentadores habituais dessas recepções e de como os Goncourt começaram a ser convidados, muito críticos ao princípio, entusiasmados mais tarde. Eles, que eram realistas e anti-imperiais. E foi por isso que muito se indignaram com as demolições no centro da capital, levadas a cabo pelo Barão Haussmann, a quem se deve a remodelação urbanística de Paris. Que, diga-se de passagem, transformou a capital francesa na cidade ainda hoje existente e que nada tem a ver com algumas transformações preconizadas agora por Anne Hidalgo ou com as obras pífias de Medina em Lisboa.

Ainda antes da queda do II Império e da Comuna de Paris, os irmãos tinham-se mudado para Auteuil, continuando com intensa actividade social e estabelecendo uma forte amizade com Alphonse Daudet e com os filhos deste. Se alguns se entusiasmam com o novo estilo, Gide gaba-se de ter lido Les hommes de lettres «pour apprendre comment il faut ne pas écrire.» (p. 203)

A sífilis progressiva de Jules vai transformando o seu corpo e o seu espírito. Perante a ruína física do irmão, Edmond não suporta assistir ao espectáculo de tão profunda decadência e decide tomar uma atitude radical. Empunhando uma pistola, resolve matar Jules e suicidar-se. Mas arrepende-se no último momento, incapaz de consumar o acto. Este episódio manteve-se secreto, sendo do exclusivo conhecimento de Flaubert. Quando Jules morre, de encefalite, Edmond assume a "viuvez" até ao fim a vida.

Com a passagem dos anos, o sucesso relativo de algumas obras publicadas e a convivência com os vultos ilustres das letras, Edmond de Goncourt foi adquirindo um progressivo prestígio e, para o fim da vida, era já uma personalidade de referência na literatura francesa. 

Profundamente conservador, o mais velho dos Goncourt protestou contra todas as transformações da sociedade. Em 1893, publicou À bas le progrès!, denunciando as transformações que considerava nocivas à vida e à arte. Em consonância com o anti-semitismo da época, Edmond é autor de muitas afirmações contra os judeus, a quem acusa de todos os males que afligem a França. Julga-se que foi influenciado por Edouard Drumont, autor de La France juive, embora outros sustentem que ele mesmo teria influenciado Drumont. Escreveu: «Si la famille Rothschild n'est pas habillée en jaune nous serons prochainement, nous chrétiens, domestiqués, ilotisés, réduits en servitude.» (p. 337) Apesar disso, aquando do caso Dreyfus, tendo sido inicialmente contrário ao capitão, afirmou mais tarde que não o considerava um traidor.

Todavia, a sua saúde foi-se debilitando e Edmond de Goncourt virá a falecer, em casa de Alphonse Daudet, em 16 de Julho de 1896. O seu funeral em Auteuil foi discreto, embora com a presença dos homens de letras mais proeminentes. Zola pronunciou a oração fúnebre. De acordo com o testamento, os seus móveis, tapeçarias, curiosidades da China e do Japão, desenhos do século XVIII, livros e gravuras foram vendidos em leilão no Hôtel Drouot, e renderam 1.400.000 francos, talvez 50 milhões de euros dos nossos dias (o autor refere que a importância equivalia ao salário anual de 4.500 cozinheiras).

O testamento foi contudo contestado por familiares e a sua confirmação só foi obtida em tribunal graças ao talento de Raymond Poincaré, em 1897 e 1900. Em 1903, o Conselho de Estado reconheceu a jovem Academia de utilidade pública.

A ideia de um júri premiar um romance era uma novidade que rapidamente seduziu a França. Assim nasceram os prémios Renaudot, Femina, Interallié e mesmo, em 1915, o grande prémio do romance da Academia Francesa. 

As reuniões dos membros do júri instituído inicialmente por Edmond (Alphonse Daudet foi substituído por seu filho Léon) foram saltando de restaurante em restaurante, até se fixarem definitivamente no Drouant em 1914. E entretanto, com a desvalorização sucessiva do franco, os recursos financeiros da Academia foram emagrecendo até hoje, ainda que o prémio tenha aumentado em prestígio.

Problema maior para os membros da Academia foi a publicação do Journal, que segundo Edmond de Goncourt deveria permanecer selado durante vinte anos, ao fim dos quais seria remetido ao departamento de manuscritos da Biblioteca Nacional. A sua grande perplexidade devia-se ao facto de recearem que a divulgação do seu conteúdo os expusesse ao opróbrio, já que não ignoravam o género de considerações que os irmãos teciam a propósito de toda a gente.

Em consequência, a publicação foi sucessivamente adiada e só veria a luz em 1956 (sessenta anos depois da morte do último dos irmãos) e mesmo assim com reservas, já que o ministério encarregado do dossier ordenou certas restrições "por necessidades legais".

Existe hoje uma edição, presumivelmente integral, em três volumes, organizada por Robert Kopp, Journal - Mémoires de la vie littéraire (1851-1896).


Algumas citações do Journal:

«Il est difficile d'avoir des illusions sur quelque chose à Paris. Il y a des impôts sur tout, on y vend tout, on y fabrique tout, même le succès.»

«Dire mal des autres [...] et encore la plus grande récréation que l'homme social ait trouvée.»

«Vendre des hommes, ça déshonore un peu - des femmes, tout à fait.»

«Ce qui entend le plus des bêtises dans le monde est peut-être un tableau de musés.»

«Le mariage est la croix d'honneur des putains.»

«Quelle ironie! Les gens de génie et d'esprit se tuant toute leur vie pour cette grande bête du public, tout en méprisant, au fond de leur coeur, chaque imbécile qui le compose.»

«Plus de jouissance dans la vie que la jouissance de voir mon nom imprimé. Est-ce assez bête!... Mais, après tout, c'est la petite monnaie de la gloire!»

«Rien ne lie deux personnes comme de dire du mal d'une troisième.»

«La littérature, c'est ma sainte maîtresse, les bibelots, c'est ma putain: pour entretenir cette dernière, jamais la sainte maîtresse n'en souffrira.»

«Au fond, chacun veut la vérité sur les autres et ne consent pas à la lire dite sur lui.»

«Ah! les pauvres révolutionnaires dans les sciences, dans les arts, dans les lettres, quand ils ne sont pas méprisés par leurs femmes, ils le sont par leur bonnes!»

«La médisance est encore le plus grand lien des sociétés.»

«L'homme qui s'enfonce et s'abîme dans la création littéraire n'a pas besoin d'affection de femme, d'enfants. Son coeur n'existe plus, il n'est plus qu'une cervelle.»

«Je crois vraiment, quand je serai mort, que mes confrères viendront chier sur ma tombe.»

(Citações extraídas da obra em apreço)

 

Sobre os Irmãos Goncourt, aliás sobre o Prémio Goncourt, publiquei este post em 2014: https://www.blogger.com/blog/post/edit/2298776560388969480/5932078988760079442

 

 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

EDMUND WHITE. O SEXO E A VIDA



O escritor Edmund White (n. 1940), generosamente galardoado ao longo da sua carreira, é talvez, dos escritores norte-americanos, o que mais vasta, intensa e minuciosamente discorreu sobre o sexo, no caso concreto sobre o mesmo sexo, já que uma parte dos seus livros é de carácter autobiográfico e recolhe todo um saber de experiência feito.



A sua obra estende-se por quase meio século, e inclui ficção, teatro, ensaio e até as biografias de Proust, de Rimbaud e de Jean Genet, esta última considerada ainda hoje a grande obra de referência sobre a vida do autor de Notre-Dame-des-Fleurs.



Na sua bibliografia, destaca-se a trilogia dos romances propriamente autobiográficos, a saber: A Boy's Own Story (1982) [A Vida Privada de um Rapaz (1996)] , The Beautiful Room is Empty (1988) [Um Belo Quarto Vazio (1992)] e The Farewell Symphony (1997) [Sinfonia A Despedida (1999)]. Neles, White descreve a sua vida desde a infância até à idade adulta, incluindo os anos que passou em Paris (1983-1990). Sendo um homem ilustrado, os seus livros estão recheados de referências culturais, nomeadamente musicais, mas é a vida sexual que constitui o leitmotiv da narrativa. Edmund White descreve com pormenor os seus "engates" desde os doze anos, em família, nos colégios, na universidade, na vida profissional, não nos poupando aos mínimos detalhes. Importa salientar que o tradutor português (li a versão portuguesa) reproduz com precisão as expressões usadas no milieu gay nacional, o que é uma mais valia para a inteligibilidade do texto. O autor revela sem falsos pudores a "promiscuidade" das suas relações (ter-se-á deitado com muitos milhares de homens diferentes) e mesmo o seu contágio com o HIV, que determinou um especial envolvimento na criação de AIDES, a organização francesa de apoio aos doentes de SIDA, fundada por Daniel Defert, o último companheiro de Michel Foucault.



Edmund White, que é (ou foi) professor de escrita criativa na Universidade de Princeton, publicou em 2005 uma autobiografia propriamente dita, My Lives, de que adquiri na altura, em Paris, a tradução francesa mas que ainda não li. Os seus livros revelam uma imensa sinceridade na exposição dos seus gostos, das suas angústias, das suas alegrias, das suas opiniões sobre a arte e a vida. Nada é gratuito na prosa e mesmo a descrição de situações que  nos podem parecer repetitivas inclui sempre uma partícula de originalidade. Importa, todavia, acrescentar que a "crueza" com que são narradas algumas "aventuras" se afigura quiçá exagerada para ser real, mas estamos perante livros de ficção, apesar de inegavelmente autobiográficos. O seu interesse pelas relações sexuais em família é patente e a sua atracção pelo próprio pai é referida em alguns volumes. «Lastimo um homem que nunca quis ir para a cama com o pai», pode ler-se na página 33 de A Vida Privada de um Rapaz. E também a sua atracção pelos adultos, quando era criança: «Toda a gente faz um grande alarido por causa do sexo com crianças. No fim de contas as crianças também têm as suas necessidades sexuais. Desde que não haja violência...» (Sinfonia A Despedida, p. 314), afirmação que seria hoje certamente condenada pela moral vigente. E é igualmente patente ao longo do texto uma certa "paixão" pelo incesto, para retomar o título de um livro de Yvan Simonis, sobre Claude Lévi-Strauss.

Os três volumes somam cerca de 1.000 páginas, que encerram, para além da vivência sexual, uma acerada crítica social e uma crítica aos Estados Unidos e ao american way of life, embora não tão violenta como a do eminente escritor e seu compatriota Gore Vidal. Penso que o terceiro volume é o mais interessante (e o mais extenso): contém a última parte da sua vida (até à data da publicação), revelando as relações com outros escritores famosos (curiosa a sua apreciação de Michel Foucault), a devastação causada pela SIDA, as descrições de Veneza, a dicotomia americanos/franceses, as excentricidades sexuais. Dotado de um inegável espírito de observação, Edmund White consegue, pela excelência da escrita, convocar permanentemente o interesse do leitor, mesmo quando a sucessão de algumas "cenas" poderia considerar-se monótona.



Apesar de não ter tido ainda oportunidade de ler Mes Vies (os livros acumulam-se e há que fazer opções), ao contrário da trilogia autobiográfica que é objecto deste post, e que segue uma ordem cronológica, esta obra está organizada por temas.

Constatei, por acaso, que o tradutor dos três livros, José Vieira de Lima, faleceu no ano passado. Como escrevi acima, cometeu a proeza de nos dar, no jargão português, o equivalente ao calão anglo/americano para as mais diversas e improváveis actividades sexuais. Merece, por isso, uma explícita referência.



sábado, 12 de setembro de 2020

PORTUGAL - RAZÃO E MISTÉRIO

 

Foi editado muito recentemente o livro Portugal - Razão e Mistério (A Trilogia), de António Quadros.



Trata-se da reedição dos volumes I (1986) e II (1987) publicados com o mesmo título (e que se encontravam esgotados) e da edição de um texto destinado ao III volume e que foi descoberto entre os papéis do autor.


António Quadros (1923-1993), faleceu sem ter concluído esta importante obra, tendo a família recuperado o texto que agora se publica, em conjunto com a reedição dos dois primeiros volumes, sob a designação geral de A Trilogia.

É António Quadros uma das figuras mais interessantes do pensamento português da segunda metade do século passado. Filósofo, escritor, professor, tradutor, autor de vasta obra abrangendo o ensaio, a poesia, a ficção, devem-se-lhe mais de trinta títulos, entre os quais o que ora se comenta e os livros relativos a Fernando Pessoa, Teixeira de Pascoaes e o Sebastianismo. Filho de António Ferro e de Fernanda de Castro, pertenceu ao Grupo de Filosofia Portuguesa, na companhia de Álvaro Ribeiro, José Marinho, Orlando Vitorino, Afonso Botelho, António Braz Teixeira, Cunha Leão, Pinharanda Gomes, António Telmo ou Dalila Pereira da Costa, e foi fundador do IADE - Instituto de Arte e Design e director do Serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, entre as múltiplas actividades que desenvolveu na sua vida.



Personalidade cativante, homem de diálogo aberto, tive o privilégio de ser seu amigo. Conversar com António Quadros era um prazer e uma aprendizagem, de que desfrutei, mesmo quando as nossas opiniões não eram convergentes. Desaparecido prematuramente, sem ter podido concluir a sua grande obra sobre Portugal, saúda-se a edição do livro que agora é publicado.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A PANDEMIA FAZ REVIVER O PASSADO

Vous ne savez jamais qui est de 

l’autre côté

(mise à jour :

Mis au service de la distanciation sociale, les “glory holes” font officiellement partie des moyens d’éviter l’infection. «Quelle terrible ironie», proteste l’artiste français Marc Martin qui consacre à ces trous honteux, honnis, un ouvrage en forme d’hommage.

Les glory holes sont les trous noirs de la mémoire queer. Pour beaucoup de militants, il paraît offensant d’en parler, car ces trous sont liés aux lieux d’aisance collectifs, les pissotières (appelées tasses, en argot) qui les virent apparaître, dès le XIXe siècle. Dans un essai intitulé Glory Hole - Le trou noir des tasses (éditions Agua), le photographe et collectionneur Marc Martin reproduit un des tous premiers documents lié à ces bizarreries. Il s’agit d’un rapport de police, daté de février 1862. Le chef du commissariat du quartier des Champs-Élysées évoque des «ouvertures faites dans les cloisons des latrines». L’une de ces ouvertures a été signalée comme un trouble à l’ordre public. Elle met en danger la pudeur. «J’ai immédiatement envoyé mon garçon de bureau et un de mes inspecteurs pour en opérer le bouchement, qui a été fait avec du plâtre et du ciment et ne manquera pas de solidité».

Personne ne «pipait mot» dans les tasses 

Bien qu’il n’en détaille pas l’usage, le commissaire semble parfaitement conscient du caractère coupable de ces pertuis, percés à hauteur d’entre-jambe. Ainsi que Marc Martin l’explique, ils servent à la fois d’oeilleton et de passe-plat : ils permettent «d’observer une personne située de l’autre côté ou d’y insérer son pénis dans le but d’un échange sexuel. […] À l’époque où l’homosexualité était illégale, les toilettes publiques, qui servaient de lieux de rencontres, en étaient largement pourvues». En perçant ces brèches dans les parois de séparation, les inventeurs des glory holes aménageaient des voies d’accès vers l’autre qui peuvent paraître réductrices : elles ne laissaient passer qu’un bout d’anatomie. Mais pour beaucoup d’hommes, ces petits trous étaient salvateurs. Pour ceux qui avaient peur, à l’époque répressive, d’être pris en flagrant délit (à deux dans la même cabine), les glory holes permettaient de jouir, envers et contre la société. Pour ceux qui se cherchaient, timidement, les glory holes offraient la liberté. 

Les trous entrent en résistance

Signe de leur importance : quand les autorités faisaient boucher ces trous, les «pervers» en perçaient de nouveau. Dans son ouvrage, Marc Martin cite d’ailleurs le cas d’une véritable guerre des trous. En 1887, Félix Carlier (ancien chef du service des moeurs à la Préfecture de police) mentionne le cas des pissotières des Halles, devenues lieu de rendez-vous. «Chaque jour, les maçons de la ville bouchaient ces trous ; chaque soir, ces trous étaient percés à nouveau. L’administration prit un parti qu’elle crut héroïque ; elle remplaça les cloisons par des plaques de blindage en fonte. […] Quinze jours plus tard, les plaques de métal avaient été taraudées, les trous existaient à nouveau.» La fermeture de ces WC fut seule capable de mettre fin au «scandale». Mais les fauteurs de trouble ne s’estimèrent pas perdants. Ils allèrent trouer ailleurs. Paris était grand.

Le trou abrite tous les mystères

Dans les années 1980, quand les pissotières furent abolies en France, remplacées par des «sanisettes», les trous leur survécurent. Ils migrèrent dans les backrooms, à l’abri de la pénombre, comme s’il fallait que perdure avec eux un certain goût pour l’incertitude. Steel Panther, un groupe de heavy metal, en a fait le refrain d’une chanson : «Honey, je ne veux pas savoir qui suce de l’autre côté» (Glory Hole, 2014). Ce pourrait être un homme beau ou laid, une blonde ou brune, peut-être même un flic ou un prêtre ? Le trou abrite tous les mystères. Il est le garant du secret. Il favorise les expériences, il encourage l’ambiguïté, il inspire des scénarios qui, autrement, n’auraient pas lieu. Ce qui le rend d’autant plus précieux à l’époque de la transparence. «Contrairement à la croyance populaire», insiste Marc Martin, il n’y a pas que les gays qui profitent de ces trous. Au contraire. Les hommes qui refusent de se définir, ceux qui veulent du plaisir sans avoir à soi-disant «assumer» (assumer quoi d’ailleurs), ceux qui manquent de confiance pour aller dans des clubs de cul, ceux qui veulent jouir dans l’inconnu, trouvent dans le glory hole une porte ouverte aux possibles. 

Une zone “Glory Hole” dans un centre d’art vivant ?

A l’inverse des autorités –qui font des glory holes les outils de la mise à distance–, Marc Martin entend les réhabiliter comme les moteurs du rapprochement. Sans ces trous, les exclus de la société n’auraient pas pu briser l’isolement. «Ils ont permis aux générations d’hommes, qui n’avaient pas de drapeau à dresser, d’ériger haut et fort leur érection en signe d’épanouissement personnel.» Non content de leur dédier un livre, Marc Martin leur consacre d’ailleurs un espace, placé au coeur de sa prochaine exposition –«Les tasses à Bruxelles»–, qui se déroulera au Centre d’art de Bruxelles-LaVallée, du 18 septembre au 3 octobre, dans le cadre du Pride Festival organisé par la RainbowHouse. Cet espace –que Marc nomme avec humour la «zone glory hole»–, prendra la forme d’une machine à remonter le temps : dans ce cube constitué de cabines séparées par des portes et des cloisons trouées, les visiteurs et visiteuses pourront se replonger dans l’ambiance clandestine des anciens lieux de rencontre, lorsque c’étaient les juges (et non pas le virus) qui prohibaient les contacts entre humains.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA




Registou-se um sobressalto cívico por causa da frequência obrigatória da disciplina "Educação para a Cidadania" e foi publicado um Manifesto, subscrito por uma centena de figuras da nossa sociedade, entre as quais um antigo presidente da República, um ex-primeiro-ministro e o patriarca de Lisboa. O actual presidente da República recebeu dois dos signatários e felicitou-os pela iniciativa.

Não conhecia o curriculum dessa disciplina e procurei documentar-me. Da consulta a que procedi obtive o título das matérias mas não a sua especificação, o que, aliás, dependerá sempre de quem as leccionar. E depreendi, dada a sua geral inocuidade, que a preocupação suscitada terá apenas a ver com os temas de carácter sexual. Os dois grandes temas da Vida são, realmente, o Sexo e a Morte: são eles que continuam a encerrar um mistério insondável e que condicionam a natureza humana.  Não sabendo exactamente a idade precisa dos jovens a quem vai ser ministrado este ensino, creio, contudo, que as matérias que não tratem da Sexualidade são pacíficas, algumas poderão contribuir para um esclarecimento dos alunos, outras serão, porventura, inúteis. Os comportamentos sociais aprendem-se sobretudo em família ou no círculo das amizades e dificilmente a escola poderá exercer um papel determinante.

Quanto ao Sexo, retirando os aspectos que respeitem à Saúde e que deveriam ser abordados em separado, não me parece que seja muito aconselhável tratá-los em turmas de trinta alunos (parece que é, ou foi, a média das turmas). Creio que, de uma maneira geral, os alunos, mesmo os mais novos, já sabem tudo o que convém a uma iniciação sexual e a matéria poderá mesmo criar situações embaraçosas entre os alunos e entre estes e os professores. A menos que se pretenda, e reside aí a questão, que as lições incidam sobre os temas da identidade sexual, do género, etc., teorias muito ao gosto dos norte-americanos, que, sobre as mesmas, já criaram cursos superiores nas suas universidades e exportaram essas ideias para o resto do mundo.

Por mais voltas que se dê ao texto quanto a essas teorias laboriosamente produzidas (eu sei que isto é politicamente incorrecto) há só dois sexos, o masculino e o feminino (salvaguardando os raríssimos casos de hermafroditismo) e duas orientações sexuais: pelo sexo oposto e pelo mesmo sexo (e em muitos casos por ambos). E tudo o resto são divagações, envergando porventura roupagens eruditas. Penso que as mudanças de sexo, que desde há alguns anos começaram a ser efectuadas, não terão contribuído, antes pelo contrário, para a felicidade dos que a elas se sujeitaram. Os próprios movimentos que se criaram para defesa dos direitos dos homossexuais, tradicionalmente considerados uma minoria embora não haja certezas absolutas, e que tiveram um papel importante no seu reconhecimento jurídico e social (este mais difícil), embrenharam-se num desdobramento de identidades que os leva a intitular-se hoje LGBTQI+, porque há sempre mais identidades. Acho, também, na linha de Michel Foucault, que os homossexuais, que reclamaram  o direito à diferença, deveriam reclamar hoje o direito à indiferença, integrando normalmente toda a população. Esta mania de pôr na cabeça das pessoas um rótulo com a identidade sexual só tem contribuído, nos últimos anos, para que as pessoas fiquem amarradas a uma "orientação" e se amedrontem de a transgredir. No passado, os "heterossexuais assumidos" praticavam relações, mesmo que ocasionais, com "homossexuais conscientes da sua orientação" sem que isso lhes causasse algum problema, porque tal era considerado intimamente normal. Hoje já não é assim. Está cada um no seu canto. E esta reflexão é válida para homens e para mulheres. Assunto muito vasto, este do sexo, que jamais poderia ser discutido em aulas colectivas e que não deve ser submetido a agendas ideológicas.

Regressando ao início, recordo que, há muitos anos, frequentei a disciplina de "Religião e Moral". Não me lembro de ensinamentos morais mas sim do estudo da Bíblia, na altura uma Bíblia aos quadradinhos. É claro que não se falava das outras religiões, nem se estudava o Corão (o islão não tinha então a relevância que tem hoje) ou outros livros sagrados. Uma disciplina evidentemente discriminatória, embora o estudo da Bíblia nada me tenha prejudicado, já que é, para o bem e para o mal, o livro fundador de toda a civilização ocidental. É certo que a forma como era ensinada a Velha Aliança (judaica) e o Novo Testamento (propriamente cristão) era manifestamente redutora, mas não existia naquele tempo a tradução de Frederico Lourenço, nem a idade dos alunos seria bastante para a sua compreensão.

Mais tarde, frequentei "Organização Política e Administrativa da Nação", que também me foi útil para o melhor entendimento do funcionamento do Estado e da administração pública. O seu estudo em nada me vinculava ao regime vigente, tão só me informava sobre a situação política real.

Encontrei, na minha biblioteca, um livrinho que terá pertencido a meu pai, ou a algum dos meus tios, contendo noções de Instrução Cívica para o ensino primário. Aborda a Pátria, o Estado e os seus Poderes, a Divisão Administrativa, a Defesa Nacional, os Impostos, os Deveres Cívicos, a Instrução e as Actividades Económicas. Tudo de acordo com o programa da I República.

Concluindo. A disciplina de "Educação para a Cidadania", nos moldes que constam do programa apresentado pelo Ministério da Educação, não me parece danosa para a generalidade dos alunos (talvez haja algumas rubricas inúteis), salvaguardando, como referi, certos aspectos do capítulo Sexualidade, que receio possam invadir a zona de intimidade profunda dos jovens. As coisas do sexo encerram sempre um inescrutável mistério. Mesmo quando é comprado ou vendido o sexo nunca é uma simples mercadoria. Uma teoria pode ser muito cuidadosamente elaborada mas a prática se encarregará de a infirmar se não conforme à realidade.