sábado, 1 de agosto de 2020

INTERNATOS




A referência do Eduardo Pitta feita há dias ao livro Internato (1946), de João Gaspar Simões, suscitou-me o desejo de relê-lo. Tomei conhecimento da existência desta obra por indicação de Isabel da Nóbrega, nos anos 60 do século passado, pouco tempo depois de nos conhecermos e estando ela já separada de João Gaspar Simões. Elogiou-me o livro e a "coragem" do escritor ao abordar um assunto que permanecia quase um tabu na literatura portuguesa. Procurei nas livrarias mas estava esgotado, porventura eliminado dos fundos editoriais. Consegui adquirir, anos mais tarde, num alfarrabista, um exemplar que pertencera ao falecido prof. Carlos Antero Ferreira, que ainda conheci pessoalmente e cuja assinatura consta da respectiva folha de guarda.

Mas porquê o "escândalo" de Internato? Nesta obra, JGS descreve a vida quotidiana num internato liceal masculino, um estabelecimento de classe média-baixa (para os padrões da época) mas com algumas irrisórias pretensões. Recriar o ambiente geral de um internato, com as diabruras de alunos adolescentes e mesmo alguma violência, com cenas de partidas e de copianço, artimanhas e mentiras, com preferências de professores por alunos ou de alunos entre si, com as sistemáticas críticas a professores e prefeitos, não constitui propriamente motivo de espanto. É o clássico destes estabelecimentos de ensino, que hoje vão rareando. Só que, neste caso, JGS vai mais além: ele debruça-se sobre as relações sexuais entre os alunos, e mesmo entre alguns deles e o director, ainda que nunca descendo (ou subindo) a pormenores demasiado íntimos. 

Toda a gente sabe que os colégios internos masculinos (e provavelmente também os femininos) foram sempre lugares de relacionamento homossexual dos alunos (pelo menos da maioria) e mesmo destes com alguns professores. Tal não constitui em si qualquer novidade. Aliás, a convivência em espaço fechado de pessoas do mesmo sexo torna apetecida a actividade homossexual. Isto é também verdade para os quartéis, os seminários, os conventos, os navios e por aí fora. Tal como acontece no teatro de guerra, nas grandes expedições ou em situações calamitosas. A imisção de mulheres em espaços tradicionalmente reservados a homens, com a chamada emancipação feminina, veio perturbar parcialmente esta "harmonia" que a história registou durante séculos e a literatura evoca amiúde pela pena dos seus mais ilustres cultores.

O que provocou a estranheza, e até a inquietação, do livro de JGS não foi a existência de factos que todos mais ou menos conheciam, pelo menos subconscientemente, mas sim a sua revelação em livro, ainda para mais por parte de um escritor de que se ignora qualquer inclinação homossexual. Ao que acresce a publicação da obra na vigência do Estado Novo, cujos códigos morais excluíam a homossexualidade. Sejamos mais claros: Salazar não se preocupava com a pratica de relações homossexuais, tendo tido quase sempre, durante o seu longo consulado, ministros reconhecidamente homossexuais no seu Governo. Em matéria de sexualidade, Salazar era uma personalidade amoral, não digo imoral. O que Salazar não se podia permitir, e não permitia, era a existência pública de comportamentos homossexuais, condutas que o regime condenava. Assim, o que se passava no confinamento de quatro paredes não perturbava a ordem pública, era uma coisa que não aparecia, e por isso não parecia, e na moral como em política só o que parece é, nas próprias palavras do antigo presidente do Conselho. Agora, se a "transgressão" homossexual se tornava visível e ameaçava contestar os alicerces do Estado (e da Igreja), então havia que reprimi-la, e para isso o regime dispunha de uma atenta polícia de costumes.

Do ponto de vista literário, para lá da "revelação", o romance de JGS está visivelmente mal estruturado, é repetitivo e chega a roçar o mau gosto como, por exemplo, no caso das alcunhas utilizadas para os alunos do internato. E há um ligeiro desequilíbrio na descrição das conversas entre rapazes que teriam, supostamente, idades entre os dez e os dezoito anos. É essa a impressão que retirei desta recente leitura. Mas é pertinente a forma como observa a técnica de sedução utilizada pelos alunos ou a existência de um grupo especial, os "meninos bonitos", que seriam os mais belos rapazes do internato, e de como destes saíam os "favoritos" do director, que não desdenhava as companhias masculinas. E também a forma como analisa a presença da religião católica nos mais ínfimos actos da vida do colégio. Aliás, a última parte do livro é especialmente dedicada à "conversão" do jovem protagonista à religião, aos seus temores da confissão, à suspeita de que um padre havia traído o segredo do confessionário, à descrença total no catolicismo e, finalmente, à fuga do internato, embora sem consequências trágicas.

Dada a delicadeza do tema para a época (as referências à homossexualidade dos alunos e a crítica à sufocante presença da religião nas escolas) é natural que o livro tenha passado discretamente pelo meio literário. Embora fosse um miúdo quando ele foi publicado, já crescido não soubera da sua existência e, como escrevi acima, foi a Isabel da Nóbrega que mo assinalou, já nos finais dos anos sessenta.

Todavia, não possui Internato a grandeza de Les Amitiés Particulières (1943), o célebre romance de Roger Peyrefitte (passado ao cinema por Jean Delannoy), primeiro livro da extensa bibliografia do antigo diplomata, que recebeu o Prémio Renaudot e é talvez o seu melhor trabalho. Cotejando as datas de publicação, pode supor-se que JGS conhecesse a obra de Peyrefitte. Mas enquanto na obra do francês existe mesmo um amor homossexual, em JGS as relações são mais de circunstância, ainda que não se possa excluir, em alguns casos, uma nítida inclinação pelo mesmo sexo.

1 comentário:

Zephyrus disse...

O meu pai foi militar alguns anos e apesar de tocar pouco no assunto ocasionalmente relatou alguns factos que presenciou. Também presenciei algumas coisas e tive uma ou outra proposta e abordagens, mas nunca tive coragem de dar azo a tal experiência. Perto do local onde cresci havia uma praia conhecida por ser um pólo de naturismo e de encontros entre amantes e entre homens, mas suspeito que a invasão turística de anos recentes tenha tirado a privacidade e recato que o local exige. O local era mais frequentado por espanhóis, que eram conhecidos por ser muito mais audazes na sexualidade... vêem os portugueses como tímidos e medrosos. Em anos recentes a internet também mudou radicalmente a vivência da sexualidade.