quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

J'ACCUSE





Fui ver ontem J'accuse, o mais recente filme de Roman Polanski (2019), cuja tema é o famoso caso Dreyfus e cujo título é o do artigo publicado pelo romancista Émile Zola, em 1898, na primeira página do jornal "L'Aurore", sob a forma de carta aberta ao presidente Félix Faure (que curiosamente morreria no ano seguinte, no Eliseu, quando se encontrava na companhia da sua amante, depois de ter presidido a um Conselho de Ministros dedicado ao caso Dreyfus) reclamando a revisão do processo. Existe, aliás, mais de uma dezena de filmes e talvez uma centena de livros sobre o caso Dreyfus.



O affaire Dreyfus, que depois da carta de Zola passou a ser designado l'Affaire, dividiu profundamente a sociedade francesa. Não cabe aqui descrever os sucessivos episódios do caso, que serão do conhecimento público, pelo menos das pessoas interessadas nestas matérias, mas importa referir alguns factos.

Em 1894, o capitão Alfred Dreyfus, judeu francês de origem alsaciana, foi acusado de ter entregue aos alemães documentos secretos do exército e, em consequência, julgado em Conselho de Guerra, condenado à degradação militar e à prisão perpétua. A prova era uma carta, que ficou conhecida como "le bordereau" encontrada na Embaixada da Alemanha, contendo informações sobre o armamento francês. A caligrafia identificava Dreyfus como o único oficial capaz de ser o seu autor.

A opinião pública francesa, largamente anti-semita à época (e possivelmente ainda hoje) cerrou fileiras contra aquele crime de alta traição.

Em 1896, o coronel Georges Picquart, chefe da contra-espionagem,  descobriu que o verdadeiro autor do documento era outro oficial do exército, este de origem húngara, Charles Esterházy (que nunca chegaria a ser condenado) e em 1897 o irmão de Dreyfus apresentou queixa contra o Ministério da Guerra.

Em 1898, Zola publica a célebre tribuna "J'accuse", exigindo ao presidente da República a reabertura do processo, pelo que seria condenado pelo crime de difamação, bem como o editor do jornal.

Entretanto o assunto inflama a França e divide os franceses entre "dreyfusards" e anti-dreyfusards". As várias instâncias do Exército tentam minimizar os danos, mas não conseguem evitar a divulgação de notícias comprometedoras. Em 1899, o julgamento de Dreyfus é anulado mas este novamente julgado em Conselho de Guerra, continuando a ser considerado culpado e condenado agora a 10 anos de prisão. 

A França segue apaixonadamente o processo Dreyfus, devido também à questão da Alsácia-Lorena e a um crescente sentimento anti-alemão, que conduziria à Primeira Guerra Mundial. As autoridades militares procuram salvar a face recusando admitir o erro inicial e as suas chefias, incluindo o ministro da Guerra, tentam encobrir-se. O escândalo avoluma-se de tal forma que em 1899 Dreyfus é amnistiado.

Em 1906, o capitão Alfred Dreyfys é finalmente reabilitado na sua honra e reintegrado no Exército.

Merece aqui uma palavra a obstinação do Exército. Muitos dos seus quadros superiores eram anti-semitas e observavam com crescente preocupação a política da Alemanha. Em consequência, e como a prova parecia evidente, fazia sentido que fosse Dreyfus o culpado. As dúvidas surgiram depois, mas com o seu espírito de corpo e a mística própria da instituição castrense o Exército foi procurando gerir a situação, mesmo quando era já evidente que se tratara de um lamentável erro. Só passados mais de dez anos, com alguns dos actores deste caso já mortos, foi possível fazer-se justiça. As Forças Armadas, que são, no conceito tradicional, a reserva moral das nações, regem-se por um código de honra poucas vezes compreendido pela sociedade civil. Assim, era inconcebível para o Exército francês admitir a sua culpa. Hoje, que as Forças Armadas dos países estão mercenarizadas e submetidas à justiça ordinária, com as vantagens e os inconvenientes que essa solução comporta, dificilmente o caso Dreyfus seria possível. Temos presentemente entre nós o caso flagrante do roubo ocorrido em Tancos.

Falando propriamente do filme, não é ele uma das melhores películas de Polanski. Falta-lhe o golpe de asa que celebrizou algumas das suas anteriores obras. A primeira meia hora é mesmo confusa para quem desconheça o tema, devido ao recurso sistemático ao flashback, nem sempre devidamente assinalado para a boa compreensão do espectador. Refere o autor que as personagens são autênticas, do que não duvido relativamente às figuras principais. Mas ignoro se o caso amoroso do coronel Picquart ou a relação homossexual entre os adidos militares da Alemanha e da Itália em Paris são factos históricos. Parece-me que Roman Polanski não pretendeu (nem se lhe poderia exigir) uma fiel reconstituição histórica - aliás impossível - mas antes um filme (com alguns contornos ficcionados) sobre um caso que apaixonou a França e que teve repercussões por toda a Europa.

Acrescente-se que o filme se baseia no livro An Officer and a Spy, de Robert Harris e que o tema interessava muito a Polanski que, sendo também judeu, pretendia render homenagem ao oficial injustamente condenado. Esteve para ser realizado em 2012 mas dificuldades várias impediram até ao ano passado a sua produção, agora assegurada por Alain Goldman, curiosamente também judeu.

5 comentários:

Anónimo disse...

1) A relação especial entre os adidos alemão e italiano estará documentada em mensagens "roubadas" dos cestos de papeis da embaixada germânica pela mulher de limpeza a soldo dos serviços de informação franceses.
2) É-me indiferente,nem por mim mereceria comentário que Polanski e o produtor sejam judeus. Já agora,Zola e Picquard não eram.
2) Tendo estudado alguma coisa da 1a Guerra, acho interessante que autor do blog considere que foi o sentimento francês contra a Alemanha que "conduziu" (sic) ao conflito de 1914. Pensava que o atentado de Sarajevo e as extraordinárias exigências do ultimato austríaco, com a cobertura alemã,a declaração de guerra do Império bicéfalo á Sérvia que dispunha do apoio russo( pelo que se desenrolaram "automàticamente as alianças e as mobilizações) estão sim na origem de agosto de 1914.
E,claro,havia o clima criado pela política arrogante de Guilherme II, mas a responsabilidade directa da Guerra não é francesa.Na minha modesta opinião,claro.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para o Anónimo das 01:12:

1) Isso é o que se vê no filme. Não sei se é autêntico e também em nada contribui para o desenrolar dos acontecimentos;

2) Simples coincidência...;

3) Aliás o seu segundo 2) O atentado de Sarajevo despoletou certamente a Primeira Guerra Mundial, mas havia na população francesa um bem vincado sentimento anti-germânico.

Anónimo disse...

Só duas notas:

Não confundir Alemanha com a Prússia.
Podem ambas ser Germânicas, mas a Alemanha é realidade Centro Europeia mais uniforme, que foi sucessivamente conquistada pela Prússia, uma realidade mais Báltica(veja-se Königsberg / Kaliningrado) e muito mais diversa, muito mais influenciada pela Ordem Teutónica.

Sendo assim, parece-me que não devem ser confundidas, respeitando a Época e/ou a Geografia.



Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para o Anónimo das 23:30:

Na época do "affaire" Dreyfus já existia o Império Alemão, logo a Alemanha.

Se pretende referir-se à influência da Prússia, de que era rei o imperador da Alemanha, ela foi certamente indiscutível na formatação posterior do espírito germânico.

Anónimo disse...

Caro Júlio,

A área geográfica da Alemanha, foi paulatinamente conquistada de nordeste para sul, a partir da Prússia, até dominar a Baviera, e à custa da perda de área e recuo do Império Austro-Húngaro, jogando com um poder militarizado e a "bagunça" pré e pós napoleónica, e aglutinando outras identidades como a polaca.
Sendo assim, títulos à parte e até me demonstrarem o contrário Império Prússiano = principados e afins Alemães + polacos + .....