quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

AUGUSTUS




Foi publicada muito recentemente a tradução portuguesa do livro Augustus, do escritor norte-americano John Williams, cuja edição original remonta a 1972. Confesso que não conhecia a obra, embora tenha sido então galardoada com o National Book Award, sendo que o autor, professor na universidade de Denver, publicou unicamente quatro romances. Destes, apenas Stoner teve repercussão mundial, mas só depois de ter sido traduzido para francês muitos anos após a sua edição.

Acontece que Augustus é um livro apaixonante, tratando a vida do primeiro imperador de Roma no estilo que adoptaram, também para outros imperadores romanos, Marguerite Yourcenar, nas Memórias de Adriano e Robert Graves, em Eu, Cláudio. A estrutura do livro segue o curioso modelo de uma sucessão de epístolas, que trocam entre si as principais personagens contemporâneas de  Caio Octávio César Augusto.

Através dessas cartas é-nos contada a vida desse cidadão romano, sobrinho-neto e filho adoptivo de Júlio César, que logrou tornar-se o "senhor do mundo" num período simbólico para a História da Humanidade, ou seja, dos últimos anos da era Antes de Cristo aos primeiros anos da era Depois de Cristo.

A narrativa epistolar começa com o assassinato de Júlio César nos Idos de Março e termina com a morte de Octávio. Tratando-se de um romance histórico, que menciona figuras reais e algumas inventadas, ficamos, porém, com a impressão, ou a certeza, de que a história prevalece largamente sobre a ficção, o que pode comprovar qualquer pessoa que minimamente conheça a história romana desse período.

O livro tem uma introdução do escritor Daniel Mendelsohn, de 2015, e acompanha todos os grandes acontecimentos que preencheram a vida desse rapaz magrizela, frequentemente doente mas dotado de uma indomável vontade de resgatar Roma das lutas fratricidas e de instituir um período de paz, a Pax Romana, que durou mais de cem anos, e que ficou conhecido como o Século de Augusto.

Na verdade, Augusto é uma personagem enigmática, tão enigmática como a esfinge que ostentava o seu anel oficial. Ao longo de mais de 300 páginas, John Williams consegue transmitir-nos as contradições dessa personagem, os seus estados de alma cuidadosamente resguardados, o culto de austeridade que procurou impor em Roma (austeridade que ele mesmo cultivou pessoalmente para melhor se impor ao povo), a sua dissimulada ambição (que o levou a recusar a magistratura de Ditador que lhe foi por duas vezes oferecida pelo Senado, considerando-se apenas princeps, o primeiro cidadão, mas aceitando todavia o título de Augustus, aquele que deve ser venerado). 

Na sequência do assassinato de Júlio César, em 44 AC, e da sua subsequente deificação por decreto do Senado, Octávio, que tinha então dezanove anos, passara já, para se aproveitar do prestígio do seu tio-avô, a referir-se a si mesmo como Gaius Julius Caesar Divi Filius (o Filho do Divino).  E embora recusasse as homenagens próprias dessa condição, comportou-se sempre como um deus.

São incontáveis as biografias de Octávio Augusto, desde os testemunhos dos seus contemporâneos até aos escritos actuais. O próprio imperador escreveu uma autobiografia oficial, inscrita em placas de bronze e afixada nas portas do seu mausoléu e que foi reproduzida por todo o Império: Res Gestae Divi Augusti (Feitos Realizados pelo Divino Augusto).

Todavia, o que mais se assemelha nos tempos antigos a uma biografia autorizada é a que foi redigida pelo historiador Nicolau de Damasco, amigo do imperador. A penúltima carta do livro é exactamente uma epístola de Augusto para Nicolau, em que o imperador lhe conta, sem subterfúgios, a "verdade" da sua vida. Deve dizer-se que este texto, devido à prodigiosa imaginação de John Williams, é uma das peças fundamentais da obra. 

Também John Williams inventa excertos de umas memórias, hoje perdidas, de Marco Agripa, o grande amigo de juventude de Augusto, autor das suas vitórias militares e aquele a quem o imperador entregava o governo de Roma quando se ausentava em campanhas. Marco Agripa que viria a casar com Júlia, a filha de Augusto, e que foi pai dos seus netos, prematuramente mortos, a razão porque não herdaram o Império. O mesmo Marco Agripa que mandou construir os mais notáveis banhos públicos de Roma e também o Panteão, que ainda hoje testemunha, apesar dos estragos involuntários do tempo e voluntários dos homens, a grandeza de Roma.


Augusto, dito de Prima Porta (Museu do Vaticano)

Mais do que recriar o passado, Williams sugere-o, e esse é um dos grandes méritos da sua obra. A última carta do livro, que assume a forma de epílogo, é uma carta inventada pelo autor e dirigida pelo médico grego Filipo de Atenas, que em jovem teria acompanhado os últimos momentos do imperador, ao filósofo Séneca, quarenta anos após a morte de Augusto. Nessa carta, Filipo queixa-se dos seus sucessores. Da dureza de Tibério, da crueldade monstruosa de Calígula e da inépcia de Cláudio, concluindo (ironia profunda de John Williams): «E agora o nosso novo imperador é alguém que ensinaste quando era rapaz e de quem te manténs próximo na sua nova autoridade; demos graças pelo facto de que ele reinará à luz da tua sabedoria e virtude, e oremos aos deuses para que, sob Nero, cumpra por fim o sonho de Octávio César.» Conhecemos o resultado: a loucura de Nero e o fim da dinastia júlio-claudiana.

A ordenação das cartas é propositadamente anacrónica, pois isso serviu melhor os propósitos do autor. As primeiras cartas dão ênfase à amizade entre Octávio, Marco Agripa, Caio Mecenas e Quinto Salvidieno Rufo. Estavam os quatro em Apolóna (na Macedónia) quando Octávio recebeu a notícia da morte de Júlio César em 44 AC. Tinham feito um pacto de amizade. Só Salvidieno, mais tarde, após grandes serviços prestados a Octávio, se ofereceu para passar para as hostes de Marco António antes de saber que Octávio e António se haviam já reconciliado. Octávio não lhe perdoou e Salvidieno foi culpado de alta traição e condenado. Parece que ele mesmo pôs termo à vida. Agripa e Mecenas mantiveram-se fiéis a Augusto até ao final das suas vidas, tendo morrido ambos antes do imperador. Agripa era o homem dos exércitos e das grandes construções de Roma, Mecenas era o homem da cultura e da protecção aos poetas e filósofos. Tinha também uma especial atracção por rapazes, nada de invulgar no mundo romano, mas não casara. Octávio impôs-lhe, já tarde, o casamento (branco) com Terência que, apesar das leis sobre o adultério, era amante de Octávio. Foi um casamento feliz, em que todos estavam de acordo e sabiam com o que contavam.

 
Panteão de Agripa

Registo um diálogo entre Octávio e Mecenas, inventado por Williams:
- Octávio: «O meu tio disse-me uma vez para ler os poetas, amá-los e usá-los - mas nunca confiar neles.»
- Mecenas: «O teu tio é um homem sábio.»

Como não conheço o original, não posso criticar a tradução, mas esta, ao longo do livro suscitou-me algumas interrogações, embora tenha havido cuidado na menção dos nomes latinos e na sua versão para português. O meu problema tem mais a ver com a construção das frases.

Este livro, em boa hora posto à disposição dos leitores portugueses, dá-nos a imagem (uma imagem possível) do carácter de Augusto, das suas ambições disfarçadas na modéstia de uma vida frugal, da sua vontade do poder, da impassibilidade com que sacrificava os amigos, até a própria filha Júlia (que desterrou para a ilha de Pandatária) aos interesses de Estado (aos seus próprios interesses?), em suma, de uma vida que, para além dos reais méritos da sua governação, foi uma vida minuciosamente encenada para desempenhar um papel de protagonista maximus no palco de Roma,  com o pretexto de ele ser o único capaz de salvar Roma das lutas intestinas e das invasões dos bárbaros. Augusto surgiu assim como salvador de Roma -  o salvador da "Pátria", e como tal foi aclamado! E exerceu verdadeiramente um poder absoluto (apesar do funcionamento simbólico das instituições da República) até à sua morte.

Em certa medida, a personalidade de Augusto, reportada para a nossa época, lembra-me Salazar. 


5 comentários:

Anónimo disse...

Já agora, a Dª Maria era a personificação da mulher de Augusto, Lívia se seu nome, retratada no "Eu, Cláudio" ....

Zephyrus disse...

Agradeço a recomendação. Vou comprar. Gostaria que me indicasse o mail do seu blogue para lhe enviar de vez em quando algum artigo ou excerto de livro que julgue pertinente. Saudações.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para Zephyrus:

O mail do meu blogue é cavatina@sapo.pt. Saudações

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Para Anónimo das 23.28:

Não existe qualquer semelhança entre Lívia e a D. Maria.

Anónimo disse...

Caro Júlio,

Talvez, na forma de perpetuação no Poder, dada a ausência de descendência de ambos, no caso português.

Mas, quando ambas saíram da zona do Poder, creio que houve um grande "UFFFF!!!" dos restantes circundantes quando as viram pelas costas.

Pelo menos, foi a ideia com que fiquei.

Ou então, a máxima "Detrás dum grande Homem, há sempre uma grande Mulher", passa a mínima.