domingo, 3 de fevereiro de 2019

O MÉDIO-ORIENTE E O CAOS




Foi publicado no fim do ano passado um novo livro do eminente arabista e islamólogo francês Gilles Kepel, com o título Sortir du Caos - Les Crises en Méditerrnée et au Moyen-Orient. Deve-se a Kepel uma vasta obra sobre o Mundo Árabe e o Islão, e não será exagero considerá-lo como um dos maiores especialistas contemporâneos na matéria.

É famosa a divergência que tem mantido, desde há tempos, com o seu colega Olivier Roy, também ele um profundo conhecedor da mesma área do saber. Para Kepel, a violência djihadista é a "radicalização do islão", enquanto que para Roy é a "islamização do radicalismo". Diríamos a este respeito que ambos tem uma quota-parte de razão, que o mundo não é a preto e branco, que as tendências se interpenetram e que a complexidade da nossa época acaba por impedir se determine exactamente o que é a causa e o que é o efeito.

Neste novo livro, grosso de 500 páginas e escrito em Julho de 2018, Kepel divide o texto em três partes: 1) Le baril et le Coran; 2) Des "Printemps arabes" au "Califat" jihadiste"; 3) Après Daesh: désagrégation et recompositions.

Na primeira parte o autor analisa «A islamização da ordem política (1973-1979)», "A irrupção da jihad internacional: contra "o inimigo próximo" (1980-1997)», «A segunda fase jihadista: Al-Qaïda contra "o inimigo distante" (1998-2005)» e «A terceira geração djihadista: redes e territórios (2005-2017)».

Na segunda parte são tratadas «As insurreições do primeiro tipo: da queda dos déspotas à transformação das sociedades» e «As insurreições do segundo tipo: fissura entre xiismo e sunnismo e colapso das rebeliões».

Na terceira parte é desenvolvida «A fractura do "bloco sunnita"» e «O desafio planetário da batalha do Levante».

Em Conclusão da obra, Gilles Kepel expõe «Failles du Moyen-Orient et tectonique mondiale».

O livro inclui uma preciosa cronologia, resumida, desde a Hégira (622) à publicação de L'or de Paris (1836), pelo sheikh Rifaat al-Tahtawi, e largamente desenvolvida, desde a assinatura dos Acordos Sykes-Picot (1916) ao encontro de Helsínquia entre Donald Trump e Vladimir Putin (2018). E um não menos precioso índice onomástico.

Após algumas generalidades introdutórias, Gilles Kepel procede a uma descrição pormenorizada, e culta, da evolução da situação no Médio Oriente, desde o fim dos nacionalismos árabes (de que Nasser e Bourguiba foram os grandes protagonistas) até às convulsões dos nossos dias.

O Médio Oriente tem sido, ao longo dos séculos, uma das regiões mais perturbadas do globo. Talvez não por acaso, foi no seu epicentro que nasceram as três religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islão, que haveriam de provocar, directamente ou através dos seus ramos, as mais sangrentas guerras da História. Aí coexistem hoje árabes, turcos, persas, curdos, judeus. Com o predomínio esmagador do islão, dividido entre sunnitas, xiitas e subdivisões: alauítas, ismaelitas, ibaditas, zayditas. E também cristãos católicos, protestantes, ortodoxos, maronitas, arménios, coptas. E ainda os drusos, os yezidis e os zoroastrianos.

A exposição do autor é clara, geralmente objectiva, por vezes um pouco repetitiva, mas com a intenção, em tão longa descrição, de relembrar os factos. Como bom arabista, procede à indicação de muitos termos em árabe, o que facilita a intelecção do leitor.

Um dos pontos mais aprofundados é a criação do "Estado Islâmico" ou Daesh, ISIS, ISIL, ou como se quiser chamar, com a capital em Raqqa, que funcionou, espantosamente, de 2014 a 2017, com a inicial complacência, ou conivência, ou estupidez, do Mundo Ocidental. O conflito do Levante, pela sua extensão universal, constitui para o autor (p. 279) uma espécie de guerra mundial pós-moderna.

A situação na Síria, consequência da invasão do Iraque, das "primaveras árabes", e de outros factores acessórios, onde o conflito começou em Deraa, em 18 de Março de 2011, levou à quase destruição do país, provocou milhões de mortos, feridos, estropiados, deslocados, emigrantes, pôs em grave perigo o regime de Bashar Al-Assad (que subsistiu à contestação em que Ben Ali e Mubarak foram afastados e Qaddafi foi assassinado; Saddam Hussein já havia sido enforcado) e determinou uma vaga migratória inédita para os países da Europa. O papel da Rússia foi fundamental no combate ao Daesh e Raqqa caiu em 17 de Outubro de 2017. Agora, as cartas estão sobre a mesa, para uma nova distribuição das zonas de influência de russos, turcos e iranianos no Médio Oriente. O Ocidente, que, em diversas fases, se envolveu na contenda, saiu desprestigiado e derrotado.

Também a Arábia Saudita teve de rever a sua política de alianças, bem como os Emirados Árabes Unidos, o Egipto e o Qatar. E também a Turquia. No Iraque, as duas principais tendências do partido Da'wa, relativas às linhagens principais dos ayatollahs iraquianos, os Sadr e os Hakim, disputam o poder. Moqtada Al-Sadr, que entretanto renunciou à violência, visitou em 2017 os príncipes herdeiros saudita e emirati, Mohammed Bin Salman e Mohammed Bin Zayed, e aliou-se mesmo ao Partido Comunista Iraquiano na sua lista para as eleições de Maio de 2018, Sa'iroun, que significa "En Marche" (p. 373), e cujo nome, longe vá o agouro, lembra Emmanuel Macron.

O leitor interessado encontrará nesta obra os dados para a compreensão do caos que se instalou na região depois da famigerada intervenção no Iraque, em 2003, protagonizada pelo americano George W. Bush e pelo britânico Tony Blair. Não terá necessidade de consultar, dia após dia, os jornais da época. E este é um dos méritos da obra, a que acresce o conhecimento e a visão que o autor possui desde há muitos anos da política no Médio Oriente.

Na impossibilidade de resumir o livro, não desejo terminar o texto sem anotar um pormenor chocante. Na sua viagem a Moscovo, a primeira deslocação à Rússia de um soberano saudita, em 5 de Outubro de 2017, o rei Salman Ben Abdelaziz Al-Saud desceu do seu avião particular por uma escada em ouro!!! (p. 425).


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